Quando uma árvore é mais efetiva
do que o governo do Nepal.
por
Mallika Aryal, da IPS
Todas as manhãs Raj Kumari Chaudhari reza para a
mangueira na qual subiu durante as inundações de 2014 no centro-oeste do Nepal.
Foto: Mallika Aryal/IPS.
Bardiya, Nepal, 4/3/2015 – “Esta árvore não dá
frutos, mas salvou minha família da morte”, contou Raj Kumari Chaudhari, ao
lado de uma enorme e majestosa mangueira, cujos ramos se estendem além da
vista. “Só ela fez mais por minha família em tempos difíceis do que o próprio
governo do Nepal”, afirmou a camponesa. Todas as manhãs Chaudhari se dirige à
outra ponta da aldeia apenas para rezar para a árvore.
Na noite de 14 de agosto do ano passado, Chaudhari
perdeu sua casa quando a água arrasou toda a aldeia de Padnaha, no distrito de
Bardiya, no centro-oeste do Nepal. Seu marido pegou sua filha mais velha
enquanto ela carregava as gêmeas em suas costas e fugiram. Quando chegaram na
outra ponta da aldeia se deram conta de que não tinham escapatória.
Subiram na árvore mais próxima para se protegerem.
Em questão de minutos outras 11 pessoas fizeram o mesmo. “Meu bebê de seis
meses era o menor de todos, o prendi com meu xale para que não caísse”, contou
outra moradora, Kalpana Gurung.
Bardiya é um dos três distritos do centro-oeste
mais atingidos pelas inundações de 2014. O Comitê para a Atenção de Desastres
informa que mais de 93 mil pessoas foram prejudicadas. A torrente de água
deixou 32 mortos e 13 desaparecidos. Quase cinco mil sofreram as consequências
das inundações em Padnaha.
O ano passado já figurava como o mais mortífero da
história do Nepal em termos de desastres naturais.
Segundo o Ministério do
Interior, morreram 492 pessoas e mais de 37 mil moradias foram destruídas pelos
desastres ocorridos entre abril do ano passado e fevereiro de 2015. Os
especialistas criticam que apesar disso o governo ainda não formulou nenhuma
resposta de longo prazo para casos como o da família de Chaudhari, que
sobreviveu à catástrofe.
Raj Kumari e Hira Lal Chaudhari, sua filha de 11
anos e as gêmeas de oito, sobreviveram às inundações de agosto de 2014 no
centro-oeste do Nepal subindo em uma mangueira, onde esperaram as águas
baixarem. Foto: Mallika Aryal/IPS
Demorou cinco meses para a comunidade de Padnaha
recuperar sua vida. Doze famílias puderam reconstruir suas casas. “Toda a
aldeia ficou como um deserto depois das inundações”, contou Raj Kumari
Chaudhari, uma das sobreviventes. Foto: Mallika Aryal/IPS.
“O governo não tem rumo nem planos para a
reabilitação de sobreviventes. Os que perderam suas terras ficaram,
basicamente, apátridas”, lamentou Madhukar Upadhya, especialista em gestão de
bacias e deslizamentos de terras.
Após o transbordamento do rio Koshi em 2008, no
leste do Nepal, o governo criou um centro para capacitação em gestão de
desastres, a polícia ganhou uma divisão especial e o exército um departamento
dedicado ao tema. Mas o interesse das autoridades está no resgate e no alívio,
não na reabilitação nem no reassentamento, criticou Upadhya,
A família de Chaudhari e a maioria de seus vizinhos
procedem da comunidade indígena de tharu, no oeste do Nepal. Além disso, foram
“kamaiya”, vítimas do opressivo sistema de trabalho forçado que vigorou no
Nepal até sua abolição em 2002. Após ser libertada, a família foi expulsa de
sua casa por seus “donos” e tiveram que viver ao relento durante anos.
Há dois, o governo finalmente os reassentou em
Padnaha. “Demoramos muito tempo para reconstruir nossas casas, as crianças
finalmente estavam assentando quando as inundações arrasaram com tudo”,
lamentou Chaudhari.
Depois de ficar por 24 horas na árvore com a água
correndo embaixo, Chaudhari e sua família finalmente puderam descer e ser
abrigar na escola. Quando se retirou, viu que tudo havia desaparecido.
“Perdemos nossas casas e nossos pertences, mas, ao contrário de outros
sobreviventes de inundações e deslizamentos de terra, ainda podemos regressar
ao nosso terreno”, disse Sangita, de 18 anos, que também se salvou graças à
mangueira.
Com ajuda da organização Save the Children, que
lhes deu os materiais, e ao programa Dinheiro por Trabalho, uma experiência de
13 anos que paga US$ 3,50 por dia de trabalho, a comunidade pôde começar a
reconstrução. Em poucos dias, 12 famílias limparam os escombros e levantaram
suas choças.
Chaudhary já pode plantar algumas verduras na horta, uma fonte a
mais de alimentos para sua família. Mas se preocupa com a possibilidade de o
ocorrido no ano passado se repetir, e se deu conta de que precisa estar
preparada.
Kalpana Gurung em sua horta, onde espera colher
verduras na primavera para alimentar sua família. Ela está amamentando e teme
não poder dar alimento suficiente para seu bebê de nove meses. Foto: Mallika
Aryal/IPS
Saraswati Chaudhari, de 11 anos, e suas irmãs
gêmeas, Puja e Laxmi, prontos para irem à escola. Especialistas afirmam que o
governo deve criar um plano de gestão de desastres integral para proteger as
famílias que vivem em zonas propensas a catástrofes. Foto: Mallika Aryal/IPS.
Sangita, de 18 anos, recorda a noite em que acordou
com a cama dentro da água. “Essa árvore salvou minha vida, mas quero esquecer
aquela noite horrível”, disse, apontando para a mangueira onde subiu. Foto:
Mallika Aryal/IPS.
Especialistas em clima afirmam que a pequena
comunidade-modelo não é sustentável, pois a variação climática faz com que em
cada monção possa haver inundações e deslizamentos de terra nas regiões
vulneráveis do Nepal. Um estudo de 2014, da Aliança Clima e Desenvolvimento
(CDKN) conclui que a variabilidade climática e os eventos extremos custam ao
governo do Nepal o equivalente a 1,5% a 2% do produto interno bruto por ano.
Doze grandes inundações nas últimas quatro décadas
custaram a cada família afetada o equivalente a US$ 9 mil, em média.
Considerando que a renda familiar média era de US$ 2,7 mil em 2011, esse
montante representa uma grande carga suportada principalmente pelos mais pobres,
que vivem em zonas propensas a desastres naturais, como a família de Chaudhari.
Anualmente, desde 1983, as inundações no Nepal
deixam uma média de 283 mortos, oito mil casas destruídas e 30 mil famílias que
devem enfrentar as consequências do desastre. “Estamos acostumados a
reconstruir nossas vidas, mas espero que minhas filhas não tenham que fazer o
mesmo uma e outra vez, como eu”, ressaltou Chaudhari, com o olhar perdido na sagrada
mangueira.
Fonte: ENVOLVERDE
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