O que o mundo está fazendo para
acabar com a pobreza?
por
Alessandra Nilo e Vera Masagão Ribeiro*
A desigualdade continua a ser um insulto à condição
humana: quase um bilhão de pessoas vivem com fome e em pobreza extrema.
Como seguimento à Declaração do Milênio de 2000, as
Nações Unidas, conduzidas pelo ganês Kofi Annan, estabeleceram os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM) visando orientar os esforços da comunidade
internacional para o desenvolvimento até o ano de 2015.
Longe de ser um acordo ideal ou vinculativo (que se
torna lei nacional ao ser assinado), os ODM também foram considerados
reducionistas diante do consagrado Ciclo de Conferências Sociais dos anos 90 e
deixaram de fora questões centrais, silenciando, por exemplo, uma já evidente
epidemia global de violência contra as mulheres. Apesar das críticas, porém,
bastante dinheiro foi mobilizado sob o slogan “Oito Jeitos de Mudar o Mundo”, e
esse esforço multilateral fez chegar investimentos em áreas essenciais. Mas, no
geral, recursos e empenho das lideranças foram insuficientes para o alcance de
todos os Objetivos acordados.
Após uma década de trabalho, já em 2011, a ONU
reconheceu que empoderar mulheres, desenvolver industrialmente e em escala num
modelo ambientalmente sustentável e proteger as pessoas mais vulneráveis das
múltiplas crises (como volatilidade nos preços de alimentos e energia, por
exemplo) e guerras não é uma tarefa simples, nem pequena. Em tempos de Piketty,
é fácil provar as iniquidades que persistem e se ampliam. Apesar da “nova
geopolítica”, dos avanços tecnológicos e da diminuição de pobreza extrema em
países como Brasil e China, a desigualdade continua um insulto à condição
humana: quase um bilhão de pessoas vivem com fome e em pobreza extrema, a
despeito dos dados abundantes que denunciam os danosos impactos deste modelo,
marcado pela concentração de riqueza e no qual a pobreza continua a ser causa e
consequência de relações desiguais de poder, seja do ponto de vista de gênero,
econômico ou racial.
Assim, apesar do prazo de validade até 2015, o
debate sobre o futuro pós-2015 capturou a agenda desde a Conferência sobre
Desenvolvimento Sustentável – a Rio +20, realizada no Brasil em 2012. E,
combinado o propósito de reduzir a pobreza no mundo, a questão seguinte foi
acordar o “como” isso seria feito.
Para evitar que os novos objetivos ficassem nas
mãos do secretariado da ONU (como ocorreu com os ODM), a Rio +20 logo
estabeleceu dois processos intergovernamentais. O primeiro, o Grupo de Trabalho
Aberto (GTA), para elaborar uma proposta de objetivos que, desta vez, fossem
sustentáveis e equilibrados no tripé social, ambiental e econômico. O segundo
grupo, a Comissão de Peritos sobre Financiamento do Desenvolvimento Sustentável
(CPFDS), deveria recomendar como pagar a conta dos novos objetivos. Agora,
ambos os relatórios estão concluídos e, juntos com o relato do Painel de Alto
Nível responsável pelo monitoramento da implementação da agenda pós-2015,
subsidiarão a 69ªAssembleia, que definirá a segunda fase da negociação.
E as negociações, na primeira fase foram bem
tensas… A proposta do GTA, após 16 meses de duros embates, foi concluída em
julho, prevalecendo o acordo maior que era o de chegar a um acordo. O
documento, aprovado sob aplausos nervosos após uma última negociação que durou
quase 30 horas ininterruptas, foi imediatamente criticado pelos países por
questões temáticas ou processuais mas, claramente, para além dos 17 Objetivos e
das mais de 100 metas, o maior produto foi garantir a base dessa agenda
multilateral para erradicar a pobreza.
Todo consenso, porém, tem um preço e esse, pago à
vista ou a prazo, não será pequeno depois de países, sociedade civil e agências
da ONU divergirem tanto sobre tantos temas. Direitos sexuais e reprodutivos, igualdade
de gênero, sociedades pacíficas/acesso à justiça, ocupação estrangeira,
terrorismo e mudanças climáticas encabeçaram a lista das controvérsias, tendo
como pano de fundo divergências sobre os meios de implementação e o debate
sobre responsabilidades comuns, porém diferenciadas, entre países desenvolvidos
e em desenvolvimento.
O movimento global de AIDS, por exemplo, reclama
que todo o ODM 6 (sobre AIDS, tuberculose e malária) tenha sido reduzido a uma
meta única do objetivo de saúde. Já para o Grupo de Mulheres da sociedade civil
(Women’s Major Group), a proposta atual é pouco ambiciosa, não transformará os
sistemas econômicos e financeiros, nem promoverá direitos humanos. “O GTA não
apresentou meios claros de como implementar as metas (…). Os direitos das
mulheres a decidir sobre paz e segurança e a controlar sua sexualidade; os
direitos dos povos indígenas e os direitos sexuais estão gravemente ausentes
dessa agenda (…)”. De fato, mesmo com o compromisso de Ban Ki-moon de que
“ninguém será deixado para trás”, a aliança entre muçulmanos extremistas e
Vaticano impede gays, travestis e transgêneros, trabalhadores/as sexuais e
várias populações mais vulneráveis de entrar na agenda da ONU.
O problema é que esse resultado apenas reflete
tendências mundiais. Aqui no Brasil, por exemplo, na evidente disputa com os
fundamentalistas, a ala progressista está apanhando de 10 x 0. Basta lembrar do
Plano Nacional de Educação, que ignora a discriminação por orientação sexual e
o racismo nas escolas; das ideias do Estatuto do Nascituro e da Família; da
repressão às manifestações populares; e da atual corrida presidencial, onde
candidatos/as vendem a alma, ao mesmo tempo, tanto ao diabo quanto às Igrejas.
Próximos Capítulos – A 69ª Assembleia Geral irá
responder as questões em aberto. O relato do GTA será a base do documento-zero
da nova rodada de negociações, abrindo outra vez cada uma das frases acordadas
para debate? A proposta dos ODS será aprovada como está e o novo foco será
“como” implementá-los, definir mecanismos de governança e os indicadores?
De um jeito ou de outro, os problemas ainda são
vários. O relatório dos peritos em financiamento, por exemplo, considerou o
trabalho do GTA, mas não indica como financiar os objetivos, apenas aponta
opções para que cada país escolha conforme prioridades e contextos. Já o Fórum
Político de Alto Nível, cujo mandato tem instruções claras sobre a participação
da sociedade civil, afirma em sua Declaração do Ministerial (de julho) que um
processo transparente deve conter contribuições de todas as partes
interessadas, mas não deu acesso à sociedade civil aos documentos durante os
debates, chegando a excluir as ONGs da observação das negociações informais.
Isso é grave, pois um futuro verdadeiramente
sustentável exige mecanismos de monitoramento das ações governamentais e um
ambiente propício à atuação da sociedade civil. Os ODS em construção não
valorizam a contribuição fundamental e o papel das comunidades para a
democracia global. Tanto na ONU como no Brasil a disputa por um Estado
radicalmente democrático se acirra, basta ver a atual guerra contra a Política
Nacional de Participação Social.
Sim, há boas propostas que precisam permanecer na
segunda fase das negociações – ter conseguido um Objetivo para Equidade de
Gênero e Empoderamento das Mulheres, por exemplo. Mas há enormes lacunas nos
pilares sociais e ambientais e falta apetite para quebrar o paradigma,
comprovadamente desastroso, de “crescimento econômico a qualquer custo”. O ODM
8, que aborda questões chave para a justiça econômica, cujo fracasso todos
reconhecem, pediu parcerias globais lideradas pelos governos, mas o que vimos
foi o poder do setor privado predominar sobre o interesse público, algumas
vezes até corroendo a infraestrutura de serviços públicos e contribuindo para a
combinação de contínuas crises – alimentos, energia e mudanças climáticas e,
claro, para as crises financeiras. E o risco de que o setor privado continue a
definir prioridades públicas pós-2015 continua.
A Agenda pós-2015 deveria tratar da democratização
da economia, e reconhecer que nenhum objetivo de erradicação da pobreza extrema
será suficiente se não incorporar mecanismos para redução da riqueza extrema.
Mas isso exigiria, claro, muito maior vontade política do que a disponível
hoje, seja na ONU ou no Brasil onde, apesar de termos instrumentos de regulação
do sistema financeiro, como taxas sobre transações financeiras, falta muito
para aprovarmos uma tributação progressiva e justa. A reforma tributária hoje é
tão necessária quanto a política.
A verdade é que o atual debate sobre
desenvolvimento sustentável na ONU influenciará modelos urbanos, matrizes
energéticas e várias políticas globais, materializando-se (ou não) em serviços
de saúde, educação, segurança, mobilizando bilhões de dólares nos próximos 15
anos. Afetará pessoas que dificilmente saberão dessa discussão e cuja vida a
maioria dos que leem agora esse texto talvez jamais suportasse ter.
Depois de andar por grandes favelas em todo mundo e
trabalhar em 16 países promovendo ligações entre as políticas globais e as
locais, pensar desenvolvimento, equidade e direitos humanos é também pensar nas
pessoas que ainda hoje veem ratos subindo no colchão sujo de suas crianças, sem
ter nada a fazer. É muito fácil explicar a relação entre o colchão sujo, os
ratos e a ONU. Quem acompanhar as negociações dos próximos doze meses,
entenderá.
* Alessandra Nilo é jornalista, coordenadora
da ONG Gestos e diretora estadual da Abong em Pernambuco. Ela é membro da Força
Tarefa de Alto Nível para Cairo+20 (www.icpdtaskforce.org) e representa a
sociedade civil da América Latina e Caribe no Conselho Diretor da UNAIDS. Vera
Masagão Ribeiro é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (1998), representante da Associação Brasileira de ONGs (ABONG) e
integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
Fonte: Carta Capital
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