O medo de
quem não brinca.
Nada é mais incompatível com a violência do que
crianças brincando livres, criando, descobrindo, rindo, incluindo,
compartilhando e tendo a oportunidade de reconhecer os recursos de que dispõem
para participar prazerosamente do jogo da vida. Foto: Shutterstock.
Por Maria Helena Masquetti –
“Qualquer criança me desperta dois sentimentos:
ternura pelo que ela é e respeito pelo que ela poderá vir a ser”. Difícil
pensar nesta frase tão comprometida e humana atribuída a Luiz de Pasteur, sem
visualizar a imagem de uma criança entretida com algum brinquedo ou com a
exploração curiosa dos objetos ao seu alcance. Porém, é surpreendente a
relutância que ainda persiste, tanto cultural como política, em se proporcionar
às crianças seu direito pleno ao brincar.
Aproveitando-se dessa cegueira conveniente, o
marketing da adultização precoce reduz o brincar a uma perda de tempo,
fidelizando as crianças às telas e convencendo-as a trocar a experiência real
pela artificial, a alegria de incluir e compartilhar pelo isolamento do
entretenimento virtual. Entre as muitas conseqüências dessa inversão de
valores, a própria percepção das crianças vem sendo comprometida. Uma recente pesquisa* evidenciou bem esse risco, apurando que,
entre as crianças e adolescentes da cidade de São Paulo, aqueles que realizam
tarefas ou brincadeiras individuais, tais como assistir TV, ficar no computador
ou mesmo ajudar em casa, percebem a cidade “apenas como um lugar onde morar”
enquanto os que se socializam, jogando bola, empinando pipa, entre outros
brinquedos, veem a cidade com melhores olhos, sentindo-se parte da comunidade.
A violência em geral e o tráfico de drogas foram os
temores mais apontados pelos mesmos jovens que, finalmente, tiveram voz nesta
pesquisa. Embora muito precise ser feito para tornar a cidade um lugar ideal
para formar bons cidadãos, uma das causas da violência está embaixo do nosso
nariz, na conjugação entre uma cidade que além de não oferecer condições
seguras para as crianças brincarem, permite que a publicidade ocupe o lugar do
brincar, seduzindo-as para comprar.
Nada é mais incompatível com a violência do que
crianças brincando livres, criando, descobrindo, rindo, incluindo,
compartilhando e tendo a oportunidade de reconhecer os recursos de que dispõem
para participar prazerosamente do jogo da vida. Quantos anos mais de estudos e
descobertas necessitamos para admitir que o direito ao brincar deveria vir
muito antes de qualquer discussão sobre a partir de que idade aprisionar os
jovens?
Numa analogia talvez oportuna com a citação que
encabeça este texto, um dos inventos mais revolucionários de Pasteur foi a
vacina contra a raiva, uma doença física capaz de transformar numa fera temível
mesmo o animal mais dócil. No caso da violência que tanto nos assombra, o vírus
que a desencadeia costuma estar encubado nos lugares onde a proteção não chega
e a esperança não encontra motivos para ficar. A vacina há muito foi
descoberta, e um de seus princípios literalmente ativos é o brincar, muito
embora, para sua aplicação em massa, ela dependa de alguns componentes ainda
raros: solidariedade, participação social e vontade política. Mas se os corações
verdadeiramente se unirem para garantir a prioridade absoluta da infância, a
ganância irá morrer de raiva e o problema da violência se resolverá também
brincando.
* Pesquisa IRBEM Criança e Adolescente, realizada pela Rede Nossa São
Paulo, com parceria do Ibope Inteligência e apoio do Instituto Alana e do
Instituto C&A.
** Maria Helena Masquetti é
graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em
Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993.
Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do
Instituto Alana.
Fonte: ENVOLVERDE
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