Irrigação de cana com esgoto
doméstico tratado economiza água, reduz consumo de adubo e emissão de gases do
efeito estufa.
Esgoto doméstico tratado pode ser usado para
irrigar plantações de cana-de-açúcar de modo a produzir benefícios ambientais e
ganhos maiores para o produtor, mostram duas teses de doutorado defendidas na
Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp. Entre as vantagens para o
meio ambiente do uso de esgoto, estão a economia de água, da redução do consumo
de adubo, da poluição e da emissão de gases do efeito estufa.
“O sistema que usamos, gotejamento
subsuperficial, também reduz o risco de contaminação” do agricultor ou das
águas subterrâneas pelo esgoto, explicou ao Jornal da Unicamp o
autor de uma das teses, Eduardo Augusto Agnellos Barbosa, que ao lado do autor
do outro trabalho, Leonardo Nazário Silva dos Santos, acompanhou a reportagem
numa visita ao local do experimento: uma área da Feagri onde foram montados uma
pequena estação de tratamento de esgoto e os equipamentos necessários para
levar o efluente ao campo plantado com cana. As pesquisas foram orientadas pelo
professor Edson Eiji Matsura.
“O esgoto é transportado por tubulações, não
havendo contato do trabalhador rural com o líquido”, disse Eduardo. “E o
gotejamento subsuperficial entrega a água diretamente no sistema radicular. É
como se estivéssemos pondo a comida bem na boca da planta”, acrescentou.
“Controlando corretamente a lâmina de irrigação e a profundidade de instalação
do gotejador, não há perda do efluente”, acrescentou Leonardo.
“O solo atua como um filtro natural desse
efluente”, complementou. “E como a cana possui alta capacidade de absorção de
nutrientes, acaba sendo um casamento perfeito”. Como todo o equipamento de
irrigação, no campo plantado, é subterrâneo, o sistema também possibilita que
os tratos culturais, inclusive a colheita, sejam mecanizados.
Mesmo após as etapas de tratamento a que é
submetida, a água do esgoto chega à raiz da planta carregada de nutrientes,
especialmente o nitrogênio, que, se lançados nos rios, poderiam causar
proliferação de algas, bactérias e levar à poluição. Aplicando o efluente na
irrigação, não só se evita isso, como se reduz a necessidade de adubo das
plantas, já que os nutrientes presentes no esgoto cumprem esse papel. Além
disso, o equipamento de irrigação montado na Feagri permite complementar a
necessidade nutricional da planta, caso o efluente não aporte a quantidade
necessária.
Aplicação no solo
Com a irrigação, o solo pode vir a representar
“uma alternativa para a disposição do esgoto”, escreve Leonardo em sua tese. “A
maior extração de nutrientes pela planta e posterior exportação do campo para
as indústrias minimizam as perdas de nutrientes para o ambiente e os possíveis
danos ambientais”.
Na pesquisa de Leonardo, foram avaliadas duas
profundidades de instalação do tubo gotejador, os atributos físicos e o
desenvolvimento radicular da cana-de-açúcar submetida à aplicação de efluente.
Observou-se que a instalação do tubo gotejador a 0,2 m de profundidade disponibilizou
água na região de maior desenvolvimento radicular e reduziu as perdas do
líquido.
Os pesquisadores não observaram alterações no
índice de qualidade do solo, pois os parâmetros sódico-salinos do solo irrigado
com esgoto estavam dentro dos limites adequados para o cultivo da
cana-de-açúcar. Além disso, os trabalhos mostraram que não houve alterações nas
propriedades físicas do solo e limitações no desenvolvimento do sistema
radicular da cana-de-açúcar.
“No sistema convencional de plantio, há uma maior
poluição das águas, por causa da disposição do adubo”, disse Eduardo. No
plantio tradicional, os nutrientes são aplicados sobre o solo, e parte desse
material pode acabar indo parar em rios e lagos, especialmente depois de
chuvas. Ao evitar a adubação por cobertura, o sistema de gotejamento reduz a
perda de nitrogênio por lixiviação – dissolução na água e erosão – do nitrato e
volatilização do óxido nitroso, além de evitar a emissão de gases do efeito
estufa.
“A aplicação de esgoto traz um leve incremento na
emissão de dióxido de carbono”, reconhece Eduardo. “Mas há uma boa redução do
óxido nitroso, que é um potente gás do efeito estufa. No sistema tradicional, o
nitrogênio é aplicado sobre o solo, todo de uma vez. Utilizando o gotejamento
subsuperficial para aplicar o esgoto, o nitrogênio entra aos poucos durante o
ciclo de cultivo, o que aumenta a eficiência da aplicação. No balanço entre as
entradas e saídas de gases do efeito estufa, o saldo nos cultivos irrigados é
maior que no plantio convencional”.
Em sua tese, Eduardo mostra que, dos três métodos
de cultivo testados – irrigação com esgoto, irrigação com água de reservatório
e o tradicional, com adubação na superfície do solo – o que menos emite gases
de efeito estufa é o de irrigação com água de reservatório e o maior emissor, o
método com adubo aplicado em superfície.
De acordo com a Agência de Proteção Ambiental
(EPA) dos Estados Unidos, o óxido nitroso tem um potencial de aquecimento
global 310 vezes maior que o do dióxido de carbono. Ainda segundo a EPA, 8% das
emissões mundiais de gases causadores do efeito estufa são de óxido nitroso,
ante quase 80% de dióxido de carbono. A tese de Eduardo também avaliou a
chamada “pegada hídrica”, o consumo de água no cultivo da cana, e concluiu que
a irrigação com esgoto apresenta a menor pegada.
A questão do consumo de água também foi uma
preocupação central na tese de Leonardo. Como ele escreve em seu trabalho, “a
reutilização de água proveniente de estações de tratamento de esgoto
apresenta-se como opção para reverter o quadro de escassez e, ainda,
proporcionar benefícios sociais e ambientais, pois constitui num método que
minimiza a poluição nos mananciais e possibilita a liberação de recursos
hídricos de melhor qualidade para atividades mais nobres”, como o abastecimento
de água potável.
Produtividade
Os pesquisadores lembram que estudos anteriores
já haviam mostrado que a irrigação pode aumentar a produtividade da
cana-de-açúcar. “O rendimento médio da produção de cana-de-açúcar no Brasil é
baixo quando comparado aos resultados obtidos em pesquisas de cana-de-açúcar
irrigada”, escreve Eduardo, em sua tese. Leonardo, por sua vez, cita autores
para quem “a irrigação se torna uma prática essencial para manutenção e aumento
da produtividade dos cultivos, principalmente de espécies com grande
importância econômica como a cana-de-açúcar”.
No experimento de irrigação com água de esgoto,
foi constatada uma maior produtividade na comparação com o método tradicional
de plantio. “Com a irrigação, consegue-se mais de 200 toneladas de cana por
hectare”, disse Eduardo, citando que a produtividade média no Estado de São
Paulo fica em torno de 80 toneladas por hectare. Em sua tese, ele cita um
estudo realizado em Lins, no interior paulista, que encontrou “baixa
contaminação com metais pesados no esgoto doméstico tratado e acréscimo de
produtividade de aproximadamente 50% em relação ao cultivo tradicional”.
Na área plantada na Unicamp para o experimento
dos pesquisadores, é possível ver como as plantas de cana-de-açúcar irrigadas
com esgoto são maiores – mais altas e mais grossas – do que as cultivadas pelo
método tradicional. Na Feagri, a plantação não irrigada produziu 160 toneladas
de cana por hectare, ante mais de 200 toneladas do cultivo irrigado.
Sistema
O esgoto usado no experimento realizado na Feagri
foi o produzido na Unicamp, pela Faculdade de Engenharia Agrícola e algumas
unidades próximas. “Incluindo banheiros, água da limpeza e resíduos dos
diversos laboratórios existentes”, disse Eduardo. O tratamento do líquido passou
por três etapas: decantação, reatores anaeróbicos – onde bactérias atacam o
efluente – e um tanque de macrófitas, plantas que absorvem grandes quantidades
de nutrientes da água.
“É um sistema simples de tratamento, que pode ser
utilizado em qualquer propriedade”, disse Leonardo. Também há um estágio de
filtragem, mais adiante, antes que a água chegue às plantas, além de uma etapa
na qual o efluente pode ser enriquecido com outros nutrientes, caso necessário.
Com os resultados das duas teses, “a gente já
consegue dizer que é um sistema viável, que pode e deve ser implementado” no
Brasil, disse Eduardo. Mas adoção da tecnologia requer, além da avaliação da
situação particular de cada produtor – se o esgoto gerado em sua propriedade é
suficiente, se tem as características nutricionais adequadas – uma
regulamentação para aplicação de esgoto na agricultura, destacam os autores.
“Não temos uma lei específica para o uso do
esgoto na agricultura”, explicou Eduardo. “Um dos nossos objetivos é
estabelecer padrões para o uso desse efluente” que possam servir de subsídio
para a legislação nacional, disse ele, lembrando que países como Estados
Unidos, México e Israel já têm regras para o aproveitamento do esgoto na
produção rural.
Quanto ao futuro do pequeno canavial experimental
da Feagri, o pesquisador disse que seria interessante instalar uma destilaria
no local. “Não para fazer cachaça”, brinca, “mas etanol. Além de servir como
laboratório para os estudantes interessados em agroindústria, não seria
interessante abastecer os carros da universidade com álcool feito aqui, a
partir de cana irrigada com esgoto?”
Publicações:
Tese: “Sustentabilidade
ambiental da produção de cana-de-açúcar irrigada com esgoto doméstico tratado
via gotejamento subsuperficial”;
Autor: Eduardo Augusto Agnellos
Barbosa;
Tese: “Irrigação da
cana-de-açúcar com esgoto tratado por gotejamento subsuperficial”;
Autor: Leonardo Nazário Silva
dos Santos;
Orientador: Edson Eiji Matsura;
Unidade: Faculdade de Engenharia
Agrícola (Feagri).
- Texto:
- Fotos:
- Edição de Imagens:
Diana Melo
Fonte: Jornal da UNICAMP Nº 605
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