Pesca industrial arrasa com a artesanal na América
do sul.
A pesca artesanal, que por anos foi sustento
econômico e alimentício de milhões de famílias sul-americanas, enfrenta
múltiplas ameaças, como as que devem evitar estes pescadores do povoado de
Duao, na costa do sul do Chile, que sobrevivem com a venda de sua captura
diária em mercados improvisados na própria praia. Foto: Marianela Jarroud/IPS.
Por Marianela Jarroud, da IPS –
Santiago, Chile, 17/6/2015 – O modelo de exploração
pesqueira desenvolvido na última década na América do Sul, que converteu essa
indústria em uma potência mundial, arrasa a pesca artesanal nas costas do
Oceano Pacífico, um ofício ancestral que agora caminha para o desaparecimento.
“A pesca é parte da história mais ancestral, mais
remota do continente americano. Tanto no corpo continental quanto na costa e
nos canais foi sustento para uma centena de povos, ou mais, que viram na vida
nômade no mar sua condição de vida”, afirmou à IPS o antropólogo social Juan
Carlos Skewes.
Na América Latina e no Caribe existem mais de dois
milhões de pescadores artesanais ou de pequena escala, que geram US$ 3 bilhões
por ano, segundo a intergovernamental Organização Latino-Americana de
Desenvolvimento Pesqueiro (Odelpesca). A região acolhe em suas costas
sul-americanas três dos grandes ecossistemas marinhos do mundo.
O mais importante deles é a Corrente de Humboldt,
que atravessa as costas de Chile, Peru e Equador, e contribui com quase 20% do
total da pesca de captura mundial, segundo a Organização das Nações Unidas para
a Agricultura e a Alimentação (FAO). Outros ecossistemas importantes na região
são a Plataforma Patagônia formada por Argentina e Uruguai, e a Plataforma Sul
do Brasil, ambas no Oceano Atlântico.
Apesar da grande diversidade de espécies e
ecossistemas, na região os fluxos de produção e intercâmbio comercial estão
dominados por poucos países: Peru, Chile, México, Argentina e Brasil, que, em
conjunto e nessa ordem, capturam cerca de 90% do total regional, com produção
total de 18 milhões de toneladas anuais.
A pesca e a aquicultura foram uma importante
contribuição ao bem-estar e à prosperidade dos habitantes de zonas costeiras
sul-americanas, que por séculos encontraram nessa atividade seu sustento
econômico e o acesso a um alimento alto em nutrientes. “No mundo pré-hispânico
a pesca foi uma ferramenta fundamental para a existência dos seres humanos e
também assentou as bases para formas de vinculação com a natureza”, explicou
Skewes.
A ameaça a essa forma de vida pela voraz indústria
é apresentada por Gino Bavestrello, de 57 anos, pescador artesanal chileno da
localidade costeira de Corral, perto de Valdivia, 810 quilômetros ao sul de
Santiago. Filho e pai de pescadores, trabalha no mar desde que tem memória.
“Sou pescador artesanal de toda a vida”, disse, emocionado, à IPS. “Meu pai foi
mergulhador escafandrista e há 30 anos encontrou o mastro da corveta
Esmeralda”, que naufragou durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), contou.
Bavestrello, dirigente do Conselho Nacional pela
Defesa do Patrimônio Pesqueiro do Chile (Condepp), está há dois meses sem subir
em uma embarcação. Suas forças estão voltadas para o que hoje considera um bem
maior. A anulação de uma controvertida Lei de Pesca em vigor desde 2013, que
foi promovida pelo governo do presidente direitista Sebastián Piñera
(2010-2014) e outorga concessões por 20 anos, prorrogáveis.
Integrantes da Comissão Nacional pela Defesa do
Patrimônio Pesqueiro do Chile protestam em Santiago contra a Lei de Pesca,
denunciando que ela deixou sem acesso aos recursos pesqueiros 90% dos
pescadores artesanais. Ao centro, de cabelos brancos, o dirigente Gino
Bavestrello. Foto: Claudio Riquelme/IPS.
Com essa lei aumenta a concentração da atividade a
favor da indústria, segundo denunciam os pescadores, pois ela estabelece que os
direitos de pesca das grandes companhias poderão ser entregues a título
perpétuo e serem herdáveis. Além disso, a lei atenta contra a biofauna marinha
e, portanto, contra o sustento dos pescadores artesanais.
A isso se somam práticas irregulares, como emergiu
em uma recente investigação judicial, que constatou milionários pagamentos da
empresa Corpesca, que controla 51,5% do mercado chileno, a parlamentares que
integravam a Comissão de Pesca do Senado quando essa instância aprovou a Lei de
Pesca.
“Para nós é muito grave o que está acontecendo. Há
dois meses não levamos nenhum sustento para nossas famílias. Organizamos
refeições comunitárias e, graças à população que nos ajuda constantemente,
podemos alimentar nossos familiares”, contou Bavestrello.
O dirigente reconheceu que “agora o que fazemos é
vender lenha, e por isso caímos em práticas ilegais, como cortar árvores
nativas”. Por isso, acrescentou, “é necessário que se possa regular rapidamente
essa lei. Os pescadores não podem continuar nessas condições. O que essa lei
quer é nos matar”, ressaltou.
Juan Carlos Quezada, porta-voz da Condepp, afirmou
à IPS que a lei não privatizou apenas os recursos, mas também expropriou os
direitos dos pescadores artesanais. “Dos pescadores artesanais, 90% ficaram sem
cotas de pesca”, porque foram destinadas apenas à indústria e aos armadores,
apontou. “Os pescadores artesanais que antes tinham uma cota, uma participação
na atividade econômica da captura de peixes, ficaram sem direitos e, portanto,
muitos estão parados”, denunciou.
Segundo Quezada, como consequência, os afetados
“tiveram que mudar de atividade, e a grande maioria está se transformando em
trabalhador assalariado de outros pescadores artesanais donos de várias
embarcações”, porque quem tem mais de dois barcos é considerado armador.
A competição desigual entre pescadores artesanais e
industriais é parte de uma complexa crise, na qual a sustentabilidade ecológica
também está em risco nos países sul-americanos. Um exemplo dessa realidade
acontece no Peru, onde a empresa de petróleo argentina Pluspetrol é responsável
pela contaminação de rios e do lago Shanshacocha, na Amazônia. Por essa razão,
a captura de peixes diminuiu quase 50% nesse lago.
Além disso, a escassez de anchova em águas peruanas
deixa em perigo as exportações de óleo e farinha de pescado, um dos principais
produtos de exportação desse país. Na Colômbia, porém, uma pesquisa do Grupo de
Biologia da Universidade Nacional concluiu que hoje existem até três vezes
menos peixes nas águas nacionais do que na década de 1970.
“A atividade industrial na região pressiona, cada
vez mais, os pescadores artesanais”, afirmou Skewes. “Atualmente, estamos em um
cenário em que o grande produtor industrial se apropriou de uma parte
importante não apenas do oceano, mas dos cardumes”, ressaltou.
Essa situação “forçou o pequeno produtor artesanal
a estabelecer formas de sobrevivência que começam a ficar complexas para a
manutenção de todo o ecossistema. O dano afeta as pessoas de recursos escassos
que começam a se recolocar em outros setores de produção, o que ajuda a deixar
invisível o problema do ponto de vista social”, afirmou Skewes.
Contudo, os pescadores artesanais não desistem da
luta. “Hoje lutamos contra a pobreza do povo pesqueiro artesanal, que vivia dos
recursos naturais e que entregava esses recursos ao povo como soberania
alimentar”, destacou Bavestrello. “Nós, pescadores, temos que continuar vivendo
dos recursos naturais porque pescamos para viver, enquanto os industriais o
fazem para obter lucro”, enfatizou.
Fonte: ENVOLVERDE
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