Rio
Madeira: Depois da cheia.
Crianças ficaram sem escola no Distrito de Nazaré.
Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
Trabalho de campo da perícia nas usinas do Madeira
está parado por falta de recursos. Os peritos, todos especialistas renomados,
deveriam analisar e coletar dados do reestudo do impacto socioambiental das
barragens.
Por Ana Aranda, especial para a agência Amazônia
Real –
Porto Velho (RO) – As cheias recorrentes do rio
Madeira e o aumento do volume de chuvas – que se prolongaram neste ano até o
mês de junho, quando antes cessavam em março – provocaram nas populações
ribeirinhas de Rondônia um medo constante de que suas casas e bens voltem para
debaixo d´água na próxima enchente e, assim por diante.
Um ano depois da maior enchente em 100 anos,
registrada em 2014, os efeitos das inundações permanecem presentes na vida e no
sentimento do povo com uma certeza: além das mudanças climáticas, a instalação
das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau alterou a rota migratória dos peixes
e aumentou o assoreamento do leito do rio Madeira.
Os pescadores reclamam do sumiço dos peixes tanto
acima quanto abaixo das barragens, diz o ecólogo Philip Fearnside, do Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), um dos especialistas que deveria
estar analisando em campo, por meio de uma perícia técnica independente, o
reestudo do EIA-Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) das usinas que
determinado por uma liminar da Justiça Federal, em março do ano passado.
A usina da Santo Antônio foi instalada a 7 km acima
de Porto Velho a jusante de Jirau (ESBR), que foi construída a 120 km (a
montante) da capital de Rondônia, distante a 100 km da fronteira de Rondônia
com a Bolívia.
Philip Fearnside disse à Amazônia Real que ele e
mais dois especialistas – Célio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da
Universidade de São Paulo (USP) e Edna Maria Ramos de Castro, do Núcleo de
Altos Estudos Amazônicos (NAEA) – viajaram apenas uma vez para acompanhar o
reestudo do EIA-Rima em campo, em Rondônia. A comissão é formada por oito
peritos, todos indicados pelo Ministério Público Federal. Sem recursos, eles
analisam os dados dos impactos ambientais por documentos elaborados pelos
consórcios e enviados ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis).
Philip Fearnside em visita ao canteiro de JJirau
com membros da Justiça. Foto: ESBR.
Com exceção de uma viagem inicial às duas barragens
e um evento em Porto Velho, o grupo tem ficado basicamente parado. Está parado!
Parece que um juiz acima do Raphael (procurador) não apoia a iniciativa, e tem
bloqueado recursos e formalização do processo”, disse o maior especialista nos
estudos de impactos de construções de barragens na Amazônia, citando o juiz
Herculano Martins Nacif e o procurador da República, Raphael Bevilaqua.
O procurador Raphael Bevilaqua é um dos autores da ação civil pública com
pedido de indenização por dano moral às famílias afetadas. A ação foi julgada pelo juiz Herculano
Nacif, da 5ª. Vara Federal de Porto Velho. A decisão obrigou os consórcios
Energia Sustentável do Brasil, que construiu e opera a usina de Jirau, e Santo
Antônio Energia, responsável pela usina de Santo Antônio, a custearem a perícia
técnica. O juiz também determinou que os peritos analisassem o reestudo dos
impactos socioambientais, supervisionado pelo Ibama.
Em outra ação, o juiz Herculano Nacif revogou a sua
própria decisão que obrigava os consórcios a pagarem o trabalho dos peritos. O
Ministério Público Federal entrou com um recurso contestando, mas perdeu.
Segundo o procurador Raphael Bevilaqua, os peritos indicados trabalham
voluntariamente, mas faltam recursos para os deslocamentos da equipe e das
viagens de campo, entre outras despesas, o que inviabiliza a análise
independente.
Além de Philip Fearnside, Célio Bermann e Edna
Maria Ramos de Castro fazem parte da comissão de peritos Carlos Bernardo
Vainer, do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN);
Alfredo Wagner Berno de Almeida, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA);
Sônia Maria Simões Magalhães, do NUMA (Núcleo de Meio Ambiente), Jorge Molina,
do Instituto de Hidráulica e Hidrologia (IHH) da Bolívia; e Paulo Andreas
Buckup, do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Ictiologia.
Na decisão que obrigou os consórcios a refazer o
EIA-Rima, juiz Herculano Martins Nacif pediu que fossem considerados no
reestudo todos os impactos decorrentes da vazão histórica do rio Madeira em
relação aos aspectos mais relevantes como a ictiofauna, tamanho dos
reservatórios, população afetadas e reservas ambientais atingidas, entre
outros. Ele também obrigou os consórcios das usinas a atender as necessidades
das famílias atingidas pela enchente, como moradia, alimentação, transporte,
educação e saúde sob pena de multa diária de R$ 100 mil e perda da licença de
operação.
Na decisão, o juiz Herculano Nacif afirmou que
apesar das usinas de Santo Antônio e Jirau serem construídas a “fio d´água”
(sem armazenamento) “o modelo criou reservatórios que ampliaram a área alagada
à montante (nascente) das barragens”. “O dano é o alagamento suportado pelos
moradores da região à margem dos reservatórios. Já o nexo casual entre a
conduto e dano é o fato de que áreas que nunca antes seriam alagadas — mesmo
com a cheia extraordinária do rio Madeira — agora passam a ser”, disse o
magistrado.
Em entrevista à agência Amazônia Real, o juiz
Herculano Nacif afirmou que revogou o pagamento da perícia técnica dos
especialistas pelos consórcios porque o trabalho deles não é uma perícia
judicial determinada pela Justiça, que tem previsão de despesas com honorários.
Não nomeei essa comissão de peritos. O Ministério Público
foi quem indicou a comissão para acompanhar o reestudo. As despesas têm que
sair do Ministério Público”, disse o magistrado Herculano Nacif.
Sobre a declaração do cientista Philip Fearnside de
que o magistrado não apoia a perícia técnica independente e tem bloqueado
recursos, Herculano Nacif reagiu: “Não cabe a mim apoiar ‘a’ ou ‘b’. Não cabe a
mim apoiar ninguém. Os réus da ação (os consórcios) não são obrigados a custear
essa ação, não é devida. Se o Ministério Público Federal ou quem quer que seja
interessado no processo não concordar, que busque a reformar a decisão, e não
fazer um juízo de valor de que a Justiça não está apoiando, isso é
irrelevante”, afirmou o juiz.
Para o procurador do MPF, Raphael Bevilaqua, o juiz
Herculano Martins Nacif “mudou de opinião” quanto ao pagamento da perícia pelos
consórcios. (Leia entrevista exclusiva aqui)
Moradores do Distrito de Nazaré reclamam da
escassez do pescado depois da cheia. Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
Peixes sumiram e subsistência foi comprometida
Passados 16 meses da decisão que formou a comissão
da perícia técnica independente para analisar o reestudo EIA-Rima das usinas de
Santo Antônio e Jirau, o ecólogo Philip Fearnside afirma que as análises já
comprovam o que as pesquisas anteriores
confirmavam sobre os impactos socioambientais das duas barragens no Madeira.
Segundo ele, “os impactos são muitos” e enumera cada um:
1) O bloqueio da migração dos bagres é inegável.
2) Sumiço dos peixes tanto acima quanto abaixo das
barragens.
3) O deslocamento da população.
4) Destruição dos meios de subsistência da
população de pescadores, representando graves problemas sociais.
5) Erosão da orla de Porto Velho.
6) O isolamento do Estado do Acre durante meses na
ocasião da enchente de 2014, ambos com um papel das barragens.
Com as barragens, assoreamento aumentou
O físico, professor e pesquisador da Universidade
Federal de Rondônia (Unir), Artur Moret, não faz parte da comissão de peritos
que analisa o reestudo do EIA-Rima das usinas. Em entrevista à Amazônia Real
sobre a relação das enchentes com a construção das hidrétricas de Santo Antônio
e Jirau, ele disse que em intervalos de 18 a 20 anos ocorria uma cheia
excepcional no rio Madeira. Foi o que aconteceu em 1950, quando as águas
tomaram ruas do centro de Porto Velho. Em 1997, quando o nível do rio chegou a
17,56 metros, até então a marca histórica em 47 anos das medições hidrológicas.
Em 2014 foi registrada a enchente história, a maior
em 100 anos. Este ano ocorreu uma grande cheia, com menos danos, mas foi a
quinta mais forte.
A diferença das outras cheias para estas mais
recentes é fundamental nos estudos da hidrologia. O rio Madeira carrega muitos
sedimentos. Com a redução do movimento da água nas barragens os sedimentos se
acumulam, provocando o assoreamento do rio. Nas proximidades de Nova Teotônio
não dá mais para pescar porque o lago já está assoreado”, disse Moret.
O pesquisador da Unir diz que no dia 17 de fevereiro do ano
passado, a Agência Nacional da Água (ANA) determinou a abertura das comportas
da hidrelétrica de Santo Antônio para garantir a integridade de estruturas das
usinas. Segundo Artur Moret, quando uma energia é disponibilizada provoca uma
grande turbulência.
“A quantidade de energia disponibilizada na ocasião
carregou o sedimento que já estava no lago mais o que era carregado pelo rio
Madeira, que se depositou à frente da barragem”, afirmou o físico.
Artur Moret exemplifica as consequências do
assoreamento do rio Madeira com a situação da comunidade de Cujubinzinho, que
fica no entorno de Porto Velho.
“As pessoas já não têm mais aquela quantidade de
produção de frutas e outros produtos cultivados na região por que o sedimento
se depositou na frente das casas e em bancos de areia que chegam a um e dois
metros. Não é difícil perceber que isto está acontecendo. É só ir lá e olhar.
Muita gente, inclusive alguns operadores da Justiça, não têm sensibilidade de
olhar este aspecto”, afirmou o pesquisador da Unir, Artur Moret.
Reservatório da usina de Santo Antônio, em 2014.
Foto: Cley Medeiros
Barragem da usina de Jirau durante a enchente de
2014. Foto: Sérgio Vale/Secom AC.
Consócios negam relação da enchente com obras
Os consórcios das hidrelétricas Santo Antônio
Energia e Empresa Sustentável do Brasil (ESBR), que opera Jirau, negam que as
barragens construídas ao longo do rio Madeira tiveram relação com a cheia
histórica, em 2014.
As obras do PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento) receberam investimentos de R$ 33,4 bilhões do governo federal para
gerar energia para mais de 40 milhões de pessoas a partir da subestação de
distribuição de Araraquara, em São Paulo, no Sudeste do país.
A reportagem procurou os consórcios de Santo
Antônio e Jirau para comentar os questionamentos do MPF e do cientista Philip
Fearnside, mas apenas a Santo Antônio Energia respondeu por meio de nota. (Leia
aqui).
A assessoria de imprensa da Presidência do Ibama,
em Brasília, também foi procurada, mas o órgão federal que licenciou as usinas
do Madeira não respondeu às perguntas enviadas pela Amazônia Real. Não é a
primeira vez que a Presidência do Ibama não comenta denúncias contra os danos
ambientais das usinas do Madeira. Em 2014, o órgão não se posicionou sobre a
mortande de peixes no reservatório de Jirau, leia aqui.
Poços artesianos continuam contaminados
Moradores do Distrito de Nazaré foram removidos das
casas. Foto: Rondôniagora
Meninos de Nazaré retomam brincadeiras depois que a
água baixo. Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
Enquanto a perícia técnica no EIA-Rima das usinas
de Santo Antônio e Jirau não é concluída para saber se populações foram
afetadas pelas barragens, as famílias vão tentando retomar a vida em meio a
novas inundações. A cheia deste ano do rio Madeira foi considerada a quinta
maior em 47 anos do monitoramento realizado pelo Serviço Geológico do Brasil,
em Porto Velho. O nível da água alcançou a marca de 17,18 metros, ficando 2,56
metros abaixo da enchente histórica de 2014 que chegou a 19,74 metros, a maior
em cem anos.
O coordenador da Defesa Civil afirma que estas
famílias tiveram os poços artesianos contaminados e estão sendo abastecidas com
água potável. A cada 20 dias, é o órgão que entrega a cada família fardos
contendo garrafas de 2 litros de água e kits de material de limpeza.
“O número de pessoas atingidas esse ano (8.055)
pela enchente só não foi maior porque no ano passado já haviam sido retiradas
as populações mais vulneráveis”, afirma o diretor de Planejamento e Operação da
Defesa Civil de Rondônia, tenente-bombeiro Artur Luiz Santos de Souza,
classificado a enchente histórica como um desastre natural de grande proporção.
Já o coordenador da Defesa Civil de Porto Velho,
Marcelo Silva Santos confirma os impactos na pesca e no assoreamento do rio
Madeira, mas não cita responsabilidades das usinas nos danos sociais e
econômicos da população.
Os sedimentos endurecidos (areia e vegetação)
levados pela água formaram bancos de areia com mais de um metro de altura, o
que impede a agricultura de várzea. As famílias que sobrevivem da pesca estão
com a produção reduzida. Elas dependem da ajuda de parentes e de recursos
governamentais”, disse Santos.
Governo fará deslocamento oficial em distritos
Menina de São Carlos, distrito que será removido
por inteiro. Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
Como o nível das águas do rio Madeira permaneceu
mais alto do que nos anos anteriores no período da vazante (seca) e, para
evitar que as populações sofram com inundações e tenham danos sociais e
econômicos na próxima cheia, pela primeira vez o governo de Rondônia e a
Prefeitura de Porto Velho irão promover um deslocamento institucional das
populações afetadas pela enchente nos distritos.
Os primeiros distritos beneficiados com os
deslocamentos serão os da chamada região do baixo Madeira. Nessa área, a
população que conseguiu voltar para casa continuou impedida de plantar na área
de várzea, pois as terras férteis permanecem alagadas. Durante a cheia do ano
passado, não foi possível salvar animais domésticos. As árvores frutíferas
morreram e os poços artesianos foram contaminados, dificultando o acesso a água
potável. Casas foram destruídas por sedimentos. Com o tempo, eles endureceram,
formando grandes bancos de areia que hoje impedem a utilização de banheiros e
até mesmo o acesso aos locais onde vivia antes a população.
Cerca de 1.800 mil famílias (9.000 pessoas)
moradoras dos Distritos de Porto Velho: Nazaré, Calama e São Carlos serão
removidas para uma área descontínua de cerca 2.687 hectares localizada em
terras altas. Nelas, o governos planejam construir casas populares, reformar e
transferir escolas, postos de saúde, entre outras bens públicos. Os terrenos
serão divididos em lotes para reassentar as famílias.
Em Nazaré, uma das áreas mais afetadas pelas
inundações e distante a 200 quilômetros de Porto Velho, cerca de 300 famílias
(1.500 pessoas) foram retiradas do distrito pela Defesa Civil durante a
enchente do ano passado e abrigadas em Porto Velho e comunidades vizinhas. Com
a aquisição de uma faixa de terra de 150 hectares, a prefeitura vai reassentar
400 famílias (2.000 pessoas).
No Distrito de Calama, no baixo Madeira, 692
famílias (3.460 pessoas) foram atingidas pela enchente de 2014. Essas famílias
serão deslocadas para uma área de 300 hectares localizada na mesma região,
porém em terras altas, distantes das alagações. Já em São Carlos os reassentamentos
de 700 famílias (3.500 pessoas) serão numa área de 149 hectares, mas na outra
margem do rio Madeira.
Segundo o secretário municipal de Planejamento,
Jorge Elarrat, essas terras estão longe de áreas de risco de inundações do rio
Madeira. Elas foram adquiridas de terceiros e da União, mas precisam ainda de
regularização fundiária, licenciamento ambiental e urbanização. Ele disse que
após o processo que envolve a Secretaria de Patrimônio da União, o Programa
Terra Legal e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) é
que os órgãos públicos poderão providenciar as instalações de escolas, unidades
de saúde e reassentar as famílias. Não existe uma data para começar as obras de
infraestrutura e da mudança da população de Nazaré, Calama e São Carlos.
Elarrat afirma que os deslocamentos das populações
dos distritos para áreas mais altas e, em alguns casos distantes do local de
origem de nascimento delas, dividiram opiniões. Há os moradores que querem se
mudar e os que se negam a sair dos locais de origem. No Distrito de São Carlos,
por exemplo, a resistência é deixar o lugar onde há o cemitério das
comunidades, a igreja tradicional e toda uma história de vida. As famílias
serão removidas para outra margem do rio Madeira, distante 5 quilômetros do
local de origem.
Para amenizar os impactos sociais em São Carlos,
Elarrat disse que um projeto de urbanização foi elaborado por alunos e
professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uniron (União das
Escolas Superiores de Rondônia). O distrito, que está sendo chamado de “Nova
São Carlos”, ficará a 70 quilômetros de distância do centro de Porto Velho. O
projeto prevê construção de infraestrutura do serviço público, com escolas,
posto de saúde, área de lazer com arborização e vias de tráfego específico para
veículos, pedestres e ciclistas.
O secretário municipal de Planejamento, Jorge
Elarrat, não informou o total de gastos previstos para as construções dos novos
distritos, mas anunciou que o Plano de Trabalho e Reconstrução destinado a recuperar
ou refazer prédios destruídos pela cheia, proteger encostas ameaçadas de
desmoronamento, reconstruir os distritos, entre outras obras, foi orçado em
mais de R$ 200 milhões. Esse plano, segundo ele, foi enviado para o Ministério
da Integração em setembro do ano passado. “O governo ainda não se manifestou
sobre este recurso, e não sei se haverá prioridade para estas obras diante da
crise econômica do Brasil”, afirma o secretário.
A Defesa Civil apoiou o plano de deslocamento das
famílias dos distritos afetados pela enchente.
Para o coordenador de operações
da Defesa Civil do Estado de Rondônia, tenente Artur Luiz Souza dos Santos (do
Corpo de Bombeiros), a cultura difundida na Amazônia de viver em áreas de
várzea precisa ter um fim. Ele afirma que as áreas mais baixas, com risco de
alagação, devem ser desocupadas e as populações deslocadas para áreas livres de
inundação e desabamento, tanto na região urbana como na rural.
As prefeituras e os estados sempre aceitaram esta
situação, mas a determinação agora é que não sejam construídas obras públicas
em áreas de risco”, disse tenente Souza dos Santos.
“A beira do rio é o meu lugar”
Crianças do lago do Cuniã, no Distrito de São
Carlos, que será removido para outro lugar. Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
No Distrito de Calama, no baixo Madeira, 692
famílias foram atingidas pela enchente de 2014. Essas famílias serão deslocadas
para uma área de 300 hectares localizada na região mais alta do distrito.
Moradora de Calama, Maria das Graças Ferreira
Silva, 55 anos, disse à agência Amazônia Real que cresceu vendo o rio Madeira
subir e descer na cheia e na seca. Mas o que enfrentou na enchente histórica
lhe provocou um medo. “Passei a sofrer de depressão depois da grande cheia. Por
um bom tempo eu não conseguia comer e nem beber água. Fiquei tão magra que dava
para entrar numa garrafa”, afirmou.
Maria das Graças Silva disse que procurou o SUS
(Sistema Único de Saúde) para receber atendimento psicológico, mas só conseguiu
marcar uma consulta médica para depois de dois meses. Com isso, passou a se
tratar com medicina homeopata e plantas medicinais, por sugestão de uma amiga.
“Melhorei bastante. Pelo menos eu já consigo comer”, afirmou, mas contou que a
família ainda não conseguiu consertar a casa “que entortou com a cheia”.
A dona de casa Raimunda Soares das Neves, 43 anos,
confirma a situação desoladora no Distrito de Calama. Proprietária de um sítio
na localidade de Ilha Nova, ela afirma que “perdeu tudo: os animais, as
fruteiras, a lavoura. O sítio ficou irreconhecível”.
Também de Calama, mas moradora de Porto Velho, a
técnica administrativa Veradiana Bezerra dos Santos, 43 anos, trabalha com a
venda de bombons, bijuterias e outras miudezas nos barcos de passageiros que
navegam ao longo do Madeira. Ela reclama das vendas, ” que diminuíram em 80%”,
calcula.
Sem peixe desde a construção das hidrelétricas e
sem ter como plantar, está todo o mundo sem dinheiro. O movimento só aumenta
quando o pessoal recebe a ajuda de custo do governo”, disse Veradiana Santos.
Conferente de um barco de passageiros que percorre
os distritos do médio e baixo Madeira, Mateus Ferreira Neto confirma a redução
do poder aquisitivo da população do Calama. “As cargas de hortifrutigranjeiros
reduziram drasticamente, assim como o número de passageiros”, disse.
Na área de influência da BR-364, que liga Porto
Velho a Rio Branco (AC) e que também ficou intransitável pela força da água,
foram afetadas na enchente histórica do rio Madeira as populações dos Distritos
de Abunã, Fortaleza do Abunã e Jaci- Paraná, região do alto Madeira. Das 636
atingidas, 35 não conseguiram retornar às residências por conta dos estragos
provocados pela alagação do ano passado. Nessas áreas, não foi possível salvar
animais domésticos. As árvores frutíferas morreram e os poços artesianos foram
contaminados. Casas foram destruídas por sedimentos. Com o tempo, eles
endureceram, formando grandes bancos de areia que hoje impedem a utilização de
banheiros e até mesmo o acesso aos locais onde vivia antes a população.
População não se recuperou no bairro do Triângulo
O bairro durante a enchente de 2014. Foto: Lunaé
Parracho/Greenpeace
Depois da cheia, casas do bairro do Triangulo
ficaram danificadas. Foto: Ana Aranda/Am Real.
Em menor proporção do que em 2014, a cheia de 2015
do rio Madeira em Porto Velho fez o município decretar estado de alerta no mês
de janeiro, quando as águas começaram a subir. Os bairros Nacional, Triângulo,
Balsa, São Sebastião, Baixa União, Belmont e Milagres foram novamente atingidos
por inundações.
A reportagem da agência Amazônia Real visitou o
bairro do Triângulo, um dos mais antigos pela cheia do rio Madeira desde 2014.
A população ainda não se recuperou dos danos passados e enfrentou outra
enchente este ano. As marcas das destruições das inundações estão nas ruas, nos
prédios e nas casas.
Habitado por descendentes de trabalhadores da
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o Triângulo está distante a 6,5
quilômetros da usina hidrelétrica de Santo Antônio. Por causa dos
transbordamentos e forte correnteza, parte da orla do bairro na margem do rio
desmoronou e desapareceu.
O produtor Nathan de Oliveira (blusa azul), resiste
no Triângulo. Foto: Ana Aranda/AmReal.
Antes mesmo da grande cheia histórica, a abertura
de comportas da hidrelétrica de Santo Antônio já tinha causado estragos no
Triângulo. Um total de 150 casas do bairro foram atingidas pelos banzeiros e destruídas
pelas águas. A Justiça determinou que o consórcio responsável pela obra Santo
Antônio Energia (SAE) indenizasse os moradores.
Filho de ferroviário e neto de um dos trabalhadores
da construção da ferrovia, o aposentado Jesuá Johnson, 64 anos, lembra do
bairro com “saudade e tristeza”. “Aqui moravam as famílias mais antigas da
cidade. Uma comunidade importante da história e da cultura de Porto Velho. Que
desapareceu. Uma perda irreparável para a cidade”, disse Johnson.
Um dos poucos moradores que ainda vivem na região
afetada do Triângulo, próximo ao ponto em que o bairro desmoronou, é o produtor
de goma de tapioca e farinha de macaxeira Nathan de Oliveira, 78 anos. Ele diz
que também está se preparando para sair do local, onde viveu durante 52 anos.
Comprei um terreno em uma região próxima, mas
distante das águas, onde instalar uma fábrica e a minha família. Com as
hidrelétricas (no rio Madeira), tenho medo de ficar porque não sei o que pode
acontecer”, afirmou Nathan de Oliveira.
Recurso do governo é a fonte de renda dos
ribeirinhos
Ao todo, 7.640 famílias (cerca de 39 mil pessoas)
receberam o pagamento do aluguel social do governo de Rondônia, em 2014. Já em
março deste ano, o Estado teve dificuldades para a distribuição do recurso. O
Banco Central determinou que os pagamentos deveriam ser feitos por meio de
cartões magnéticos, ao invés da apresentação de documentos. Uma investigação
apura se os entraves nos pagamentos aos beneficiados foram provocados por
fraudes no recebimento dos recursos no ano anterior.
A Prefeitura de Porto Velho anunciou um projeto de
apoio aos ribeirinhos como a recuperação de áreas agricultáveis, estradas e
retirada dos bancos de areia levados pela cheia nas áreas habitadas. No último
dia 3 de junho, o secretário municipal de Agricultura, Leonel Bertolini,
anunciou a recuperação da Feira do Produtor, em 60 dias, com recurso de R$ 227,
7 mil.
Já na zona urbana de Porto Velho, as famílias
atingidas pela cheia de 2014 ainda aguardam os benefícios do Programa Minha
Casa, Minha Vida. A distribuição das casas esbarra na falta de documentação dos
moradores. Das cerca de mil pessoas cadastradas para receber uma casa do
Condomínio Orgulho do Madeira, aproximadamente 200 ainda não apresentaram
documentos pessoais exigidos pela Caixa Econômica Federal.
“Alguns delas não têm nem a Certidão de
Nascimento”, afirmou coordenador de Defesa Civil municipal, Marcelo Santos. Por
isso, muitas famílias atingidas pela cheia histórica retornaram às moradias que
foram inundadas pelas águas do rio Madeira.
Em Nazaré o casal sobrevive com renda do governo.
Foto: Marcela Bonfim/AmReal.
O relatório da Defesa Civil sobre os danos sociais
e econômicos decorrentes da enchente histórica aponta que os prejuízos de sete
municípios afetados: Porto Velho, Cacoal, Pimenta Bueno, Rolim de Moura, na
área de influência da BR-364, Guajará-Mirim, Nova Mamoré e Costa Marques, na
região de fronteira com a Bolívia, somam R$ 2, 8 bilhões (bens privados) e R$
620,5 milhões (bens públicos).
A população atingida pelas inundações foi de
153.692 pessoas, em 2014. Destas, 47. 992 ficaram desabrigados e 14.917
desalojados. Em 2015, foram afetadas 8.055 pessoas pela enchente no Estado.
Segundo informações do governo de Rondônia à
agência Amazônia Real, foram destinados R$ 22 milhões (incluindo R$ 15, 4
milhões da Defesa Civil Nacional) para o atendimento das famílias afetadas.
* Esta reportagem especial faz parte do projeto
“Amazônia Real – promovendo a democratização e liberdade de expressão na região
amazônica” que recebe financiamento da Fundação Ford, por meio do programa
“Promovendo Direitos e Acesso à Mídia”.
Fonte: Amazônia Real
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