Cidades: um destino e muitos
desafios.
por Oded
Grajew, Mauricio Broinizi Pereira e Américo Sampaio*
Mostra Ecofalante integra em sua programação três
filmes com o tema “cidades”. Confira!
O processo mundial de urbanização em larga escala,
que projeta 80% da população do planeta vivendo em cidades a partir de meados
do século, impõe um conjunto de desafios sociais, ambientais, culturais,
econômicos e, principalmente, políticos que parece ainda distante do imaginário
dos tomadores de decisão e, consequentemente, responsáveis pela promoção do
planejamento urbano adequado a essa tendência que vem se cumprindo em ritmo
acelerado.
O “tempo da política”, sempre muito açodado pelo
curto prazo e pelo pragmatismo dos interesses não públicos que inundaram sua agenda (o filme Os Jogos de
Putin nos revela um pouco dessa agenda), impõe um enorme despreparo diante
deste futuro próximo. Se não bastasse a ausência de visão política de médio e
longo prazos, grande parte das ações de governos e do mundo dos negócios do
presente concorrem insanamente para inviabilizar ainda mais um futuro
minimamente razoável para a humanidade.
Cena do filme “Os Jogos de Putin”
Do micro ao macro, das enormes dificuldades das
pequenas iniciativas sustentáveis para a sobrevivência aos megaeventos e
intervenções urbanas bilionárias, podemos perceber como estamos distantes de
selar um compromisso com as próximas gerações. Mas ainda há esperanças, posto
que as iniciativas seminais de alguns e o espírito de luta e resistência de
tantos outros sinalizam que caminhos existem.
No filme Favelas: As Cidades do Amanhã,
estima-se que as cidades do amanhã deverão agregar aos seus territórios entre 2
e 3 bilhões de habitantes em favelas ao longo do século XXI, segundo
especialistas entrevistados no documentário que percorre acampamentos, tendas,
barracos, trailers e casebres de madeira ou alvenaria, formando comunidades
humanas que vivem em habitações consideradas subnormais pelos padrões
tradicionais de urbanização.
O acelerado processo de urbanização iniciado no
século XIX – incluindo as favelas inglesas associadas à ascensão do sistema de
fábricas – e aprofundado globalmente ao longo do século XX tende a continuar
reproduzindo-se como subproduto direto do esvaziamento demográfico das áreas
rurais, fruto da concentração de terras e de recursos naturais, da mecanização
da agricultura e da hegemonia do imaginário urbano como promessa de
sobrevivência e oportunidades aos sem-terra e sem-teto de todas as partes do
planeta.
Cena do filme “Favelas: As Cidades do Amanhã”
As imagens não se restringem às porções “não
desenvolvidas ” do planeta, pelo contrário, o filme inicia-se em um acampamento
de sem-teto nas redondezas de Nova Jersey (USA), passando também por Marselha
(França), Canadá, Brasil, Turquia, Marrocos, Índia e Quénia. O objetivo é
evidenciar que o mundo que se torna cada vez mais urbano, torna-se também cada
vez mais favela, como fenômeno inevitável da própria urbanização-globalização
capitalista que ignora nosso destino como seres sociais e coletivos e continua
incensando o comportamento individualista-consumista redentor.
Nas favelas percorridas, para além de diferentes
costumes e culturas trazidas de outrora, sonhos e caminhos comuns marcam as
relações humanas, da busca da dignidade e do respeito às suas próprias
trajetórias ao alimento de cada dia e da escola para seus filhos. Talentos e
profissões diversas tornam-se quase imperceptíveis socialmente diante da luta
pela sobrevivência, assim como a solidariedade cotidiana na comunidade é
condição da própria superação de cada dia. Momentos de delicadeza e humanidade
demonstram o quanto as enormes adversidades não inviabilizam o ser humano como
determinação da esperança.
Do macro ao microcosmo do fenômeno da favelização
do mundo, o documentário nos indaga se realmente iremos continuar aceitando
esse enredo secular e insistentemente previsível ou se trataremos de
transformá-lo!?
Em Os Jogos de Putin, audacioso documentário
sobre as Olimpíadas de Inverno/2014, em Sochi (Rússia), revela-se como sua
estrutura e organização foram marcadas pela corrupção, incompetência,
autoritarismo e truculência.
O presidente Putin, seus amigos e subordinados
conseguiram “gastar” 50 bilhões de dólares (94% dos cofres públicos) em
superfaturamentos, desvios de recursos e vários erros bizarros de engenharia,
assim como impuseram o descaso e a desumanidade aos desapropriados e removidos
de várias regiões da cidade, que sofreu uma brutal intervenção para abrigar os
jogos de inverno.
O documentário tem o mérito de reunir imagens,
entrevistas, discursos e inspeções das obras de autoridades e do próprio Putin
ao longo de diversos momentos da intervenção urbana. Assim como também ouviu os
opositores do projeto, suas vítimas e testemunhas dos métodos do presidente
russo e de outras autoridades.
Além da desconfiança sobre a forma como Sochi foi a
cidade escolhida para abrigar os jogos, fica a questão da legitimidade de
determinados organismos internacionais para a tomada de tal decisão.
Entretanto, uma outra reflexão fica sugerida no documentário: as populações
devem continuar aceitando a realização de megaeventos em suas cidades? O
formato desses eventos deve continuar de modo sub-reptício?
A experiência russa, graças a esse documentário,
deveria ser amplamente difundida e refletida, não sem algumas pitadas das
brasilidades de 2014 e 2016.
Cena do filme “3 Acres em Detroit”
O documentário 3 Acres em Detroit apresenta
um contexto de extrema precariedade da cidade de Detroit decorrente de uma
crise econômica, social e ambiental avassaladora, que exemplifica as cada vez
mais rotineiras consequências do modelo de desenvolvimento insustentável do
mundo em que vivemos.
No filme, Donnie e Fred, os personagens principais,
lutam para conseguir recursos financeiros e materiais, tão escassos por conta
da grande crise da cidade, para criar uma estufa de agricultura urbana.
Sem espaço adequado, sem recursos materiais, sem
conhecimento especializado e sem a tecnologia necessária, Donnie e Fred
transformam de maneira hercúlea o território, que antes era estritamente urbano
e residencial, em uma pequena horta orgânica.
Suas dificuldades são muitas, que vão desde as
bases materiais mais básicas para iniciar o negócio até a precariedade da
pequena economia local que ainda resiste à crise da cidade. Além dos fatores
estruturais, Donnie e Fred sofrem também com o preconceito por conta de sua cor
e sua origem humilde.
O que se pode observar é que, com a crise, Detroit
foi “obrigada” a optar por um arranjo econômico que propiciasse a colaboração e
o compartilhamento dos frutos do trabalho em detrimento da competição e do
lucro desenfreado de um modelo econômico hegemônico que privilegia poucos e
prejudica muitos. Porém, mesmo com uma ideia boa na cabeça e com relativo apoio
de outros atores da cidade, Donnie e Fred vivem as contradições e os desafios
de se traduzir em ações práticas um outro modelo econômico, de Sustentabilidade
Econômica, que preze pela vida da espécie humana e não pelo lucro.
O modelo de desenvolvimento urbano sustentável deve
sempre considerar a vontade da população e a finitude dos recursos naturais,
assim como os impactos e consequências de toda e qualquer intervenção urbana,
não pensando somente nos que ali estão, mas também nas futuras gerações.
Não há como negar que o maior desafio a se
enfrentar no presente, para que o futuro seja possível, é o desafio da
política. As maneiras de governança local, nacional, regional e planetária
precisam passar por transformações profundas, não somente em suas formas, mas
principalmente em seus conteúdos e valores.
* Oded Grajew, coordenador geral da Rede
Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis e presidente emérito do
Instituto Ethos. É idealizador do Fórum Social Mundial e idealizador e
ex-presidente da Fundação Abrinq. Foi assessor especial do presidente da
República (2003).
* Mauricio Broinizi Pereira, doutor em
História Econômica pela USP, coordenador da secretaria executiva da Rede Nossa
São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis. Graduado em História e doutor em
História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP. Lecionou a disciplina
de História Contemporânea, foi chefe do Departamento de História e coordenador
do Programa de Pós-graduação em História na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (1995-2011).
*Américo Sampaio, educador em Direitos Humanos e
assessor da Secretaria Executiva da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades
Sustentáveis. Professor e conselheiro da Escola de Governo de São Paulo e
integrante da Rede pela Transparência e Participação Social (RETPS). É
associado ao Centro Santo Dias de Direitos Humanos.
Fonte: ENVOLVERDE
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