Subjugados
por Belo Monte?
Escola da aldeia Paquiçamba, do povo juruna, nas
margens do rio Xingu em sua Volta Grande, na Amazônia brasileira, que apesar de
não ficar inundada pela represa da hidrelétrica de Belo Monte, verá o fluxo de
água diminuir consideravelmente. Foto: Mario Osava/IPS.
Por Mario Osava*
Altamira, Brasil, 13 de julho de 2015
(Terramérica).- Etnocídio, a nova acusação contra a central hidrelétrica de
Belo Monte, realça dimensões mais profundas dos conflitos e das polêmicas
desatadas pelos megaprojetos em construção, ou planejados, para a Amazônia
brasileira. A promotora Thais Santi, do Ministério Público Federal (MPF),
anunciou para “dentro de algumas semanas” uma ação judicial contra a Norte
Energia, a empresa concessionária da central, com o argumento de que suas
iniciativas para silenciar a resistência indígena configurariam crime de
etnocídio.
“Será uma inovação jurídica no Brasil”, afirmou
Wilson Matos da Silva, um advogado diretamente interessado nesse “processo
pioneiro”, como indígena do povo guarani que reflete sobre o tema em publicações
em Dourados, cidade do oeste brasileiro onde vive. “Não há uma legislação
brasileira para etnocídio, um termo utilizado por analogia ao genocídio, este
sim tipificado em uma lei de 1956. O objeto do crime não é a vida, mas a
cultura, porém o objetivo é o mesmo, destruir um povo”, afirmou este defensor
de causas indígenas.
“O etnocídio só ocorre com omissão do Estado,
portanto envolvido em um potencial julgamento”, acrescentou Silva. O tema é
debatido há tempos, especialmente entre antropólogos, em fóruns e tribunais
internacionais. A novidade no Brasil é levá-lo ao âmbito judicial, “uma
iniciativa louvável”, que poderia gerar uma jurisprudência importante, concluiu
o advogado em entrevista por telefone.
Belo Monte tem sido alvo de muitas denúncias tentando
travar sua construção. A empresa é acusada de descumprir medidas exigidas pelo
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), para compensar ou mitigar
impactos da obra, que represará o rio Xingu para gerar 11.233 megawatts, o que
a converterá na terceira maior central do mundo.
Os 22 processos abertos pelo MPF não conseguiram
paralisar a obra, mas sim a execução de algumas exigências ambientais, como a
compra de terras para a Comunidade Indígena Juruna do Quilômetro 17, na rodovia
Transamazônica, que está exposta ao movimento causado pela obra por viver em
uma área muito próxima e extremamente pequena.
A pescadora Socorro Arara, indígena que adotou como
sobrenome o nome de seu povo, luta para manter o modo de vida das sete famílias
de seu grupo. A ilha onde vive no rio Xingu será inundada pela represa de Belo
Monte e ela reclama outra ilha ou uma área ribeirinha para reassentar o grupo.
Foto: Mario Osava/IPS.
“Não há condições para a Licença de Operação”, a
autorização final para que Belo Monte possa encher suas represas e começar a
gerar eletricidade no começo de 2016, concluiu o não governamental Instituto
Socioambiental (ISA) em um informe divulgado no dia 29 de junho. Estão
pendentes ou incompletas muitas das 40 exigências iniciais, definidas antes do
leilão da concessão em 2010, e também das 31 “condições” do componente
indígena, argumenta o ISA, muito ativo na bacia do Xingu.
A proteção dos territórios indígenas é uma dessas
falhas, refletida no aumento da extração ilegal de madeira e invasão de
caçadores, afirmou o ISA. A Norte Energia alega ter investido o equivalente a
US$ 68 milhões em beneficio dos cerca de três mil habitantes das 34 aldeias nas
11 terras indígenas sob influência de Belo Monte. A construção de 711 moradias
e a doação de 366 embarcações, 578 motores náuticos, 42 veículos terrestres, 98
geradores elétricos e 2,1 milhões de litros de combustíveis e lubrificantes,
até abril de 2015, são parte do programa.
Além disso, foram distribuídas oito mil cartilhas e
capacitados professores dentro do programa de Educação Escolar Indígena, segundo
os órgãos estatais do setor. “Mas os indígenas estão insatisfeitos, porque
pouco do plano foi executado. Das 34 Unidades Básicas de Saúde prometidas,
nenhuma está em funcionamento”, queixou-se Francisco Brasil de Moraes,
coordenador encarregado no Meio Xingu da Fundação Nacional do Índio (Funai),
órgão estatal de apoio à população originária.
Tampouco avança o projeto de atividades produtivas,
uma prioridade por se tratar da segurança alimentar e fonte de renda, pontuou
Moraes. Falta assistência técnica para melhorar a agricultura e poucas das 34
“casas de farinha” comunitárias, para moer e torrar a mandioca, estão em
operação.
Outra medida indispensável, o Plano de Proteção das Terras Indígenas,
que prevê a instalação de bases operacionais e postos de vigilância, não é
assumida pela Norte Energia e a “Funai não tem recursos para essa gestão
territorial”, ressaltou ao Terramérica.
Mas as ações que justificam a acusação de etnocídio
ocorreram ou começaram antes desses projetos em andamento, embora com atrasos,
que compõem o chamado Plano Básico Ambiental-Componente Indígena.
Durante 24 meses, até setembro de 2012, a Norte
Energia executou o Plano de Emergência, com doações de bens exigidos pelas 34
aldeias, com custo mensal equivalente a US$ 9,6 mil para cada uma. Isso
exacerbou o consumo de alimentos industrializados, como refrigerantes, que
afetaram a saúde, aumentando a desnutrição infantil, e a segurança alimentar
dos indígenas ao induzir o abandono da agricultura, da pesca e da caça, segundo
o ISA.
“A Norte Energia estabeleceu com os indígenas uma
relação de cooptação dos únicos opositores de forte expressão, fazendo com que
seus líderes viessem frequentemente à cidade (Altamira) para pedir mais coisas
na sede da empresa”, disse ao Terramérica o coordenador-adjunto do ISA no
Xingu, Marcelo Salazar. Divisão das aldeias e deslegitimação de seus líderes
foram outros efeitos das ações da empresa, segundo o MPF.
“O Plano de Emergência foi proposto pela Funai”,
que também fixou a quantia de R$ 30 mil para os “investimentos mensais”,
informou a Norte Energia ao Terramérica, em uma resposta escrita de seu
departamento de imprensa. Destinava-se à “promoção do etnodesenvolvimento” que
também incluiu doação de insumos e equipamentos agrícolas, construção de pistas
de pouso e melhorias em 470 quilômetros de estrada de acesso às aldeias,
acrescentou a empresa. Fortalecer a Funai, contratando 23 funcionários pagos
pela Norte Energia e a compra de computadores e veículos foi outro objetivo do
Plano de Emergência, informou a companhia.
Montagem da sala de turbinas da hidrelétrica de
Belo Monte, no Estado do Pará, uma megaobra que já tem 80% de suas estruturas
construídas e estará finalizada em 2019. Foto: Mario Osava/IPS.
Segundo os críticos, a ênfase em fatores materiais,
como embarcações, veículos e obras físicas, seguem uma lógica empresarial
paralela, inconciliável com a visão de seus críticos, afirmou Sonia Magalhães,
socióloga e professora da Universidade Federal do Pará que também identifica um
etnocídio em Belo Monte. “Ali se observa uma agressão à cultura, uma prática
colonizadora que tem por objetivo a dominação e a destruição da cultura, que é
um todo complexo e dinâmico”, opinou ao Terramérica em relação ao plano.
“Para os indígenas juruna e arara, o rio Xingu tem
um sentido cosmológico que nós não somos capazes de entender. Trata-se de uma
referência do tempo, do espaço e do sagrado que está sendo agredida pela
construção da hidrelétrica, acrescentou Magalhães.
Indiferente a esse debate, Giliard Juruna, líder
indígena de uma aldeia de 16 famílias, visita Altamira, o centro urbano em
torno de Belo Monte, com novos pedidos. “Conquistamos ‘voadoras’ (lanchas com
motor rápido), uma caminhonete e 15 moradias para todos, mas as coisas acabam e
é pouco em comparação com o que é possível”, afirmou ao Terramérica.
“Pedimos voadoras também para a pesca, embora a
água esteja suja, não temos saneamento, temos escola mas faltam professores
bilíngues, disse Juruna, acrescentando que busca “um projeto de
sustentabilidade” que envolva piscicultura, cacau, mandioca, com casa da farinha
e caminhão. “Temos a quem vender nossos produtos, mas não o meio de transporte,
pois o barco já não serve”, acrescentou. O desvio parcial das águas do Xingu
para gerar eletricidade em Belo Monte reduzirá o fluxo na Volta Grande, onde
fica sua aldeia.
* O autor é correspondente da IPS
Fonte: ENVOLVERDE
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