Infância mercantilizada.
Por Lais Fontenelle Pereira –
Quebra de privacidade em escola famosa e
avanço da propaganda infantil na rede alertam: obcecados pela conectividade,
estaremos cegos ao vazio que ela pode causar?
“Internet, pais infantis e banalidades”. Esse é o
título do artigo em que falei sobre minhas inquietações a respeito da relação
que adultos e crianças têm mantido com as redes sociais e, principalmente,
sobre os tênues limites entre o público e o privado. Passados pouco mais de
seis meses, minha inquietação só aumentou. Ao ler sobre o caso do vazamento de
anotações dos professores sobre alunos no Colégio Bandeirantes, notei como é urgente
o debate sobre o tema – com o qual nenhum de nós, a começar pela família e a
escola, está preparado para lidar.
Quais são os limites reais entre o que é público
e o que é privado? Como transmitir esses limites e educar numa ambiência
comunicacional e de consumo?
No final do ano passado, fui assistir ao filme do
diretor canadense Jason Reitman, Homens, Mulheres e Filhos – baseado no livro
homônimo de Chad Kultgen. Nele, o diretor fala sobre como estamos rearranjando
nossas relações a partir da onipresença nas redes sociais. O vazio sentido por
um casal; a sede de amor de uma garota anoréxica; o adolescente que vive num
mundo de pornografia virtual, mas não consegue relacionar-se na vida real; mães
que expõem ou superprotegem seus filhos nas redes – essas são algumas das
situações que levam o espectador a repensar o uso das redes sociais, as
relações humanas e o sentido de nossas vidas na era digital.
O filme traz um belo e triste selfie da sociedade
contemporânea em que todos – adultos e crianças, homens e mulheres – são
atravessados pela relação com as mídias e o consumo, demonstrando como podemos
ser ao mesmo tempo tão obcecados com a conectividade e tão cegos quanto ao
distanciamento que ela pode nos causar. O longa lembra Crash – No limite, não
só pelo nó que dá na garganta, mas por trazer um roteiro em que os personagens
se cruzam, aprimorado pelo recurso gráfico que leva à tela caixas de diálogos,
barras de busca e até pop up´s – o que confere não só dinamismo quanto verdade
à produção.
O drama incomoda e faz pensar, ao espetacularizar
num pout-pourri as mudanças causadas pela tecnologia: de websites em que todas
as perguntas erradas podem ser respondidas à facilitação da procura de afeto
por desconhecidos, desvios gerados pelo excesso de pornografia e desperdício de
tempo curtindo uma vida que não é a sua. Incluindo questões centrais como
privacidade e qual a responsabilidade dos adultos na relação que as crianças
têm estabelecido com a internet e redes sociais. Olhando para esta grande rede
em que o mundo se transformou, as ideias de sociedade e interação social ganham
um novo significado.
Youtubers mirins
Nesses tempos de consumo e conectividade temos
também assistido, impunemente, a um crescente movimento de espetacularização de
crianças nas redes sociais. Conhecidas e reconhecidas pelo mercado, as
Youtubers mirins são pequenas celebridades que detêm canais no Youtube e perfis
em diferentes redes sociais, comumente Instagram – e chegam a mais de 240 mil
assinantes ou seguidores e impressionantes 91.974.702 visualizações de seus
vídeos.
O conteúdo produzido, exposto e compartilhado por
essas crianças vai desde merchandising e demonstração de produtos até criações
originais como funk ostentação, receitas e dicas de culinária ou aulas de
fitness produzidas pela mais nova blogueira de 9 anos – como apontado em uma
entrevista da pedagoga Ana Lucia Villela no O Estado de São Paulo. Não temos
como saber o que veio primeiro nessa história. Talvez os canais de celebridades
mirins tenham surgido de maneira espontânea e, ao criar um público e uma rede
de produtores de conteúdo, foram sendo procurados pelo mercado – que hoje
enxerga as crianças como promotoras de vendas. Ou talvez os próprios pais
tenham criado esses canais, como fazia no filme citado uma das mães, obsessivamente,
para expor seus filhos.
A questão fundamental é: se tanto o Youtube
quanto o Instagram não permitem o uso de suas redes por menores de 13 anos,
como podem existir esses canais? Ou algumas famílias usam subterfúgios ou as
próprias crianças omitem ou revelam mentiras sobre a sua idade. Dados da
pesquisa Kids Online, de 2012, sugerem que esta prática é bastante comum:
apenas 27% dos entrevistados de 9 a 16 anos declaravam informar corretamente a
idade nas redes sociais. A maioria (57%) afirmou optar por idade falsa.
Além disso, observamos o crescimento de um modelo
transmídia de publicidade direcionada a crianças que têm a internet como
centro, o que traz à tona a necessidade de pensarmos em mecanismos eficazes
para garantir proteção aos direitos das crianças contra abusos do mercado
cometidos por marcas infantis em sites e redes sociais, ou ainda no caso dos
Youtubers Mirins. O problema da relação das crianças com as redes não está mais
restrito a questões ligadas à sexualidade ou à postagem de conteúdos privados
ou impróprios, mas envolve hoje, também, abusos cometidos pela publicidade
dirigida às crianças na internet.
Uma pesquisa recente da comScore, divulgada em
janeiro de 2014, aponta que o número de crianças e adolescentes nas redes
sociais brasileiras aumentou 118% entre 2012 e 2013, de 4,3 milhões para 9,4
milhões de usuários com mais de 18 horas mensais conectados. A pesquisa apontou
também que, entre os jovens usuários de internet, 70% possuem perfil em alguma
rede social. Mas, será que estão preparados para os conteúdos que irão ler,
curtir, postar e compartilhar?
Surgem na internet cada vez mais portais voltados
ao público infantil lançados por empresas que aproveitam o interesse das
crianças por conhecimento, entretenimento e tecnologia para anunciar seus
serviços/produtos por meio de conteúdo supostamente educacional e de
entretenimento. Dessa forma, produtos alimentícios e brinquedos, por exemplo,
são apresentados em meio a jogos, atividades e vídeos na forma de “advergames”,
que disfarçam seu propósito mercadológico e marcam na memória das crianças a
imagem da marca associada a conteúdos positivos.
Para exemplificar a importância da internet no
cotidiano das crianças brasileiras, vale trazer ao debate dados da pesquisa
Kids Online Brasil 2013, que incluiu pela primeira vez questões sobre
publicidade e consumo. A pesquisa apontou que, entre as crianças e adolescentes
usuários da internet, 77% possuíam perfil no Facebook; e, desse montante, 61%
afirmavam já ter visto publicidade. Há também um indicador sobre a interação
desses usuários com a publicidade: 57% diziam já ter curtido uma publicidade na
rede social que mais usa, 36% diziam ter compartilhado, 21% descurtido e 20%
declaravam ter bloqueado um anúncio.
Não temos, portanto, como deixar de debater a
comunicação mercadológica direcionada à criança, sua relação com a internet e a
finalidade social da rede – isso além de todos os impactos psicossociais que o
uso inadequado das redes pode causar. Não quero aqui demonizar a tecnologia e o
uso das redes sociais, até porque os inúmeros avanços tecnológicos alcançados
por nós, humanos, trouxeram muitos benefícios, como a agilidade na troca de
informações, a possibilidade de conexão com o mundo e muito mais. Mas isso não
quer dizer que não devamos repensar a forma como temos nos relacionado com
esses aparatos e espaços virtuais e a forma como o mercado tem se apropriado
deles para falar diretamente com os pequenos.
Outra questão de suma importância nesse debate é
a privacidade da rede e quais os limites entre público e privado — como
apontado pelo fato recentemente ocorrido no Colégio Bandeirantes em São Paulo.
Ao entrar numa área de acesso “privado ou restrito” dos professores no site do
colégio, as crianças encontraram anotações sobre sua personalidade,
comportamento, conflitos familiares e outros apontamentos, alguns francamente
antiéticos e desnecessários ao conhecimento de qualquer um — a começar pelos
alunos. Como bons adolescentes experimentando a transgressão, os alunos
compartilharam imediatamente seus achados, e ainda criaram um tutorial para
quem mais quisesse acessar os dados.
A informação então vazou e em poucos minutos fez
o estrago necessário: a máscara dos professores caiu e aproximou de alguma
forma essas gerações, mostrando que em tempos de internet e redes sociais pouca
coisa passa ilesa: bastam alguns cliques. Mas o fato é que ninguém se mostrou
preparado para lidar com o ocorrido – comunidade escolar, família ou alunos.
Somente o diálogo com eles, nativos digitais, mas ainda imaturos para lidar com
questões de privacidade, poderia transformar o ocorrido em oportunidade para
levantar questões de extrema importância hoje.
Cabe então a nós, pais, mães e acima de tudo
cidadãos repensar a relação que temos e permitimos que nossas crianças
estabeleçam com a internet, o consumo e as redes sociais. Depois de um ano da
promulgação da Resolução 163 do Conanda (que trata da regulação da publicidade
dirigida às crianças) e do Marco Civil da Internet, devemos continuar a fazer
nosso papel de fiscalizar os abusos cometidos na rede e fora dela. Podemos
assim manter a noção constitucional da sociedade civil como agente promotora de
políticas públicas, por meio não somente de mecanismos de consulta e de
conselhos de direitos, mas de fiscalização e de denúncias.
Acima de tudo, porém, desejo que possamos
estabelecer mais relações reais, de modo a poder educar as crianças para o
exercício da cidadania em espaços virtuais, onde o convívio social é difuso.
Que possamos entender melhor as dimensões de liberdade e segurança na internet,
para que seu uso se dê de forma ética e cuidadosa por adultos, professores,
pais, crianças e mercado. É preciso repensar o sentido da vida que vivemos para
ser possível vislumbrar tempos melhores, em que professores escrevam coisas
mais poéticas e éticas sobre seus alunos, mãe e pais não permitam ou almejem
que seus filhos se tornem celebridades e o mercado respeite os direitos das
crianças.
* Lais Fontenelle Pereira,
mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e autora de livros infantis, é
especialista no tema Criança, Consumo e Mídia. Ativista pelos direitos da
criança frente às relações de consumo, é consultora do Instituto Alana, onde
coordenou durante 6 anos as áreas de Educação e Pesquisa do Projeto Criança e
Consumo.
Fonte: Outras
Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário