Mulheres vítimas de violência de
gênero sem proteção na Índia.
por Shai
Venkatraman, da IPS
Estudos oficiais revelam que 40% das mulheres da
Índia sofreram violência no lar, mas ativistas acreditam que o número real
esteja próximo de 84%. Foto: Stella Paul/IPS.
Mumbai, Índia, 5/3/2015 – “Uma vez meu marido
começou a me esbofetear tão forte, porque não havia cozinhado o arroz como ele
gostava, que o bebê que eu tinha nos braços caiu”, contou Suruchi, de 47 anos,
à IPS. Histórias iguais a essa, há milhões na Índia. Durante 20 anos, Suruchi
suportou agressões físicas e verbais dentro de sua casa. Seu marido costumava
deixá-la do lado de fora do apartamento à noite e, inclusive, um dia tentou
estrangulá-la.
“Nunca sabia o que poderia deixá-lo furioso, podia
ser falar com um vizinho ou olhar pela janela. Pela manhã me preparava para ir
trabalhar e, de repente, ele anunciava que eu tinha que ficar em casa o dia
todo”, contou Suruchi, que mora Mumbai, grande cidade costeira da Índia. Ela
não tinha acesso às economias, porque era obrigada a entregar o salário à
família de seu marido. “Nas raras ocasiões em que me queixei, me bateram”,
recordou.
Seus pais se davam conta de que não era feliz, mas
Suruchi nunca lhes contou toda a história. Tinha apenas 20 anos quando se
casou. A violência constante deixou profundas marcas nela e nos filhos, em
especial no rapaz que sofre de ansiedade e é muito pouco comunicativo.
Mas, no dia em que sofreu uma crise nervosa depois
de um episódio mais violento do que o habitual, decidiu dar um basta à situação.
“Tinha esperanças de que, se o obedecesse, as coisas melhorariam. Enquanto me
recuperava no hospital, compreendi que minha atitude fomentava o abuso e que
deveria me afastar, por mim e por meus filhos”, contou à IPS.
Suruchi conseguiu deixar o passado para trás. Agora
é independente e estuda direito, mas nem todas as vítimas de violência dentro
da família conseguem isso. A última pesquisa familiar, de 2006, mostra que 40%
das mulheres indianas sofrem violência dentro de suas casas. A população feminina
constitui 48% dos 1,2 bilhão de habitantes da Índia, assim, centenas de milhões
de mulheres vivem um pesadelo em suas casas em uma das consideradas maiores
democracias do mundo.
Porém, muitos especialistas estimam que um estudo
realizado em 2003 por uma organização sem fins lucrativos, com apoio da
Comissão de Planejamento da Índia, é muito mais realista ao elevar a proporção
de mulheres maltratadas a 84%. Isso “nos diz que há muitos casos não
denunciados”, afirmou Rashmi Anand, uma sobrevivente de violência dentro da
família e encarregada de um serviço de ajuda e assistência legal, com apoio da
polícia, para mulheres vítimas de maus tratos em Nova Délhi.
É interessante que os números dessa violência, que
aparecem nas estatísticas de crimes em muitos Estados, sejam significativamente
maiores do que as que figuram em escala nacional.
Um estudo de 2013, do Conselho Nacional de Pesquisa
sobre Economia Aplicada, com sede em Nova Délhi, diz que as mulheres casadas
consultadas disseram apanhar por sair de casa sem permissão (54%), por não
cozinhar bem (35%) e por pagamento insuficiente do dote (36%). O dote está
proibido por lei, mas continua sendo uma prática muito generalizada na Índia.
Outra pesquisa, de 2014, da revista Population
and Development Review, mostra que as mulheres com maior formação do que
seus maridos correm um risco maior de serem maltratadas, pois os homens
recorrem à violência para reforçar seu poder e seu controle sobre elas.
Em 1983, a violência dentro da família foi
reconhecida como crime no artigo 498-A do Código Penal. Mas somente em 2005 foi
aprovada uma lei específica contra esse flagelo. A lei, entre outras coisas,
define a violência dentro do lar e amplia seu alcance para abuso verbal,
econômico e emocional. Também leva em conta a necessidade de apoio econômico
para as mulheres, as protege de serem expulsas de casa e dispõe sobre
assistência econômica e custódia temporária dos filhos.
Desde a aprovação dessa lei, houve aumento no
número de mulheres que buscam ajuda. “Antes, as mulheres só procuravam ajuda
legal quando eram postas para fora de suas casas”, explicou C. P. Nautiyal, que
apoia vítimas de violência dentro da família em Nova Délhi. “A maioria das
mulheres pensava ser um comportamento aceitável sofrer abuso verbal ou receber bofetadas
do marido. Desde a aprovação da lei, há maior consciência sobre a violência no
lar”, acrescentou.
Mas ainda existe um estigma vinculado ao status
de divorciada, o que impede que muitas procurem ajuda. “Em matéria econômica,
as mulheres conseguiram grandes progressos, mas não é bem assim no tocante ao
seu crescimento pessoal”, pontuou Anand. “Há muita pressão para que continuem
casadas”, concordou a advogada Flavia Agnes, defensora dos direitos das
mulheres. “Mesmo as mulheres de classe alta não gostam de dizer que estão
divorciadas ou separadas. É como ser violada, vão esconder o máximo que
puderem”, ressaltou.
As mulheres com menos capacitação e menos
privilégios são as que mais pedem ajuda, afirmam especialistas. E é em relação
a elas que o sistema mais falha. O que mais se percebe é a inexistência de
abrigos estatais adequados. “Fico procurando lugares para onde enviar mulheres
pobres e maltratadas”, lamentou Anand. Dos cinco abrigos para situações de
crise em Nova Délhi, apenas dois funcionam. E estes podem abrigar apenas 30
mulheres, somente por um mês e só com seus filhos menores de sete anos.
Também é urgente a necessidade de contar com
tribunais rápidos. A justiça é lenta, o processo pode demorar anos e até
décadas. Só com leis não se pode conter a violência dentro de casa, avivada por
comportamentos arraigados em uma sociedade fortemente patriarcal. A última
Pesquisa Nacional de Saúde Familiar, de 2006, mostra que mais de 51% dos homens
consultados declararam que não lhes parecia errado bater em suas esposas. E,
pior, 54% das mulheres entrevistadas afirmaram que em certas circunstâncias os
maus tratos se justificavam.
Fonte: ENVOLVERDE
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