A droga
da realidade.
Foto: Shutterstock
Por Maria Helena Masquetti*
Sem dúvida, os avanços da medicina têm nos aliviado
de dores que, como virou moda dizer, ninguém merece. No entanto, nestes tempos
de tantos confortos à venda, outras dores que provavelmente estariam cumprindo
a função de comunicar algo que, no íntimo das pessoas, mereceria ser acolhido,
suprido ou tão somente levado em conta, vêm sendo medicadas precipitadamente,
focando-se mais a doença do que a pessoa. Assim, mesmo situações comuns do
nível de uma entrevista de emprego, uma perda financeira ou uma decepção
amorosa chegam a ser motivo para o uso de algum psicofármaco.
A começar pelo medo, sua existência em nossas vidas
se torna cada vez mais incômoda. Despreza-se, por exemplo, o fato dele balizar
a importância dos nossos desafios, de nos proteger de atos arriscados ou pelo
menos de sinalizar que simplesmente estamos diante de uma experiência sem
referência prévia em nossa memória. Do mesmo modo, a ansiedade, a tristeza e a
solidão, entre outros sentimentos, vão sendo, pouco a pouco, enquadrados na categoria
de transtornos emocionais. Mesmo para aqueles que vejam razões para considerar
sua realidade uma droga, aliviar imediatamente um sintoma pode, isto sim, adiar
sua solução ou fazer cessar um grito por algum direito negado, um velho nó na
garganta ou um desencanto pela espera de algo que não pôde ser.
Mas, se é tão delicado pensar em tudo isso em
relação a pessoas adultas, pior ainda para as crianças que, justamente por
estarem em formação, não têm como compreender, explicar e muito menos avaliar
seu eventual comportamento inadequado. E, a partir daí, já se pode fazer a
pergunta: inadequado para quem? Geralmente nos comovemos ao ouvir sobre tantos
gênios que foram considerados alunos problema até que pudessem expressar seus
talentos. Porém, em geral, a intolerância à frustração – bem típica de nossa
época – de não se ter um aluno ou filho “exemplar” tem apontado para muitos
pais, educadores e, claro, médicos, a saída pelo já famoso diagnóstico do TDAH
– Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Em números, essa febre da
medicalização está representada pelo aumento de 75% no consumo do metilfenidato
(Ritalina) entre 2009 e 2011* como forma de restabelecer a concentração das
crianças entre 6 e 16 anos.
Por que as crianças estariam tão inquietas? O que
estariam querendo revelar com a relutância em ir para a escola ou estudar? Onde
estariam vagando seus pensamentos no momento em que se desconcentraram da lição
ou leitura? Salvo falhas neurológicas relevantes, as reações humanas respondem
a algum motivo. Ter um filho obediente pode nos livrar de problemas que nem
sempre estamos com tempo ou condições de lidar. Mas ao medicar uma criança
antes que ela diga ao mundo a que veio, pode significar a perda de um dos
capítulos mais determinantes de sua vida. E da nossa ao lado dela. “Ou feia ou
bonita, ninguém acredita na criança real!”. Para a indústria
farmacêutica, este trecho da música deve justificar sua overdose de lucros.
Para nós, pode representar a chance de uma reflexão urgente sobre o futuro da
infância. Pensar e mudar, é só começar.
– Dados do Boletim de Farmacoepidemiologia da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), fev. 2013.
* Maria Helena Masquetti é graduada em
Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e
realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de
redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.
Fonte: ENVOLVERDE
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