Denúncia: Relatório recomenda
remover aldeias e alagar área indígena para construir usinas no Tapajós.
Por Felipe Milanez, no CIMI
O Ministério de Minas e Energia adiou, no último
dia 17, o leilão da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará, alegando a
necessidade de adequar estudos indígenas. Era o mínimo a ser feito, tendo em
vista que, desde a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, em Presidente
Figueiredo (AM), um projeto tão violento e ilegal contra os índios e, portanto,
contra a sociedade brasileira, não acontecia no Brasil. Para construir a Usina
Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará, além de alagar terras indígenas, o
governo cogitava remover três aldeias do povo Munduruku, contrariando o artigo
231 da Constituição Federal.
Como disse o goleiro Aranha, no caso de racismo
de que foi vítima diante da torcida do Grêmio: “muita gente sofreu para que
hoje isso estivesse na lei”. No caso da remoção para barragens, há uma
analogia. Quem sofreu para que a lei a respeito deste tema fosse criada foram,
por exemplo, os Waimiri Atroari. Na época, durante o regime de exceção, a
ditadura cumpriu a lei – havia uma previsão legal que permitia a remoção
compulsória de povos indígenas no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). Depois do
sofrimento de muita gente, vieram os direitos constitucionais. No parágrafo
quinto do artigo 231, a Constituição veta a remoção, e as únicas exceções
possíveis são o caso de epidemia e catástrofe, ainda assim com referendo do
Congresso Nacional. E os removidos devem retornar ao seu território em seguida.
O Ibama acabou de receber os Estudos
do Componente Indígena referente à UHE São Luiz do Tapajós. O documento
contraria diversos direitos indígenas.
Além de tudo, parece ser cruel e mórbido, pois
tenta fazer crer que os próprios indígenas estão de acordo com o que vai
acontecer com eles. Aparentemente, o estudo foi realizado sem que a antropóloga
responsável sequer pisasse em uma terra indígena para avaliar os impactos, e
sem a consulta aos indígenas, como prevê a legislação internacional – temas que
estão sendo, inclusive, debatidos na Assembleia da ONU em Nova York, onde Dilma
Rousseff discursou ontem.
Seriam afetadas as Terras Indígenas Praia do
Mangue e Praia do Índio e as Áreas km 43 (Sawré Apompu), São Luiz do Tapajós
(Sawré Jiaybu), Boa Fé (Sawré Maybú, Sawré Dace Watpu e Sawré Bamaybú), além de
indígenas e ribeirinhos que vivem nas vilas Pimental e São Luiz do Tapajós.
Escreve a antropóloga que assina o laudo que “As manifestações diretas dos
Munduruku foram coletadas junto a indivíduos e lideranças da etnia que se
propuseram a conversar e participar de entrevistas informais fora de suas terras
e em locais sempre determinados por eles.” Ou seja: o estudo antropológico do
componente indígena é realizado “à distância”.
Acontece que os Munduruku haviam solicitado
participar “como interlocutores durante o trabalho da equipe, decisão de
escolha feita pelo(s) cacique(s)”, e os caciques não foram consultados. Os
indígenas haviam pedido também que houvesse mais tempo e esclarecimentos, o que
foi ignorado pela equipe de pesquisa. A Funai não participou nem acompanhou os
trabalhos, o que também era uma exigência dos indígenas. As entrevistas que a
antropóloga diz ter feito foram realizadas na cidade de Itaituba (PA), sem os
devidos esclarecimentos, antes da reunião de apresentação da equipe e,
obviamente, sem a decisão de escolha pelo cacique. Alguns indígenas disseram
ter entendido que as antropólogas estavam trabalhando para a Funai, pela forma
como elas explicaram sobre o trabalho que estavam fazendo.
Para piorar, os Munduruku temiam que aldeias
seriam alagadas e removidas, conforme dizia um boato que circulava na região,
mas não puderam participar das discussões sobre o projeto.
Os fatos mais agressivos contra os povos
indígenas contidos no estudo são os seguintes:
O reservatório se estabelecerá com o nível médio
de água na cota 50 m, o que implica que as três aldeias relacionadas à Boa Fé
(Dace Watpu, Sawré Maybú e Karu Bamaybú) serão afetadas diretamente, cabendo,
portanto, ações de relocação das mesmas. Essa passagem está na página 229.
As
aldeias ficarão literalmente debaixo d’água
Se São Luiz for construída, os Munduruku ainda
vão perder áreas de cultura (roças, açaizais, etc.), terão alterados os locais
para pesca, vão perder recursos alimentares, terão alterados locais de caça,
locais de coleta de produtos vegetais e das espécies de pescado. Não serão
poucas mudanças nas suas vidas que eles terão que enfrentar.
Os estudos do componente indígena foram
protocolados no Ibama no dia 11 de setembro, feitos pela empresa Cnec
Worleyparsons Engenharia S/A, e coordenados pela antropóloga Marlinda Melo Patrício.
Dois biólogos também integram a equipe, contra a vontade dos indígenas, que
apresentaram restrições ao trabalho de biólogos dentro da área.
Recentemente, a Sociedade Brasileira de
Arqueologia se posicionou de forma contrária ao licenciamento do projeto e
cobrou uma postura ética de pesquisadores para o empreendimento.
A Terra Indígena Sawré Muybu, que será impactada,
onde estão aldeias que terão de ser removidas, ainda não foi demarcada pela
Funai, que senta em cima do processo há anos, numa velocidade evidentemente
oposta à da realização dos “estudos” para a construção das usinas. O Ministério
Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal de
Itaituba contra a Funai e a União Federal pela demora na demarcação desta
terra, uma de ocupação tradicional do povo indígena Munduruku, localizada nos
municípios de Trairão e Itaituba/PA, no médio curso do rio Tapajós. O
procedimento se arrasta há 13 anos e foi paralisado inexplicavelmente ano
passado, quando quase todos os trâmites administrativos já estavam concluídos.
O Ibama enviou o Estudo do Componente Indígena
para a Funai, e é difícil que os técnicos responsáveis pelo licenciamento
deixem passar essas ilegalidades nas análises. Politicamente, no entanto, pode
ser que a Funai repita o mesmo erro histórico que cometeu em Belo Monte:
desconsiderar a opinião técnica de seus funcionários para autorizar obra de
interesse do governo, mesmo que seja contrária aos direitos indígenas. Esses
funcionários da Funai, e que portanto trabalham para o Estado (e não para um
governo), e são comprometidos com a defesa dos direitos constitucionais das
sociedades indígenas, devem ter em mente que esta luta pelo direito é uma luta
em defesa de toda a sociedade.
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