‘O meio urbano se tornou a
expressão mais pura da Civilização do Lixo’. Entrevista com Maurício Waldman.
As evidências demonstram que a quantidade de lixo
gerada tem crescido consideravelmente nos últimos anos, mas quando se trata de
quantificar os dados, “as disparidades nos levantamentos estatísticos
constituem controvérsia endêmica entre os especialistas em resíduos”, assinala Maurício
Waldman, autor de Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010),
em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Numa “radiografia quantitativa” a partir de estudos
franceses, é possível que os resíduos urbanos globais oscilem entre 2,5 e 4
bilhões de toneladas, com uma “margem de erro”, conforme destaca o
pesquisador, “note-se bem: uma margem de erro de ‘apenas’ 1,9 bilhão de
toneladas de sobras”. No Brasil, a conta gira em torno de “78,4 milhões
de toneladas, uma massa de refugos considerável sob qualquer ponto de vida”,
pontua. E informa: “A população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000.
Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes
o índice demográfico”.
Doutor em Geografia e referência em pesquisas sobre
a problemática do lixo no Brasil, Waldman está cursando o
terceiro pós-doutorado, estudando especialmente a reciclagem dos resíduos
sólidos, e alerta para a ampliação acelerada de novas toneladas de lixo
produzidas no Brasil. “As cidades brasileiras ampliaram os descartes no
biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por dia para 209.280 toneladas.
Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se
pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20
mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 3.500 lixões ativos
e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores”, menciona.
Waldman chama a atenção para as propagandas em torno do “lixo
zero”, lembrando que “não existe erradicação total do lixo”, porque “toda
atividade humana gera resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os
rejeitos, sobras não passíveis de reaproveitamento”.
Foto: enviada pelo entrevistado
|
Maurício Waldman é doutor em Geografia, mestre em Antropologia e
graduado em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Cursou
pós-doutorado em Geociências pela Universidade de Campinas – UNICAMP e
em Relações Internacionais pela USP.
Waldman iniciou em janeiro de 2014 seu 3º pós- doutorado,
pesquisa centrada na área do meio ambiente com foco na questão dos catadores,
incineração e reciclagem dos resíduos sólidos. A investigação possui respaldo
institucional da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, de Presidente
Prudente, e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico – CNPq.
Maurício Waldman foi Chefe da Coleta
Seletiva de Lixo da Capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em
São Bernardo do Campo. Realizou duas traduções de monta: El Ecologismo
de los Pobres – Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoración (de Joan
Martinez Alier) e Fifty Major Philosophers (de Diané Collinson). Mais
informação no Portal Acadêmico do Professor Maurício Waldman:
www.mw.pro.br.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sabe-se que a geração de lixo no
Planeta tem crescido incessantemente. Existem dados a este respeito?
Maurício Waldman - Sim e não. Retenha-se que as
disparidades nos levantamentos estatísticos constituem controvérsia endêmica
entre os especialistas em resíduos. Seguramente, tal assertiva poderia ser
estendida à totalidade dos prontuários contábeis devotados ao tema. Citando um
exemplo paradigmático, os resíduos urbanos globais oscilariam numa radiografia
quantitativa da lavra de especialistas franceses, entre 2,5 e 4 bilhões de
toneladas. Note-se bem: uma margem de erro de “apenas” 1,9 bilhão de toneladas
de sobras. Assim sendo, é obrigatório ressalvar que qualquer número apresentado
pode apresentar discrepâncias de índole diversa.
IHU On-Line – É possível estimar quantas toneladas
de lixo são produzidas no Brasil anualmente?
Maurício Waldman - No caso brasileiro, para nos
atermos aos últimos dados disponibilizados pela Associação Brasileira de
Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE, os refugos
urbanos descartados pelos domicílios brasileiros durante o ano de 2013 girariam
em torno de 78,4 milhões de toneladas, uma massa de refugos considerável sob
qualquer ponto de vida.
IHU On-Line – Qual é a principal tendência da
geração de lixo no Brasil?
Maurício Waldman - O que salta aos olhos é a
expansão vertiginosa do lixo brasileiro. Levando-se em conta dados da ABRELPE
e do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, um recorte
matricial é a ampliação exponencial da ejeção de lixos em todo o território
nacional. Indo direto ao ponto, este fenômeno fica demonstrado quando
observamos que a população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000.
Entretanto, neste mesmo período, o lixo domiciliar expandiu-se 49%, três vezes
o índice demográfico.
Neste particular, relatório técnico elaborado pela ABRELPE
constata para 2009 um crescimento de 6,6% na geração per capita de resíduos
sólidos urbanos com relação a 2008. Mas, para o mesmo ano, o crescimento
populacional foi de somente 1%. Nos últimos dez anos, a população do Brasil
expandiu 9,65%. Contudo, no mesmo decênio a geração de lixo cresceu mais do que
o dobro este percentual, batendo a casa dos 21%. As cidades brasileiras
ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas de lixo por
dia para 209.280 toneladas. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze
meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no
país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos
mais de 3.500 lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos
catadores.
“O Brasil figura entre os maiores geradores
planetários de descartes”
|
IHU On-Line – Qual proporção desta tonelagem recebe
destino adequado?
Maurício Waldman - Depende do que se entende por
“adequado”. Certo é que a Lei 12.305 (de 02-08-2010), instituindo o Plano
Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, estabelece como destinações
ambientalmente adequadas procedimentos como a reutilização, a reciclagem e a
compostagem, um elenco de práticas que desfrutam de consenso entre os
especialistas. Por outro lado, admite o chamado “aproveitamento energético do
lixo” — processos de incineração Waste to Energy — e a disposição final
dos resíduos em aterros sanitários como normas operacionais aceitáveis,
inclusive do ponto de vista ambiental. Trata-se de uma posição no mínimo
questionável.
IHU On-Line – Por que os incineradores e os aterros
seriam questionáveis?
Maurício Waldman - Assinale-se que do ponto de
vista legal, o Senado suprimiu na última hora em sessão noturna o
dispositivo que enquadrava a queima do lixo como opção apenas na eventualidade
de outras medidas não serem viáveis. Com base neste subterfúgio, os senadores
encaminharam sem demora o texto para sanção da Presidência, então exercida por Lula.
Isso ao arrepio das mobilizações mundiais contrárias à expansão dos
incineradores, que em países como o Brasil tem como um dos pontos
programáticos mais fortes o apoio aos catadores urbanos. Quanto aos aterros,
bastaria recordar as pesquisas de William Rathje, famoso antropólogo
estadunidense fundador da Garbology (Lixologia em português), que os
classifica como mausoléus de lixos, uma representação emblemática da incúria
ambiental da civilização moderna. Formando verdadeiras montanhas de detritos,
os aterros sanitários configuram a etapa final da parte do leão de muitos
restos urbanos, impostados da condição de parceiros de uma civilização que
esgota sem piedade as reservas de insumos naturais, com isso catalisando os
pré-requisitos de sua própria autoextinção.
Deste modo, como julgar “adequado” um
equipamento cuja função é enterrar materiais que, podendo ser compostados e
recuperados, geram, pelo contrário, uma coletânea de estorvos ambientais? Isso
é solução?
IHU On-Line – E no Brasil, o que está acontecendo
com os materiais descartados nas lixeiras?
Maurício Waldman - Para começo de conversa — para
focarmos as questões relacionadas à massa dos itens descartados — é importante
sublinhar que o Brasil corresponde a 2,8% da população mundial e praticamente
3% do PIB global. Mas, por outro lado, seria origem de um montante
estipulado entre 5,5% do total mundial dos resíduos sólidos. Isso para
lembrarmos que a responsabilidade brasileira na geração mundial de lixo é
inquestionável.
Embora o fato escape à percepção da maioria da
população, o Brasil figura entre os maiores geradores planetários de
descartes. Um segundo apontamento diria respeito à modelagem das cifras pelas
estatísticas, que em alguns contextos afetam uma exata compreensão do problema.
Recorde-se que os relatórios da ABRELPE acusam a existência de “alguma iniciativa
de coleta seletiva” em 62% dos 5.570 municípios brasileiros em 2013,
concentradamente nas regiões Sul (34%) e Sudeste (52%).
IHU On-Line – No que esta definição seria
problemática?
Maurício Waldman – Ora, suponha que eu convide
alguém para almoçar na minha casa e o convidado indague sobre o que iremos
comer. Imagine se eu responder que vamos nos fartar com “algum tipo de
comida”. Bem, “algum tipo de alimento” pode ser qualquer coisa: o que
sobrou do jantar de ontem, pão amanhecido, uma maçã devorada pela metade ou
alguns pedaços de pizza. Na mesma lógica “alguma iniciativa de coleta seletiva”
significa que uma cidade pode ter um ecoponto isolado na rodoviária ou uma
“ilha recicladora” em algum parque e, apesar desta precariedade, ser brindada
com o status de disponibilizar serviço de Coleta Seletiva de Lixo – CSL.
IHU On-Line – Mas a proporção dos materiais
reciclados tem aumentado?
Maurício Waldman - De um modo geral, sim. Mas, como
sempre, muitos passos aquém do necessário. Em princípio o Brasil tem
marcado algumas boas posições no ranking mundial da reciclagem. A recuperação
da lata de alumínio atinge índices verdadeiramente icônicos, da ordem de 97,9%,
imbatível no mundo inteiro. Quatro outros materiais — latas de aço, papel,
plástico e embalagens longa vida — também apresentam porcentagens expressivas
de reciclagem: 47%, 45,7%, 58,9% e 27%. Contudo, entenda-se que ocorre uma
procura pelas sobras que auferem maior valor nas bolsas de recicláveis. Dito de
outro modo, são resgatados os resíduos mais bem posicionados junto aos polos
mais capitalizados da economia. Sem contar a irrisória porcentagem da
compostagem da fração orgânica do lixo — em torno de 2%, uma das mais baixas do
mundo —, ainda assim existem falhas gritantes atingindo ciclos produtivos que
deveriam dispor de uma logística mais azeitada.
IHU On-Line – Em qual sentido?
Maurício Waldman - Confira-se o caso da indústria
têxtil. Por incrível que pareça, o Brasil está importando plástico PET
do Paraguai para abastecer a linha de produção de camisetas. Também
compra no exterior restos de roupa para fazer estopa. Isso porque a captação no
território nacional é insuficiente para atender a demanda das recicladoras.
Damo-nos ao luxo de perder em torno de 50% do plástico PET nas sarjetas
e desperdiçamos 90% dos restos têxteis. Atentemos que o Brasil importou mais de
223 mil toneladas de resíduos nos anos 2008-2009. Isso num país em que o lixo
transborda por todos os lados.
IHU On-Line – A importação de lixo evidencia
problemas de gestão?
Maurício Waldman - Sem dúvida alguma. Uma
ponderação se impõe: estamos dando solução ao lixo dos outros e permitindo que
nossos rios regurgitem garrafas plásticas e os aterros fiquem entupidos com
retalhos das confecções. Esses são claros exemplos das falhas estruturais nos
esquemas de interceptação das sobras. Neste cenário é difícil ficar deslumbrado
com apontamentos indicando crescimento de municípios com CSL, divulgados
pelo Compromisso Empresarial para a Reciclagem – CEMPRE. Na realidade,
mesmo que o número de municipalidades com programas de CSL tenha passado
de 405 em 2008 para 766 no ano de 2012, a população brasileira atendida pela
CSL passou de 26 para 27 milhões.
Em síntese: um desempenho manifestadamente
medíocre. Para arrematar, a eficiência do serviço público é, no geral, muito
baixa. A porcentagem de rejeitos na composição gravimétrica se mantém elevada,
principalmente pela ausência de investimentos em educação ambiental. A falta de
proficiência técnica gera perdas indevidas de materiais coletados. As metrópoles
brasileiras enterram fração considerável dos recicláveis colocados pela
população nos contêineres das prefeituras. Não fosse o trabalho digno e honrado
dos catadores, tecnicamente não existiria reciclagem no Brasil.
“Não fosse o trabalho digno e
honrado dos catadores, tecnicamente não existiria reciclagem no Brasil”
|
IHU On-Line – Este panorama tem se alterado?
Maurício Waldman - Sim, mas do mesmo modo que a
reciclagem como um todo. Qual seja: vários passos atrás do que de fato a
sociedade precisaria. Rubrique-se que, embora o PNRS reconheça o resíduo
sólido reutilizável e reciclável como bem econômico, dotado de valor social,
gerador de trabalho, de renda e promotor de cidadania, a resistência em firmar
parcerias com entidades dos catadores é manifesta. Segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dentre os programas de CSL
em curso nos municípios brasileiros em 2008, apenas 43% destes envolviam a
participação de cooperativas de catadores. Mesmo assim, tais iniciativas
oscilam enormemente quanto à vontade política das prefeituras em calçá-las com
apoio efetivo. Certificando esta última postura, a nota oficial divulgada pelo Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, em 05-08-2010, é
lapidar. O MNCR alertou que somente 142 municípios brasileiros (2,5% do
total) mantêm parceria com associações e cooperativas de catadores.
IHU On-Line – Qual a origem desta ausência de
diálogo como os catadores?
Maurício Waldman - Existe toda uma carga de
estereótipos que impregnam negativamente a percepção dos catadores junto a um
segmento ponderável da opinião pública, particularmente devido à própria
natureza da atividade destes trabalhadores, que manipulam materiais
classificados pelo código cultural dominante como lixo. Existem muitos relatos
de incêndios criminosos de galpões utilizados pelos catadores para a triagem
dos recicláveis, apreensões ilegais de carroças, diversos tipos de impedimentos
à catação e atos de violência direta perpetrados com apoio de forças policiais.
Mantém-se um relacionamento contraditório com os grupos de catadores:
necessários por proverem poderosos grupos empresariais das cobiçadas sobras que
sustentam suas linhas de produção; rejeitados por força de estigmas culturais,
raciais e sociais que se abatem contra a população pobre do país, agravados, no
caso da população catadora, por singularidades que os tornam incompatíveis com
o padrão sociocultural hegemônico. Apenas a mobilização permanente da
categoria, apoiada por organizações religiosas e/ou ambientalistas, tem
garantido a manutenção das suas conquistas, a defesa dos seus direitos e o
avanço das suas reivindicações.
IHU On-Line – Quais são as principais problemáticas
do lixo domiciliar no país? Quais são os resultados da sua pesquisa sobre o
tema, considerando o período de 2006-2010?
Maurício Waldman - Num prisma conceitual, a obra do
geógrafo Milton Santos, pontuando a importância dos processos nas configurações
materializadas no espaço geográfico, nos proporciona um excelente marco
teórico. A célebre máxima pela qual o espaço resulta de uma acumulação desigual
de tempos é matricial para analisar os refugos e suas variáveis junto à
realidade concreta e nas flexões do imaginário social. Retenha-se que a
expressão modernidade é das que mais incorrem em afetações ideológicas.
Portanto, não pode ser utilizada aleatoriamente. Citando Milton Santos uma vez
mais, o geógrafo advertia que a globalização se especifica diferentemente no
espaço mundial. Daí ser falho pressupor uma sociedade moderna abstrata.
Coerentemente, numa formação socioespacial como a brasileira, uma gestão
atendendo a princípios quanto aos materiais descartados não pode copiar
metodologias — modernas ou não, tanto faz — em vigor na França, México, Noruega
ou Egito. Conforme consta na Pesquisa de Pós-Doutorado pela UNICAMP e em
Lixo: Cenários e Desafios, o que se tem no país são resíduos sólidos
brasileiros, aos quais cabem soluções brasileiras. Neste quesito, medidas de
incentivo e apoio aos catadores, desobrigação tributária da reciclagem,
programas de lixo-educação, valorização de materiais autóctones, revisão da
matriz energética e, inevitavelmente, a reforma do Estado, são todas urgentes,
indispensáveis. Este é o debate central e fundamental. Mas ignorado quando se
trata de esclarecer a questão teórica do lixo.
IHU On-Line – Qual é o impacto do lixo nas cidades?
Quais os principais entraves gerados por conta da destinação incorreta do lixo?
E os impactos em cidades brasileiras?
Maurício Waldman - Esta questão pode ser colocada
em mão dupla: os impactos do lixo nas cidades e os que ocorrem a partir das
cidades. O meio urbano se tornou, desde o século XIX, o epicentro da
civilização moderna, eixo de um estilo de vida cada vez mais identificado com o
consumismo e a utilização perdulária dos insumos naturais. Para comprovar esta
colocação basta situar o cálculo de que as 29 mais glamorosas metrópoles
europeias, visando manter em funcionamento sua engenharia urbana, arrebanham
recursos de territórios 1.130 vezes mais extensos do que a área que ocupam.
Outra coletânea de dados sobre o apetite urbano por insumos é a informação de
que as cidades ocupam 6% da superfície terrestre.
Porém, reclamam para si 60% das águas doces e 75%
dos recursos naturais planetários. Na ótica do relacionamento com o ambiente, a
titularidade do meio urbano é inquestionável: as metrópoles mantêm o conjunto
da biosfera sob seu tacão, submetida na condição de refém das expectativas, desejos
e vontades citadinas. Assim sendo, pressionadas por demandas crescentes e
correndo o risco de serem asfixiadas sob o acúmulo de dejetos gerados por elas
mesmas, as cidades promovem impactos que se estendem numa escala extremamente
vasta do espaço-tempo. Em suma: o meio urbano se tornou a expressão mais pura
da.
Civilização do Lixo.
IHU On-Line – No que isso implica?
Maurício Waldman - Significa que, a partir desta
linha de abordagem, não vem muito ao caso a magnitude da cidade. Tampouco sua
inserção numa lógica mais tecnificada ou menos tecnificada. O conjunto das
cidades está impactado pelos descartes que produzem e pari passu estão
impactando o ambiente numa escala sem precedentes. Não importam as distâncias
nem as especificidades. É neste seguimento que, para exemplificar, na região do
Oeste Paulista — onde atualmente desenvolvo minha terceira investigação de
pós-doutorado —, informações coligidas pelo Núcleo de Estudos Ambientais e
Geoprocessamento – NEAGEO, da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE,
radiografaram 22 aterros ativos. Existem pistas de que é um para cada
município. O único aterro sanitário em operação — situado em Presidente
Venceslau — é prova cabal da falácia em imaginar que esta modalidade seja
solução para a destinação final dos resíduos. Apesar das boas notas da Companhia
de Tecnologia de Saneamento Ambiental – CETESB, órgão do governo paulista,
o aterro, ao menos até recentemente, era frequentado por população do lixo, não
tratava o chorume e fazia vista grossa para a liberação de gás metano na
atmosfera. Isso ocorre numa região onde os horizontes texturais admitem ampla
capilaridade para infiltração, em especial pela configuração pedológica,
caracterizada por rochas sedimentares com porções de areia e argila. Pelo fato
de todo o Oeste Paulista apresentar solos arenosos e nesta senda, com
maior capacidade de percolação do chorume em face do meio poroso, é possível
concluir que os majestosos recursos hídricos da região estejam em franca
destruição. Uma tragédia dentre muitas com foco nos refugos.
IHU On-Line – Neste eixo de análises, qual seria a
relação entre lixo e economia?
Maurício Waldman - Este é um verdadeiro nó górdio
da economia moderna, comentado mais recentemente pelo economista ecológico
catalão Joan Martinez Alier. Porém, consiste num tema antecipado pelo
genial filósofo francês Abraham Moles. Na avaliação desse pensador, o
dinamismo do mercado implica a indução do descarte contínuo dos bens, ejetados
por um carrossel do consumo. No seu entrosamento mais literal, sua argumentação
sinaliza que vivemos numa civilização consumidora que produz para consumir e
cria para produzir, um ciclo onde a noção fundamental é a de aceleração. Numa
única palavra, vivemos numa Civilização do Lixo. Em termos do sistema de
produção de mercadorias, é importante notar que a função deste modelo é
impulsionar os ciclos de reprodução do capital. Quanto mais rápida as
mercadorias forem substituídas, tanto mais encorpado será o giro do dinheiro.
Quanto mais lixo, mais giro de capital.
IHU On-Line – Quais seriam os dilemas em torno da
gestão do lixo, tendo em vista as posições defendidas pelos catadores,
empresários, defensores do processo de reciclagem e do processo de incineração
do lixo?
Maurício Waldman - Os dilemas resultam das
contradições que grassam em meio à materialidade social, refletida nas
propostas defendidas pelos diferentes atores que disputam os resíduos. É
inegável a existência de um rol de problemáticas declinando em antagonismos e
crispações no campo empresarial, colocando setores do empresariado uns contra
os outros, embates que afetam diretamente o avanço de políticas públicas de
apoio aos catadores e de conservação dos recursos naturais.
IHU On-Line – Como ocorrem estes atritos?
Maurício Waldman - Pontuando melhor a afirmação,
para as recicladoras os resíduos constituem matéria-prima. Contudo, para muitas
empresas do segmento fabril, a reciclagem funciona apenas como uma
possibilidade de minimizar custos de produção. Simultaneamente, para os setores
envolvidos no esquema Waste to Energy, os rejeitos configuram meramente
um combustível, uma sucata energética e não algo reaproveitável. Ou seja: o
lixo não constitui insumo para o processo produtivo em si e tampouco é
percebido como fator para a minimização de custos. Por sua vez, para os grupos
empenhados com o gerenciamento dos aterros e coleta dos rejeitos, o que
interessa é a quantidade de refugos domésticos disponíveis para serem
coletados. Ignoram, portanto, a reciclabilidade dos materiais e a recuperação
da energia. Fechando o círculo, aspectos econômicos envolvidos na atividade não
são vistos na mesma perspectiva pelos catadores “avulsos” ou pelas
cooperativas. Existem também contraposições entre os que lidam com o comércio
de sucatas, entre os que as adquirem e os que retiram estes materiais das ruas,
isto é, os catadores.
“O que se tem no país são resíduos sólidos
brasileiros, aos quais cabem soluções brasileiras”
|
IHU On-Line – Neste fogo cruzado, como fica a
gestão pública?
Maurício Waldman - Percebem-se neste imbróglio
discordâncias entre os gestores públicos e a plataforma defendida pelos
catadores, discrepâncias dos prefeitos frente às propostas das empresas que
atuam com o lixo e todo um leque de contraposições programáticas no seio das
próprias administrações. Particularmente, é obrigatório destacar a perpetuação
de modelos ultrapassados de gestão, solenemente ignorando a reciclagem enquanto
política pública efetiva e, quando muito, voltados para despachar os restos
para um aterro sanitário qualquer.
IHU On-Line – Por que, mesmo com a Política
Nacional de Resíduos Sólidos, os municípios encontram dificuldades em acabar
com os lixões, considerando que não conseguiram cumprir a meta de erradicar os
lixões até agosto?
Maurício Waldman - Antes de qualquer pontuação,
seria absolutamente fundamental recordar que a caprichosa forma como a política
é gerida no país não garante que a aprovação de uma lei pressuponha força
normativa. Não é à toa — confirmando a leniência observada no cumprimento das
normas legais — que o linguajar popular brasileiro predica que as leis possam
“pegar” ou “não pegar”. Nesta linha de arguição, teríamos igualmente “não-leis
que pegam”. Este é o caso bastante conhecido da “legislação” autogerida
pelos condomínios impondo o uso do elevador de serviço para pobres, pessoas
malvestidas, negros, mestiços e outros “indesejáveis”. Este “código legal”
apenas deixou de vigorar com a promulgação de lei oficial proibindo essa
prática discriminatória e pela pressão social, particularmente a movida pelo
movimento negro. E para além da condicionalidade, existem também embaraços
quanto à consecução das legislações, sujeitas em ser erodidas pelo mandonismo
local, pelos interesses das grandes corporações, pelo arbítrio dos poderes
governamentais e por intrusões políticas de todo o tipo. Nessa perspectiva, a
cobertura legal assentada nas legislações torna-se letra morta ou é acometida
de achaques constantes, visando inviabilizá-las ou pavimentar seu desmanche.
IHU On-Line – Quais os impasses na aplicação da Lei
12.305?
Maurício Waldman - O que estamos observando condiz
em tudo com o que acabei de colocar. Os fatos estão aí à vista de todos. Creio
que não houve qualquer voluntarismo na forma como se esboçou a legislação. O
simples fato de ter circulado duas décadas pelos corredores do poder comprova a
força dos interesses que pretendem sufocar qualquer normatização relacionada
aos resíduos no país. Mais ainda, a persistência dos segmentos de opinião que
percebem a gravidade da problemática do lixo. Contudo, o modo que marcou a
atuação dos atores institucionais favoráveis à Lei está diretamente relacionado
com as obstruções que têm perpassado pela sua aplicação. Isto pela simples
razão de que os impasses jamais poderiam ser imputados exclusivamente aos
adversários da Lei. Cabe aqui um papel importante à crítica política, dirigida
em especial aos que, transitando por espaços institucionais, imaginaram que o
exercício do senso público possa ser sumarizado por discursos pirotécnicos. E
pior, que lançar mão de rompantes – tipo Esta Lei já pegou – seja por si só
suficiente, desmentidos, aliás, pelo frigir dos acontecimentos. Transparece,
pois, numa direção contrária à arrogância destes círculos e de assessorias anexas,
que a prática se mantém como critério central da verdade.
IHU On-Line – Como o senhor vê as propostas em
torno da produção de biogás a partir do uso de resíduos sólidos?
Maurício Waldman - Esta proposta é bastante
atraente, mas cabem correções e reparos. Acredito que antes de pautarmos
políticas para aproveitar o metano dos aterros, precisamos retroagir nos
processos e radiografarmos o problema na origem. Nesta averbação se impõe o
imperativo em reciclar nos próprios lares os restos culinários. A saber: no
geral a reciclagem da fração úmida ou orgânica do lixo domiciliar recebe
pouquíssima atenção dos cidadãos, das autoridades e dos especialistas. Seria
cômico se não fosse sério consignar que, mesmo na literatura técnica e nos
planos de gestão do lixo em todos os níveis administrativos, sequer se destaca
que os orgânicos podem ser reciclados. Nesta vertente, temos imensa
potencialidade colocada pelos refugos orgânicos.
IHU On-Line – Como isso poderia ser feito?
Maurício Waldman - É perfeitamente possível compostá-los
nas residências. É o que comprova a notável iniciativa de entidades como Morada
na Floresta, atuante na capital paulista, que tem divulgado e estimulado o
uso residencial de minhocários. Reciclar resíduos orgânicos em casa
permanece como prática essencial para solucionar o problema do lixo urbano.
Entenda-se que no país as sobras de cozinha constituem fração majoritária dos
descartes residenciais. Normalmente 60% do total. Mesmo os resíduos municipais
da cidade de São Paulo — a mais cosmopolita das metrópoles brasileiras —
perfazem 51% de orgânicos da sua composição. Tais emolumentos estatísticos
falam por si mesmos. Implantando-se a compostagem residencial, mais da metade
do lixo simplesmente desaparece, se tornando um recompositor de solo da melhor
qualidade. Deste modo, transformamos um problema em solução a beneficiar o
conjunto da sociedade.
IHU On-Line – Existem experiências realizadas nesta
direção?
Maurício Waldman – Sim, claro. São muitas as
experiências significativas de países europeus, sempre a partir da segregação
na fonte. Hoje em dia, menos de 3% dos resíduos orgânicos do lixo domiciliar da
Áustria é encaminhado para os aterros. Na Alemanha e nos Países
Baixos mais de 80% da população colabora com a coleta seletiva de
orgânicos.
Aproximadamente 33% dos belgas composta o lixo
culinário. Complementando, seria oportuno registrar a possibilidade de
geração de metano nas residências, poupando o contribuinte dos caros e nem
sempre eficientes equipamentos geridos pelo Estado. Para comprovar, existe o
sucesso dos planos chineses de geração de metano no âmbito doméstico. Em 2004,
15 mihões de domicílios chineses utilizavam biogás alimentado pelo próprio
núcleo residencial. Esse número cresceu para 27 milhões de lares em 2010. No
decênio 2003-2013, foram construídos 41,7 milhões de biodigestores de pequena
escala no meio rural da China. Gestores públicos dos EUA, Canadá
e de muitos países europeus têm demonstrado simpatia pelo biogás residencial,
basicamente por solucionar na raiz dois graves problemas: a destinação final do
lixo e a produção de energia.
IHU On-Line – Neste contexto, qual seria a melhor
maneira de erradicar o lixo produzido ou reaproveitá-lo de algum modo,
considerando o contexto brasileiro?
Maurício Waldman - Certifique-se de que não existe
erradicação total do lixo. O chamado Zero Waste pode até encantar os
ouvidos. Contudo, deve ser avaliado com base em dados objetivos. Objetivamente Lixo
Mínimo soaria mais correto. Assinale-se que toda atividade humana gera
resíduo, sendo que deste montante devemos excluir os rejeitos, sobras não
passíveis de reaproveitamento. Claro que existe um avanço contínuo do aparato
tecnológico abrindo brechas para o ingresso de materiais dantes descartados nos
circuitos da recuperação. A caixinha longa vida e o isopor comprovam este
raciocínio. Não eram recicláveis, mas passaram a ser. Todavia, tal como
registrado em Lixo: Cenários e Desafios, a questão mais profunda que o
lixo nos coloca é a questão do estilo de vida, dos padrões de consumo, das
perspectivas imaginárias que modelam o comportamento da maioria das pessoas. No
Brasil como em qualquer parte do mundo, o que a Era do Lixo está
expondo de modo radical é a impossibilidade de mantermos o modus vivendi e o
modus operandi que lastreou o surgimento e a difusão da civilização ocidental.
Ao menos da forma como se tornou conhecida. Hoje, nos deparamos com uma versão
contemporânea do enigma filosoficamente colocado pela Esfinge pela mitologia da
Grécia antiga. É como se o lixo estivesse nos dizendo: Decifra-me ou devoro-te.
IHU On-Line – Então na sua avaliação o mundo já
chegou numa situação limite em relação à quantidade de lixo produzido e às
possibilidades de dar um destino adequado a ele, ou o desenvolvimento de
tecnologias dará conta de solucionar esse problema?
Maurício Waldman - Seria uma vez mais meritório
advertir que os lixos já assumiram os contornos de uma calamidade
civilizatória. Em termos mundiais, apenas a massa de lixo municipal coletado,
estimada em 1,2 bilhão de toneladas, supera nos dias de hoje a produção global
de aço, orçada em 1 bilhão de toneladas. Por sua vez, as cidades, estacas
geográficas da Modernidade, ejetam 2 bilhões de toneladas de refugos, superando
no mínimo em 20% a produção planetária de cereais. Os números falam por si mesmos.
Hoje, o mundo está mais voltado para gerar refugo do que produzir carboidrato
básico. Neste quadro marcado por uma profunda inversão de valores, não creio
que mais tecnologia seja a solução. Por sinal, a crise do lixo que
presenciamos resultou exatamente da imposição radical de gradientes técnicos no
ambiente de vida.
IHU On-Line – Qual seria a solução?
Maurício Waldman - Caso o problema seja técnico,
precisamos então rever o que entendemos por técnica. Entre os antigos gregos, a
noção de tekhne — origem das palavras técnica e tecnologia — estava
impregnada de noções estéticas, incluindo a beleza e o bem-estar das
populações. É exatamente disto que precisamos: repensar padrões, rever
prioridades, reconsiderar ações e procedimentos. Precisamos acima de tudo de
mais Humanidade, mais respeito ao meio ambiente e às futuras gerações. Debate
este em cujo seio o Lixo desponta como uma preocupação essencial.
(Por Patricia Fachin)
Fonte: IHU On-line
Nenhum comentário:
Postar um comentário