Mobilidade urbana tem recursos,
mas faltam projetos, planejamento e continuidade.
Investir pesado,
cobrando planejamento e integração. Essas são as diretrizes principais que o
próximo governo federal – seja novo ou de continuidade – deve ter ao pensar nos
dilemas da mobilidade urbana no Brasil. Para especialistas no tema, houve
avanços, mas os problemas são tão complexos que será preciso muita vontade
política, e dinheiro, para resolvê-los. Além disso, eles defendem que é preciso
encerrar o que consideram uma incoerência de propor melhorias na mobilidade e
ofertar isenções e estímulos para aquisição de automóveis.
A questão principal para todos os entrevistados
pela RBA é o planejamento. Considerado avançado, o Plano Nacional de Mobilidade
Urbana foi sancionado em janeiro de 2012 e determina uma série de ações a serem
realizadas por todas as esferas de governo. Porém, a principal delas, o
desenvolvimento de planos de mobilidade por todas as cidades com mais de 20 mil
habitantes, não caminhou nem um passo após dois anos da sanção da lei.
Nem os especialistas, nem o Ministério das
Cidades souberam informar uma só cidade brasileira que tenha elaborado plano de
mobilidade. Hoje, 1.720 municípios são obrigados a cumprir o plano nacional,
que deve ser cumprido até abril de 2015. Do contrário, não poderão solicitar
recursos ao ministério.
Para o pesquisador Juciano Rodrigues, do
Observatório das Metrópoles, esse desinteresse nos planos está relacionado à
“cultura” dos gestores públicos de não pensar a longo prazo e querer resultados
dentro do mandato. “Os nossos políticos encaram os planos como os homens das
cavernas traçavam inscrições rupestres. Você ia lá desenhar o homem capturando
um animal e depois ia caçar certo de que ia ter boa caça.”
Para ele, muitos planos que surgem não se
enquadram nas exigências do Ministério das Cidades, pois são localizados e
direcionados a um ou outro modal. Em resumo, só cumprem a burocracia. “Nem
sempre esses planos entram nos meandros necessários para a sua execução, como
desapropriações e impactos ambientais da obra. Isso vai dificultar a execução,
causar atrasos”, critica o pesquisador.
Os planos devem orientar os projetos de
mobilidade, integrando os diferentes modais, prevendo investimentos, inclusive
em temas que não parecem estar diretamente relacionados, como desapropriações,
o que também aponta para a necessidade de que o documento dialogue com o plano
diretor estratégico da cidade, que organiza o crescimento do município.
Rodrigues destaca o Plano Diretor de São Paulo
como exemplo de planejamento que, se respeitado e aplicado, pode ter
consequências muito benéficas para a cidade. “O caminho adequado para qualquer
cidade é criar pequenos centros onde as pessoas vivam e trabalhem, propiciando
deslocamentos menores que podem ser feitos a pé, de bicicleta ou de ônibus”,
defendeu.
Além disso, têm de promover ações por ordem de
importância aos modais, privilegiando os não motorizados (pedestres e
ciclistas) seguido do transporte coletivo. Os carros são os últimos da lista.
Para o coordenador da Rede Nossa São Paulo,
Maurício Broinizi, esses planos são fundamentais para evitar que os problemas
da São Paulo de hoje sejam os de uma cidade pequena amanhã. “Se você pensar na
cidade, ver a estrutura a logística da mobilidade de São Paulo como aprendizado
dos erros cometidos nas grandes cidades, prevendo demandas futuras, você teria
condições de evitar um colapso dos transportes em outros locais”, avaliou.
Um dos principais apontamentos feitos pelos
especialistas é que o planejamento de mobilidade deve considerar o fato de que
muitas cidades em regiões metropolitanas têm zonas urbanas quase unificadas, ou
seja, não adianta pensar na estrutura de transporte de uma delas, porque vai
sofrer influência das demais.
No entanto esse ponto esbarra na busca de
recursos. Até agora, o Ministério das Cidades, pelo Programa de Aceleração do
Crescimento da Mobilidade (PAC Mobilidade), só recebeu projetos de duas cidades
com menos de 100 mil habitantes: Rio Grande da Serra, em São Paulo, e Serra
Dourada, na Bahia. A prioridade, no momento, são os projetos de municípios com
população entre 400 mil e 700 mil pessoas.
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), Renato Balbim, apesar do muito a fazer, a mobilidade
tem melhorado nacionalmente nos anos recentes. “Por dois fatores.
Primeiro,
pela crise da mobilidade, que fez com que ela entrasse na pauta de discussões.
E, depois, pelo momento histórico que a gente vive, de grandes investimentos em
mobilidade e transportes públicos”, avaliou.
Segundo o Ministério das Cidades, desde 2007
foram investidos R$ 145 bilhões em mobilidade urbana, entre verba federal e
contrapartida de estados e municípios. Desse total, R$ 50 bilhões são do Pacto
da Mobilidade Urbana, lançado em junho de 2013 para responder às demandas
surgidas durante as mobilizações contra o aumento das tarifas.
Ao todo, o governo federal apoia 336
empreendimentos como Bus Rapid Transit (BRT), corredores exclusivos com zonas
de ultrapassagem e pagamento desembarcado, metrôs, trens urbanos e hidrovias.
Essas obras somam investimentos de R$ 137 bilhões e chegam a 154 cidades.
Muitas foram propostas como legado de mobilidade da Copa do Mundo no Brasil.
Porém é preciso esclarecer que somente um terço
das obras está em execução. cerca de 75% dos empreendimentos têm recursos
aprovados, mas estão em fase de projeto executivo junto às cidades e estados.
Apesar do valor bilionário disponível, um estudo
lançado há duas semanas pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) indica
que o montante em mobilidade urbana para melhorar a situação de 18 das 63
regiões metropolitanas do Brasil seria de aproximadamente R$ 240 bilhões em
ações imediatas. Considerando também transporte de carga e logística, a verba
necessária sobe para R$ 980 bilhões.
Novas iniciativas
Alguns desses projetos já são realidade. Caso dos
BRTs Cristiano Machado e Central, em Minas Gerais, e Transoeste, no Rio de
Janeiro. No entanto a maior parte das obras iniciadas com o “selo” da Copa
ainda não foi entregue à população. Os Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) em
Cuiabá (MT), Fortaleza (CE) e em Manaus (AM), o monotrilho da Linha 17-Ouro do
Metrô de São Paulo, e os BRTs nas avenidas Bento Gonçalves, João Pessoa e
Protássio Alves, em Porto Alegre, não têm previsão de conclusão.
Para Balbim, do Ipea, o problema está no tempo em
que cidades e estados ficaram parados, sem desenvolver ações de mobilidade.
“Realizar projetos dessa envergadura, depois de quase 20 anos sem investimentos
na área, causa uma complexidade ainda maior. O conhecimento técnico da
administração vai embora, porque as pessoas se aposentam. Estamos no momento da
reestruturação”, explicou.
O BRT existia basicamente em Curitiba, cidade em
que foi criado, nos anos 1970. Somente as cidades de São Paulo e Goiânia tinham
sistemas semelhantes, mas muito menores. O da capital paulista inclusive é um
sistema de apenas 8,2 quilômetros, ligando o Sacomã, na zona sudeste, ao
Mercado Municipal, no centro. O antigamente chamado Fura-Fila deveria ter 33
km, mas o projeto foi abandonado. A cidade tem ainda 102 km de corredores,
feitos na gestão da petista Marta Suplicy (2000-2004), sendo parte
reconstruído. O prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT), tem projeto de
construir mais 155 quilômetros com apoio do governo federal.
Contudo a liderança absoluta desse modal é
questionada pelos especialistas. “O BRT até pode ter uma função estrutural em
algumas cidades, mas a vocação dele é de alimentação do transporte de alta
capacidade”, explica o pesquisador Juciano Rodrigues. Um vagão de metrô
transporta o equivalente a três ônibus articulados, 600 pessoas contra 200, no
limite da capacidade, e é mais adequado para as grandes capitais, como São
Paulo, Porto Alegre ou Salvador, defende o especialista.
Soluções antigas
Considerado o principal modal pela grande
capacidade e liberdade de circulação, o Metrô nos estados brasileiros foi
construído quase todo antes dos anos 1990 e expandido lentamente após os anos
2000.
Têm metrô as cidades de São Paulo (74,3 km), Rio de Janeiro (40,9 km),
Recife (71 km), Teresina (12,5 km), Brasília (42,4 km) e Belo Horizonte (28,2
km), num total de 269,3 km.
No mundo, há cerca de 140 redes de metrô. A maior
é a de Xangai, na China, com 567 km, iniciada em 1995, e o de Pequim, com 442
km de extensão. Os centenários metrôs de Nova Iorque e de Londres, têm 418 km e
408 km de extensão, respectivamente.
Exemplo da lentidão entre a primeira parte das
obras e a expansão, das 68 estações do Metrô em São Paulo, 45 foram entregues
até 1991. Sete, entre 1992 e 2000. E somente 16 de 2001 até hoje. O Metrô
paulista é operado pela empresa estadual Companhia do Metropolitano de São
Paulo.
É complicado fazer um comparativo da malha
estrutural do transporte metroferroviário no Brasil. Como muitos projetos
passam a operar sem conclusão e a inauguração de estações é aleatória no tempo,
é difícil medir a quilometragem efetivamente em operação. Como é ó caso da
Linha 4-Amarela do Metrô paulista, que opera seus 12,8 quilômetros, mas em
apenas seis das onze estações.
O dado mais preciso é sobre oferta de lugares no
sistema metroferroviário, feito pela Associação Nacional de Transportes
Públicos (ANTP) para os últimos dez anos. Em 2003, havia, aproximadamente, 825
mil lugares na rede de trilhos do país. Até 2012, cresceu 23%, chegando a pouco
mais de um milhão de lugares.
Para Maurício Broinizi, o governo federal deve
priorizar o investimento em metrô e trens urbanos de passageiros. “Há um
déficit imenso de investimento em trilhos no Brasil. O país precisa retomar sua
malha ferroviária, principalmente nas regiões metropolitanas. Sem investimento
pesado nessa área, não haverá solução adequada”, defendeu. Para ele, as cidades
devem ter nesse modal a base de mobilidade. As demais são complementares.
Enquanto as obras de mobilidade e transporte coletivo
caminham devagar, a demanda de mobilidade da população é resolvida
individualmente. E isso se reflete no crescimento da frota de carros e motos em
dez anos. Entre 2003 e 2013, a frota de carros quase dobrou. A frota de motos
foi multiplicada por seis. Já ônibus e trens cresceram apenas 23%.
Colabora muito o incentivo do governo federal à
compra de automóveis, por redução do Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI), iniciada em 2009 para fortalecer as vendas de eletrodomésticos e
automóveis em meio à crise econômica iniciada em 2008. Segundo dados da
Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) o setor
teria vendido 1,48 milhões de carros a menos se não houvesse o incentivo, com
impacto severo no 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos da indústria
automotiva.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento
e Tributação (IBPT) apontou que, de 2009 a 2013, o governo abriu mão de R$ 6,1
bilhões de tributos devido à desoneração do IPI sobre automóveis.
“Esse estímulo é um tiro no pé. Se a preocupação
é gerar emprego, é possível atuar na fabricação de caminhões, na renovação da
frota de ônibus municipal ou intermunicipal. Isso poderia impedir o
desemprego”, avaliou Juarez Matheus, da Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Transporte.
Balbim, do Ipea, discorda do sindicalista quanto
à aquisição de veículos, mas concorda que não se pode deixar os veículos
privados se sobreporem aos coletivos. “Você não pode dizer para a pessoa que
ela não pode ter um carro. Isso seria segregador, mas esse aumento exponencial
da venda de automóveis nos últimos 10 anos deveria ter sido acompanhado de
políticas de desestímulo ao uso do automóvel”, defendeu Balbim.
Junto a isso, os congestionamentos crescem.
Indicadores da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), do IBGE,
mostram que o tempo de deslocamento médio até o trabalho cresceu de 28,4 para
30,2 minutos no país, entre 1992 e 2012. Nas regiões metropolitanas, a média
subiu de 36 para 41 minutos. Além disso, a porcentagem de pessoas que gasta
mais de uma hora no percurso de casa ao trabalho subiu de 14,6 para 18,6%.
Os piores resultados se concentram no Nordeste e
no Sudeste. Belém (PA) teve o pior resultado em minutos gastos, com aumento de
24,3 para 32,8 minutos no tempo médio (35,4%), seguido por Salvador (BA), que
foi de 31 para 39 minutos (27,1%). Já Rio de Janeiro e São Paulo concentram o
maior número de pessoas que levam mais de uma hora no percurso de casa ao
trabalho: 24,7% e 23,5%, respectivamente, da população gasta esse tempo
diariamente.
O problema dos congestionamentos, além do
estresse e da poluição, é também econômico. Segundo estudo Os custos da
(i)mobilidade nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo, da
Federação das Indústrias do Estado Rio de Janeiro (Firjan), o custo dos
congestionamentos nas duas principais regiões metropolitanas do país foi de R$
98 bilhões em 2013. O valor é superior a dois terços do investimento em
mobilidade realizado pelo Ministério das Cidades.
Porém apesar de alguns avanços e do aumento da
motorização da população, seja por motos ou por carros, o índice de pessoas
cuja mobilidade é quase exclusivamente a pé, mantém-se igual ao longo dos
últimos dez anos. Com pequenas variações anuais, cerca de 30% da população
brasileira caminha diariamente para o trabalho, os estudos e para voltar à
residência.
Com tantas questões a serem resolvidas e uma
eleição a ser realizada em pouco mais de um mês, as propostas deveriam
florescer, mas não é o que ocorre. As propostas dos principais candidatos são
vagas. E frustram os especialistas ouvidos pela RBA. “De uma forma geral, as
diretrizes de governo são superficiais, sem metas claras. E não atendem às
demandas da população”, critica o coordenador da Rede Nossa São Paulo.
A campanha da candidata à presidência pelo PSB,
Marina Silva, apresentou, na última sexta-feira (29), o programa de governo.
Nele, se destacam as propostas de construir mil quilômetros de vias para
veículos leves sobre trilhos (VLTs) e de corredores de ônibus em todas as cidades
com mais de 200 mil habitantes, expandir a malha metroferroviária de cada uma
das regiões metropolitanas em 150 quilômetros ao longo de quatro anos e a
criação de fundos para financiamento do transporte coletivo, mas não estima
valores para nenhuma das ações.
Mesmo a proposta de tornar a Contribuição de
Intervenção no Domínio Econômico sobre Combustíveis (Cide), elencada pelo
Cidades Sustentáveis e abraçada pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad
(PT), sumiu dos debates. A ideia é que o tributo alimente um fundo a ser
utilizado pelas cidades para financiar o transporte público.
“A proposta poderia embasar uma redução na
tarifa, criando condições de inclusão para os 30% que não utilizam transporte
coletivo. No Brasil, cerca de 15% apenas da tarifa são pagos pelo poder
público. A maior parte é paga pela própria população. Podemos acordar algo como
o usuário pagando 50% e o Estado pagando 50%. Seria um avanço muito grande. A
Cide poderia ser o caminho”, defende Juciano Rodrigues.
Fonte: Rede
Nossa São Paulo
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