Terramérica – Indígenas pedem
urgência na aplicação de direitos.
por
Edgardo Ayala e Claudia Ávalos*
Tito Kilizapa, um indígena de 74 anos, em seu
atelier em Izalco, oeste de El Salvador. Este artesão se dedica a construir e
tocar marimba, um instrumento de percussão muito popular na América Central
durante o século 19 e cuja arte luta para difundir entre as crianças da região.
Foto: Edgardo Ayala/IPS.
Izalco, El Salvador, 2 de março de 2015
(Terramérica).- Quase três anos depois de os indígenas de El Salvador obterem o
reconhecimento de seus plenos direitos na Constituição, as políticas públicas e
as leis que devem traduzir em realidade essa conquista histórica continuam sem
aparecer no horizonte.
A Assembleia Legislativa (unicameral) ratificou em
junho do ano passado uma reforma constitucional aprovada em abril de 2012 que
instituiu direitos para os povos originários deste país centro-americano, mas
dirigentes de comunidades e organizações indígenas expressaram à IPS seu temor
de que tudo fique em “letra morta”.
“Houve mudanças que estão cheias de boas intenções,
mas falta dar orientação a essas intenções”, disse ao Terramérica a líder Betty
Pérez, responsável pelo Conselho Coordenador Nacional Indígena Salvadorenho
(CCNIS). Na reforma do Artigo 63 da Constituição se estabelece que “El Salvador
reconhece os povos indígenas e adotará políticas a fim de manter e desenvolver
sua identidade étnica e cultural, cosmovisão, seus valores e a espiritualidade.
Esses princípios englobam aspectos tão diversos
como o respeito às suas práticas medicinais ou ao seu direito coletivo à terra,
e segundo deputados de diferentes tendências, “permite pagar uma dívida
histórica” e, ao reconhecê-los, começa a tirar os povos originários “da
invisibilidade a que foram condenados”.
Pérez explicou que já iniciou um processo de
diálogo entre organizações, comunidades e os ministérios envolvidos para ver
como concretizar as políticas públicas, mas sem avanços porque não há uma visão
unificada e “cada um caminha por sua própria lógica”. O CCNIS também luta para
que este país ratifique o Convênio 169 da Organização Internacional do
Trabalho, o instrumento internacional que protege os direitos dos povos
originários. Mas não há data para a discussão no parlamento dessa ratificação.
A líder conversou com o Terramérica durante a comemoração
do levante indígena de 1932, ocorrida em Izalco, município de 74 mil habitantes
que foi epicentro da revolta e que fica 65 quilômetros a oeste de São Salvador.
O movimento, que buscava melhores condições de vida para a população
originária, foi brutalmente reprimido pela ditadura de Maximiliano Martínez
(1931-1944), com saldo de 30 mil a 40 mil mortos.
Os povos originários salvadorenhos foram negados e
deixados invisíveis por décadas, sob o argumento de que, após aquele massacre,
se mesclaram com o resto da população mestiça para não serem perseguidos por
sucessivos regimes militares, que os acusavam de comunistas. Deixaram de falar
suas línguas ancestrais e de usar suas vestimentas. Por isso também existe
escassa documentação ou dados atualizados sobre sua condição socioeconômica
neste país de 6,3 milhões de habitantes.
O Perfil dos Povos Indígenas de El Salvador,
elaborado pelo Banco Mundial, governo local e por organizações indígenas,
estabelece que aproximadamente 10% da população é originária, dividida em três
grandes grupos: nahuas/pipiles, no centro e oeste do país, lencas, no leste, e
cacaoperas, no norte.
O estudo, publicado em 2003, indica que a maioria
vive da agricultura de subsistência em terras arrendadas, enquanto outros são
peões agrícolas. Um bom número de comunidades mantém a elaboração de
artesanatos próprios de seu povo.
Especialistas e organizações indígenas insistem
que, para tornar realidade o mandato constitucional, é necessária uma política
integral, com enfoque inclusivo e respeito à cosmovisão de cada povo, ao menos
em educação, saúde, ambiente, trabalho, desenvolvimento comunitário,
titularidade da terra.
Em saúde, por exemplo, deve-se estabelecer um
sistema que contenha um enfoque “intercultural, que possibilite aos indígenas receber
serviços de saúde adequados e que respeitem sua cultura”, indicou em 2013 um
informe do Relator Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas das Nações
Unidas, na época James Anaya, que visitara o país no ano anterior.
Esse enfoque permitiria o reconhecimento de
práticas ancestrais, como as realizadas pelo indígena Rosalío Turush, de 88
anos, em Izalco, ou Itzalku em nawat, na língua pipil. Ele ainda pratica a cura
utilizando plantas, método que aprendeu com seus ancestrais, bem como a
eliminação da dor com massagens em casos de fraturas ou torções.
“As pessoas naquele tempo, como a medicina era mais
escassa, se valiam das plantas. Por exemplo, para curar disenteria existe uma
planta que se chama trencillo”, contou Turush ao Terramérica. “Agora, o motivo
pelo qual mais me procuram é para uma massagem a fim de aliviar um mau jeito,
uma fratura, porque ainda tenho bom tato, boa mão”, acrescentou.
A reforma constitucional requer a aprovação das
chamadas leis secundárias que regulem os novos direitos, mas seu avanço no
parlamento é quase nulo. “Se a reforma não estabelecer mecanismos para lhe dar
vida, se os deputados não aprovarem as leis secundárias necessárias, ficará
como letra morta na Constituição”, afirmou o magistrado da Suprema Corte de
Justiça, Florentín Meléndez, durante o ato que lembrou o massacre nessa
localidade.
Meléndez se referiu ao espinhoso tema do acesso a
terras coletivas das comunidades indígenas, algo que a Constituição já
estabelecia anteriormente, mas que nunca foi regulado para ser colocado em
prática. “Já é reconhecida a propriedade comunitária, basta apenas os deputados
continuarem avançando na reivindicação dos direitos concretamente, não no
texto, mas na realidade”, acrescentou.
No final do século 19, os povos indígenas foram
despojados de suas terras comunitárias pelos latifundiários que assim ampliavam
suas plantações de café, setor no qual se assentou a oligarquia do país. Esses
proprietários converteram milhares de indígenas e camponeses em trabalhadores
braçais, que viviam em abjeta pobreza nas fazendas de café, plantando a semente
do descontentamento social que, décadas mais tarde, foi um germe da guerra
civil salvadorenha (1980-1992), com saldo de 70 mil mortos.
A revolta de 1932 também foi por causa dessa
usurpação de terras indígenas. “Daí vem o massacre de 32, porque os grandes
latifundiários, se alguém não lhes vendesse as terras, as tiravam a ponta de
pistola”, pontuou ao Terramérica outro indígena de Izalco, o artesão e músico
Tito Kilizapa, de 74 anos.
Pérez, do CCNIS, recordou que a reforma
constitucional atrasou uma década devido à oposição de grupos econômicos
poderosos, que temiam que ela representasse uma expropriação das terras
comunitárias indígenas arrebatadas no século 19 ou outras medidas contra seus
interesses.
Esses grupos também trabalhariam agora contra a
aprovação de leis que a concretizem, especialmente em matéria de acesso às
terras. “Estamos imersos em um sistema capitalista, temos grupos de poder e há
elementos econômicos e políticos que não permitem ao governo executar todos
esses processos de mudança”, afirmou Pérez.
Por sua vez, Gustavo Pineda, diretor nacional de
Povos Indígenas, do Ministério da Cultura, pontuou ao Terramérica que “todos
esses são processos, converter a realidade dos povos indígenas implica um
processo bastante longo e difícil”. Parte-se de uma realidade em que “a negação
dos povos originários se deu de forma sistemática por muito tempo, podemos falar
de séculos”, acrescentou.
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário