Água a
qualquer custo?
Por Sérgio Adeodato –
Rio protegido por reserva ecológica está na
mira das obras para o abastecimento de São Paulo, sem estudo de impacto
ambiental
O cenário ao longo da escorregadia trilha de 13
quilômetros montanha abaixo entre o distrito de Taiaçupeba, em Mogi das Cruzes
(SP), e Bertioga (SP), no litoral, retrata um dilema bem diferente do
enfrentado pelos colonizadores portugueses que viam no relevo da Serra do Mar
um obstáculo para desbravar os sertões. No início do percurso, a Mata Atlântica
encontra-se em processo de regeneração natural, após séculos de impactos
causados por diferentes ciclos econômicos, e é enriquecida por plantio de
palmito-juçara. A palmeira nativa atrai fauna em busca de alimento e esta, por
sua vez, dispersa sementes de várias espécies para o crescimento da floresta. A
cobertura vegetal íntegra, mantida por um grande esforço de conservação em
lugar tão próximo de cidades populosas, protegeu valiosos estoques de água – e
é exatamente aí que está a polêmica.
A questão recai sobre o Rio Itatinga, manancial
hoje visto pela Sabesp, a companhia de abastecimento de São Paulo, como
estratégico para evitar torneiras vazias na maior metrópole brasileira. O plano
emergencial de obras, arquitetado a toque de caixa, prevê captar ali 1,2 mil
litros por segundo para nutrir represas que estão poluídas e obrigam alto custo
de tratamento. “É preciso transparência para não haver conflitos, porque a água
é da população de Bertioga”, diz Paulo Groke, diretor de sustentabilidade do
Instituto Ecofuturo, ligado à indústria de papel e celulose Suzano. Ele pergunta:
“De que adianta conservar um rio em quase toda a sua extensão, se um trecho
mais abaixo sofre impactos para beneficiar outra região, sem compensação para
quem o protege?”
O Parque das Neblinas, reserva particular de 2,8
mil hectares mantida pela instituição ao custo de R$ 1 milhão por ano, abriga
as nascentes e todo o percurso do Itatinga no alto da serra, antes da descida
em direção do mar. Nele vivem peixes ameaçados, como o lambari Coptobrycon
bilineatus, que havia sido coletado por cientistas pela última vez em 1915 e
foi achado na área durante o levantamento da fauna para o plano de manejo. Uma
das 35 espécies de mamíferos é o muriqui, o maior primata das Américas.
Voltada para a educação ambiental, a reserva
guarda antigas árvores de eucalipto, herança dos tempos em que a área foi usada
para experimentos pioneiros de silvicultura e plantios para abastecimento da
indústria de celulose. Antes disso, a Mata Atlântica era convertida em carvão
para as siderúrgicas. Mas, com o aperto das leis ambientais e a dificuldade da
mecanização em relevo íngreme, constatou-se que a floresta da região poderia
valer mais em pé do que derrubada. Até que hoje, diante da crise hídrica, os
olhares se voltaram para a água lá estocada.
No fim do ano passado, com receio de colapso no
abastecimento dos veranistas no Réveillon, a Sabesp fez uma captação
emergencial durante quatro dias, dentro do Parque das Neblinas, com 5
quilômetros de tubulação até o Guarujá. Depois cogitou fazer uma barragem para
desviar 2,8 mil litros por segundo, o que implicaria a inundação da floresta.
No final, o projeto previu retirar um volume menor, fora da reserva
privada.
O governo estadual tem argumentado que seguir o
rito ambiental impedirá trazer a água para a população. Apesar disso, o Ministério
Público exigiu informações sobre os estudos de impacto ambiental da obra, ainda
não apresentados. O Itatinga é importante para o equilíbrio ecológico dos
manguezais, em Bertioga. Além disso, nele está localizada uma das hidrelétricas
mais antigas do País, inaugurada em 1910, hoje responsável por 60% da energia
necessária às operações do Porto de Santos, o maior do Brasil e da América
Latina. E a menor vazão do rio, decorrente da captação da água, pode prejudicar
o funcionamento da usina.
“Após o carvão e o eucalipto, nossa salvação está
no turismo”, afirma Paulo Pinheiro de Souza, o Zé Ferro, um contador de causos,
ex-caçador e ex-funcionário de siderúrgica que hoje se dedica a cultivar
cambuci, fruto nativo de mil e uma utilidades. Uma atração é a trilha que desce
a Serra do Mar, beirando o Itatinga até uma vila histórica ao pé das montanhas.
No caminho há mirantes com vista para o oceano. E também cachoeiras. Naquela
floresta protegida, escudo contra ocupações urbanas irregulares, água não
falta. Mas é preciso saber usá-la.
* Sérgio Adeodato
é jornalista
Fonte: Página
22
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