‘Primitivos’
nos dizem o que devemos fazer.
Palavras do cientista Adalberto Val: “Os
conhecimentos tradicionais encerram vasto conjunto que a ciência demoraria
muito tempo para apropriar-se. E precisa ter essa intenção”.Foto: Andrew Newey.
Por Washington Novaes*
No momento em que voltaram à tona discussões no
Congresso sobre o Marco Legal da Biodiversidade – com restrições feitas pelos
que o viram como prejudicial às comunidades tradicionais e indígenas, que
deixariam de receber pagamento de empresas e instituições que utilizem seus
conhecimentos tradicionais –, estudo das Universidades Stanford, Princeton e
California (Yahoo, 25/6) indica que está ocorrendo a sexta extinção em massa de
espécies da biodiversidade – considerada a maior riqueza do planeta. A taxa de
extinção é cem vezes maior do que em qualquer outro período. E seria alimentada
pelo desmatamento, por mudanças climáticas e pela poluição. Só na área dos
animais, por exemplo, a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN)
diz que 41% das espécies de anfíbios e 21% das de mamíferos já estão ameaçadas
pela extinção.
Não por acaso, estão vindo a público, nesta hora,
livros importantes para a tomada de consciência da sociedade a respeito do
problema. A Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsés, por exemplo, documenta
em 500 páginas, compiladas durante anos por cinco xamãs nascidos no Brasil e no
Peru, a rica biodiversidade de suas áreas e as valiosas possibilidades na
medicina tradicional. O texto detalha como cada espécie na área oferece
recursos para enfrentar a variedade de doenças. Mas só em língua nativa, “para
garantir que o conhecimento medicinal” não seja roubado “por empresas ou
pesquisadores”, como já aconteceu. E não haverá uma tradução. A compilação foi
também uma das formas de atrair a atenção de jovens que resistiam a processos
tradicionais de formação de xamãs, que levam anos e exigem muitas abstinências
e sacrifícios. É um texto que ensina, ainda, como reconhecer cada doença por
seus sintomas, que plantas usar, como preparar o medicamento. E ainda tem uma
fotografia de cada uma.
Outra publicação importante na área, e que também
acaba de vir a público, é o Manual de Remédios Tradicionais Yanomami, segundo
volume da série Saberes da Floresta Yanomami, fruto da parceria entre a
Hutukara Associação Yanomami e o Instituto SocioAmbiental. Traz estudos de
pesquisadores yanomami sobre diversas áreas do conhecimento e pesquisas de
outras procedências. É um trabalho que reúne pesquisas do etnobotânico William
Milliken, do Royal Botanic Gardens Kew, e do antropólogo Bruce Albert, do
Institut de Recherche pour le Development (IRD), sobre plantas tradicionais
naquela cultura. A publicação foi postergada pela necessidade de encontrar
formatos jurídicos de proteção aos conhecimentos. Nos anos de 2012 e 2013 houve
oficinas a respeito.
A relação, no livro, de problemas que podem ser
tratados com espécies de biodiversidade é impressionante. E vale a pena
transcrever pelo menos alguns deles: doenças da pele, coceiras decorrentes de
feitiçarias e de contatos com aranhas caranguejeiras, bernes, sapinho; dores de
dentes; doenças e infecções nos olhos, no ouvido, na cabeça e lombar; dores no
corpo; ferroadas de arraia, picada de escorpião, de cobra e de tucandeiras;
bichos de pé; leishmaniose; queimaduras; doenças intestinais, diarreias nas
crianças; vermes; rinite; inflamação na garganta; gripe; dores no peito;
vômito; tonturas; falta de apetite; cólicas menstruais; hérnias inguinais.
E há um milenar conhecimento associado a cada
remédio. Como escreve no livro Justino Yanomami, nada ali é acaso: “Minha
própria mãe coletava esses remédios e me dizia ‘vou escolher com cuidado, não
vou dar depressa outra coisa que não é, vou procurar devagar e achar!’ (…) E,
finalmente, achava. Então ela dizia: ‘Estas coisas aqui são riori wekixi!’. É
assim que antigamente a gente mostrava de verdade os remédios! Não mostrava uns
que eram parecidos, mostrava os que eram de verdade. Esses riori wekixi são
difíceis de reconhecer. Só alguém que os conhece, procurando muito, revirando
folhas, consegue achar e trazê-los”. É exatamente o que o livro faz.
Com tanto conhecimento compilado, é preciso saber o
que vamos fazer com os lugares onde está grande parte da biodiversidade – e que
se perde aos saltos. Na Amazônia Legal, desmatamos 248 mil quilômetros
quadrados entre 1997 e 2013, segundo o IBGE (20/6). Pelo menos 15% da Amazônia
Legal já foram desmatados. A Mata Atlântica já perdeu 85,5% da área florestal;
os pampas, 54,2%; o Cerrado, 49,1%; a caatinga, 46,6%; e o Pantanal, 15,4%.
E que vamos fazer, se em muitos lugares indígenas
continuam a ser assassinados (138 no ano passado), a se suicidar (48) e a ser
perseguidos por quem quer suas terras, sem se importar se com eles se perde um
conhecimento inestimável sobre a biodiversidade nativa? Na recente visita do
papa Francisco à América Latina, os índios lhe pediram ajuda. Como diz Claude
Lévy Strauss em seu livro Saudades do Brasil (1994), “os que folhearem este
livro deverão precaver-se contra outra ilusão: acreditar que estes índios
completamente nus (…) ofereçam a imagem de uma humanidade primitiva (…) Os
povos do Brasil Central e de outras partes são os resíduos enfurnados de
civilizações mais altas e mais numerosas”.
Também vale a pena lembrar palavras do cientista
Adalberto Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa/MCTI): “Os conhecimentos tradicionais encerram vasto conjunto que a
ciência demoraria muito tempo para apropriar-se. E precisa ter essa intenção”.
Mas como fazer, se em boa parte do território
nacional continuamos a despejar agrotóxicos em números inacreditáveis, que
dizimam a biodiversidade? São 6,9 kg por hectare/ano – eram 2,7 kg em 2002. Diz
o IBGE que os mais usados são perigosos (64,1%) ou muito perigosos (27,7%).
O tema é muito forte: diz a Convenção da Biodiversidade,
da ONU, que as perdas nessa área chegam a US$ 1,4 trilhão (equivalentes a 5% da
economia mundial) por ano. O que não seria possível fazer, sem essas perdas, só
na área de saúde, por exemplo?
* Washington Novaes é jornalista.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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