segunda-feira, 9 de março de 2015

Quando uma árvore é mais efetiva do que o governo do Nepal.
por Mallika Aryal, da IPS
Todas as manhãs Raj Kumari Chaudhari reza para a mangueira na qual subiu durante as inundações de 2014 no centro-oeste do Nepal. Foto: Mallika Aryal/IPS.

Bardiya, Nepal, 4/3/2015 – “Esta árvore não dá frutos, mas salvou minha família da morte”, contou Raj Kumari Chaudhari, ao lado de uma enorme e majestosa mangueira, cujos ramos se estendem além da vista. “Só ela fez mais por minha família em tempos difíceis do que o próprio governo do Nepal”, afirmou a camponesa. Todas as manhãs Chaudhari se dirige à outra ponta da aldeia apenas para rezar para a árvore.

Na noite de 14 de agosto do ano passado, Chaudhari perdeu sua casa quando a água arrasou toda a aldeia de Padnaha, no distrito de Bardiya, no centro-oeste do Nepal. Seu marido pegou sua filha mais velha enquanto ela carregava as gêmeas em suas costas e fugiram. Quando chegaram na outra ponta da aldeia se deram conta de que não tinham escapatória.

Subiram na árvore mais próxima para se protegerem. Em questão de minutos outras 11 pessoas fizeram o mesmo. “Meu bebê de seis meses era o menor de todos, o prendi com meu xale para que não caísse”, contou outra moradora, Kalpana Gurung.

Bardiya é um dos três distritos do centro-oeste mais atingidos pelas inundações de 2014. O Comitê para a Atenção de Desastres informa que mais de 93 mil pessoas foram prejudicadas. A torrente de água deixou 32 mortos e 13 desaparecidos. Quase cinco mil sofreram as consequências das inundações em Padnaha.

O ano passado já figurava como o mais mortífero da história do Nepal em termos de desastres naturais. 

Segundo o Ministério do Interior, morreram 492 pessoas e mais de 37 mil moradias foram destruídas pelos desastres ocorridos entre abril do ano passado e fevereiro de 2015. Os especialistas criticam que apesar disso o governo ainda não formulou nenhuma resposta de longo prazo para casos como o da família de Chaudhari, que sobreviveu à catástrofe.
Raj Kumari e Hira Lal Chaudhari, sua filha de 11 anos e as gêmeas de oito, sobreviveram às inundações de agosto de 2014 no centro-oeste do Nepal subindo em uma mangueira, onde esperaram as águas baixarem. Foto: Mallika Aryal/IPS

Demorou cinco meses para a comunidade de Padnaha recuperar sua vida. Doze famílias puderam reconstruir suas casas. “Toda a aldeia ficou como um deserto depois das inundações”, contou Raj Kumari Chaudhari, uma das sobreviventes. Foto: Mallika Aryal/IPS.

“O governo não tem rumo nem planos para a reabilitação de sobreviventes. Os que perderam suas terras ficaram, basicamente, apátridas”, lamentou Madhukar Upadhya, especialista em gestão de bacias e deslizamentos de terras.

Após o transbordamento do rio Koshi em 2008, no leste do Nepal, o governo criou um centro para capacitação em gestão de desastres, a polícia ganhou uma divisão especial e o exército um departamento dedicado ao tema. Mas o interesse das autoridades está no resgate e no alívio, não na reabilitação nem no reassentamento, criticou Upadhya,

A família de Chaudhari e a maioria de seus vizinhos procedem da comunidade indígena de tharu, no oeste do Nepal. Além disso, foram “kamaiya”, vítimas do opressivo sistema de trabalho forçado que vigorou no Nepal até sua abolição em 2002. Após ser libertada, a família foi expulsa de sua casa por seus “donos” e tiveram que viver ao relento durante anos.

Há dois, o governo finalmente os reassentou em Padnaha. “Demoramos muito tempo para reconstruir nossas casas, as crianças finalmente estavam assentando quando as inundações arrasaram com tudo”, lamentou Chaudhari.

Depois de ficar por 24 horas na árvore com a água correndo embaixo, Chaudhari e sua família finalmente puderam descer e ser abrigar na escola. Quando se retirou, viu que tudo havia desaparecido. “Perdemos nossas casas e nossos pertences, mas, ao contrário de outros sobreviventes de inundações e deslizamentos de terra, ainda podemos regressar ao nosso terreno”, disse Sangita, de 18 anos, que também se salvou graças à mangueira.

Com ajuda da organização Save the Children, que lhes deu os materiais, e ao programa Dinheiro por Trabalho, uma experiência de 13 anos que paga US$ 3,50 por dia de trabalho, a comunidade pôde começar a reconstrução. Em poucos dias, 12 famílias limparam os escombros e levantaram suas choças. 

Chaudhary já pode plantar algumas verduras na horta, uma fonte a mais de alimentos para sua família. Mas se preocupa com a possibilidade de o ocorrido no ano passado se repetir, e se deu conta de que precisa estar preparada.
Kalpana Gurung em sua horta, onde espera colher verduras na primavera para alimentar sua família. Ela está amamentando e teme não poder dar alimento suficiente para seu bebê de nove meses. Foto: Mallika Aryal/IPS

Saraswati Chaudhari, de 11 anos, e suas irmãs gêmeas, Puja e Laxmi, prontos para irem à escola. Especialistas afirmam que o governo deve criar um plano de gestão de desastres integral para proteger as famílias que vivem em zonas propensas a catástrofes. Foto: Mallika Aryal/IPS.

Sangita, de 18 anos, recorda a noite em que acordou com a cama dentro da água. “Essa árvore salvou minha vida, mas quero esquecer aquela noite horrível”, disse, apontando para a mangueira onde subiu. Foto: Mallika Aryal/IPS.

Especialistas em clima afirmam que a pequena comunidade-modelo não é sustentável, pois a variação climática faz com que em cada monção possa haver inundações e deslizamentos de terra nas regiões vulneráveis do Nepal. Um estudo de 2014, da Aliança Clima e Desenvolvimento (CDKN) conclui que a variabilidade climática e os eventos extremos custam ao governo do Nepal o equivalente a 1,5% a 2% do produto interno bruto por ano.

Doze grandes inundações nas últimas quatro décadas custaram a cada família afetada o equivalente a US$ 9 mil, em média. Considerando que a renda familiar média era de US$ 2,7 mil em 2011, esse montante representa uma grande carga suportada principalmente pelos mais pobres, que vivem em zonas propensas a desastres naturais, como a família de Chaudhari.

Anualmente, desde 1983, as inundações no Nepal deixam uma média de 283 mortos, oito mil casas destruídas e 30 mil famílias que devem enfrentar as consequências do desastre. “Estamos acostumados a reconstruir nossas vidas, mas espero que minhas filhas não tenham que fazer o mesmo uma e outra vez, como eu”, ressaltou Chaudhari, com o olhar perdido na sagrada mangueira.


Fonte: ENVOLVERDE

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