Os
ponteiros da ação.
Brasileiro José Graziano dirige a FAO. Foto: Ryan
Brown/ONU.
Por José Graziano da Silva*
O tempo das constatações ficou para trás. Alarmes
econômicos e ambientais já cumpriram o seu papel: chegou a hora de ajustar os
ponteiros da cooperação internacional para uma ação transformadora.
Vivemos uma transição de ciclo econômico. A
correlação entre as escolhas do desenvolvimento e o manejo sustentável dos
recursos naturais incorporou-se à pauta das nações. É através dela que todas as
demais prioridades poderão respirar; sem contemplá-la, definharão.
Esse discernimento é indispensável para enxergar
melhor a oportunidade e a relevância de três eventos agendados para este
segundo semestre de 2015.
Em setembro, representantes de todo o planeta
reúnem-se na ONU para aprovar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS), que sucederão os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
Essa não é uma mera mudança de siglas. Os ODM foram
em grande medida uma criação das organizações internacionais impostas
“top-down” aos países em desenvolvimento. Agora, com os ODS, vemos um processo
inverso em marcha: os países membros do Sistema ONU, desenvolvidos e em
desenvolvimento, tomaram a liderança em definir o “futuro que queremos”, como
sugeria o título do documento final da Rio+20 que deu origem a tais metas.
Em dezembro, será a vez da Conferência do Clima,
que acontece em Paris. A chamada CoP21 tem a missão de pactuar um novo consenso
global para evitar um aquecimento da terra superior a 2º C até o final do
século. Nesta ocasião, os compromissos concretos já assumidos por vários países
esboçam o cenário de uma conferência que promete ir além de declarações
superficiais.
Paris sediará no final deste ano a importante
Conferência do Clima, COP21. Foto: Gare de Lyon, Paris/Shutterstock.
Não estamos diante de um calendário protocolar. As
reuniões de setembro e dezembro derivam e convergem para um mesmo fio condutor,
aquele que o Papa Francisco resumiu de forma lapidar na encíclica “Louvado
Seja”: o desafio do meio ambiente e o da pobreza são parte de uma mesma crise.
Novas formas de viver e de produzir cobram seu
espaço nas metas que serão consagradas na ONU, em setembro e, três meses
depois, nos compromissos para o clima, em Paris. A consciência da travessia só
se transformará em ação consequente, porém, se a cooperação internacional
providenciar os recursos necessários.
Entra aí o terceiro pilar deste ano decisivo: a
Conferência da ONU sobre Financiamento ao Desenvolvimento, que ocorre em Adis
Abeba em julho. Anterior às edições de Nova York e Paris, menos midiática, mas
não menos importante – na verdade crucial- a reunião na capital etíope desafia
as nações a firmarem um acordo para compartilhar a conta global do combate à
fome e à pobreza extrema, do desenvolvimento sustentável, da adaptação à
mudança climática e da transição para modelos de produção menos destrutivos.
Trata-se de harmonizar três imperativos: o
crescimento equilibrado; o crescimento inclusivo e o crescimento sem fome. Um
resultado prático poderá ser a inclusão dos mais pobres nos orçamentos
nacionais dos países que definirem o combate à fome e à miséria como suas
prioridades políticas.
Nos últimos 70 anos, a população mundial triplicou;
a oferta per capita de comida quase duplicou. O número de pessoas com fome caiu
em mais de 210 milhões desde 1990; a proporção dos que passam fome recuou cerca
de 40%.
É possível – é imperativo – ir além: 800 milhões
ainda vivem sob o torniquete da insegurança alimentar. Ao mesmo tempo, taxas de
obesidade sobem em todo o planeta, na evidência incontornável de que a
segurança alimentar adequada deixou de significar apenas a garantia mínima de
calorias. Cada vez mais ela abarcará também o cuidado com a qualidade da dieta
humana.
A abundância ao lado da fome reitera, sobretudo, a
persistência de desafios de distribuição e acesso que extrapolam a questão
agrícola.
Definitivamente, essa não é uma questão técnica. O
ferrolho que comprime o passo seguinte do nosso tempo é de outra ordem.
Destravá-lo implica uma coordenação cooperativa dos recursos para o
desenvolvimento sustentável.
Trata-se, entre outras coisas, de dar ao
desenvolvimento reprimido, à terra ociosa, ao trabalho subutilizado, o emprego,
o crédito, a renda e os recursos tecnológicos necessários à superação da lógica
movediça da crise mundial. Mais que nunca está claro, trata-se de uma crise
fruto do desemprego e da desigualdade crescentes, e de uma saturação física no
uso dos recursos que formam as bases da vida na terra.
A FAO se preparou para fazer a sua parte nessa
travessia.
Equipes e recursos reforçaram a nossa presença nos
países e regiões que mais precisam de apoio nessa transição.
Remanejamentos de quadros e de orçamento foram
implementados para torná-la um centro irradiador de inteligência com os pés
ancorados nas frentes da universalização da segurança alimentar, da produção
sustentável, da valorização dos agricultores familiares, da inclusão social, e
da resiliência às mudanças climáticas.
Interliga-se a essas diretrizes o desafio de
incorporar 500 milhões de propriedades familiares ao novo padrão de crescimento
do século 21, de modo a reforçar a segurança alimentar ali onde,
paradoxalmente, ela é mais frágil: 75% da fome hoje concentra-se na área rural.
Não estamos falando de boas intenções, mas de urgências dotadas de lastro
social, político e tecnológico.
Há uma década, erradicar a fome no Brasil era
considerado uma agenda utópica. O país provou que isso era possível e saiu do
mapa da fome. Mundo afora, 72 de 129 nações em desenvolvimento monitoradas pela
FAO alcançaram o desempenho previsto nos ODM de reduzir a proporção de pessoas
subnutridas a menos da metade.
Podemos ser a primeira geração Fome Zero,
consolidando o passo indispensável a um desenvolvimento equilibrado e
inclusivo. É isso que os ponteiros da urgência e da oportunidade estão a nos
dizer: chegou a hora.
* José Graziano da Silva é diretor-geral da
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
Fonte: EcoD
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