Especialista em gestão da água
ressalta que adoção de medidas e uso racional podem reverter o estresse hídrico.
No Brasil, ainda hoje tem-se uma cultura de uso
não racional de água, estimulada pela percepção de que se trata de um recurso
abundante que “nunca vai faltar”, disse a diretora da Faculdade de Engenharia
Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, professora Marina Ilha. Ela é
especialista em questões de gestão da água em edificações e lotes urbanos e tem
orientado pesquisas sobre o tema. “Temos desenvolvido pesquisas nessa área no
Brasil, de modo mais incisivo a partir do final da década de 80, e no início
eram poucos os que se preocupavam com o uso eficiente da água, as pesquisas
estavam mais voltadas para as questões relacionadas com a oferta de água”,
declarou ela, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “O enfrentamento da crise
hídrica precisa contar com a gestão conjunta da oferta e da demanda de água”.
“As edificações necessitam de abastecimento de
água potável, o uso da água gera esgoto sanitário, a impermeabilização das
superfícies diminui a infiltração de água no solo e a redução da cobertura
vegetal resulta na diminuição da evapotranspiração, ou seja, tem-se um ciclo da
água nas cidades totalmente insustentável”, explicou. “E aí as consequências
são essas que temos vivenciado: de um lado, maior ocorrência de enchentes e, de
outro, crises de abastecimento causadas tanto pelas modificações climáticas
como pelo uso não eficiente da água, entre outras questões”.
A pesquisadora afirma que existem várias medidas
que podem ser implementadas para que se tenha um ciclo da água sustentável nas
cidades. Associadas à gestão dos recursos hídricos, essas medidas podem
contribuir para reverter o estresse hídrico em que se encontram algumas regiões
do país.
Como consequências imediatas do uso racional da
água tem-se a diminuição do volume de esgoto gerado, dos insumos necessários para
o tratamento de água e de esgoto, da energia necessária caso a água venha a ser
bombeada, entre outros benefícios, disse Marina.
RACIONAL, NÃO RACIONADO
A pesquisadora ressalta que o uso racional ou
eficiente da água não é o mesmo que racionamento. “O conceito que
trabalhamos é: reduzir o consumo de água, sem prejuízo do desempenho”, disse.
“É reduzir o desperdício e as perdas”.
Em alguns casos, disse ela, o consumidor final
nem percebe que menos água está sendo utilizada. “Medidas tais como o controle
das pressões no sistema predial de água, o emprego de tecnologias
economizadoras e procedimentos voltados para o uso eficiente implicam em
grandes economias de água”.
Ela cita, como exemplo, a pressão da água nas
torneiras de lavatórios. “Quando você vai lavar as mãos, você quer lavar as
mãos, não a roupa”, disse. “Muitas vezes, a pressão é tão elevada que
pouquíssima água, daquela que saiu da torneira, está sendo utilizada para
efetivamente lavar as mãos, muito daquele volume está sendo desperdiçado. Além
de um projeto bem feito, há tecnologias economizadoras que podem ser previstas
nesses locais”.
A pesquisadora lembra que é preciso pensar no uso
eficiente da água não somente no projeto de novas edificações, mas também na
redução do consumo nas edificações existentes. “A instalação de tecnologias
economizadoras nos pontos de consumo, tais como torneiras economizadoras,
arejadores, reguladores e restritores de vazão podem ser instalados de forma
fácil e rápida”, disse ela. “Mesmo a troca de bacias sanitárias
convencionais, que podem utilizar até 12 litros por descarga, por modelos
economizadores que empregam 7 litros por descarga ou até metade desse valor,
quando há componentes de duplo acionamento, não exige grandes obras e resulta
em reduções significativas do volume consumido, e, o que é mais importante, não
altera o desempenho para o usuário”.
Há algumas situações, contudo, em que o fator
humano é determinante e a adoção de procedimentos voltados para o uso eficiente
da água é mais efetiva, adverte. “Tem sentido lavar pisos do jeito que muitos
lavam aqui, no Brasil? Com mangueira? Levar uma folha desde um local a outro
com água, o que poderia ser facilmente feito com uma vassoura? Não tem
sentido”, exemplifica. “Sempre tivemos essa ideia de que uma limpeza bem feita
requer muita água, e isso precisa ser modificado”.
Alterar comportamentos, no entanto, pode se
mostrar complexo. “Mudar procedimentos é mais difícil, porque as pessoas,
muitas vezes, são sensíveis aos problemas ambientais, estão preocupadas com a
devastação das florestas, com a poluição ambiental, com a extinção dos animais,
mas isso nem sempre se traduz na mudança de hábitos simples do dia-a-dia, tais
como fechar a torneira enquanto se ensaboa a louça ou se escova os dentes,
diminuir o tempo de banho, etc.”
Ao longo dos últimos anos a FEC realizou várias
pesquisas voltadas para o uso eficiente da água nos edifícios, resultando em
dissertações de mestrado, teses de doutorado e iniciações científicas, além de
trabalhos de final de curso dentro da Engenharia Civil. “Os resultados foram
sempre muito positivos, com a identificação de estratégias que podem resultar
em grandes reduções no consumo de água”, disse Marina.
Ela lembra que dissertações e teses estudaram o
uso da água no campus Zeferino Vaz da Unicamp. “Por meio da detecção e conserto
de vazamentos e instalação parcial de tecnologias economizadoras, obteve-se uma
redução de 25% do consumo, ainda na década passada. Medidas propostas naquela
época passaram a ser incorporadas nas novas edificações, o que fez com que o
consumo do campus se mantivesse nos mesmos patamares, mesmo com o aumento de
cursos e instalações ao longo dos anos”.
“Também na década passada desenvolvemos uma ampla
pesquisa em 93 escolas municipais de Campinas”, lembrou. “Entre os resultados
obtidos, propusemos um índice de percepção dos usuários para o uso racional da
água nesse tipo de edificação, permitindo identificar as atividades em que há
mais desperdício”.
REÚSO E ÁGUA DA CHUVA
A pesquisadora adverte para soluções que, improvisadas
diante da crise hídrica atual, podem acabar acarretando problemas de saúde
pública se não forem bem administradas, como o aproveitamento doméstico de água
da chuva ou o reúso de água sem o tratamento correto e a gestão da qualidade da
água não potável. “No momento em que fontes alternativas de água são alocadas
nas edificações, de quem é a responsabilidade pela qualidade dessa água? Mesmo
que não seja para beber, o contato com a água com contaminantes pode causar
alergias e outras doenças”, disse Marina. “Problemas advindos de uma má gestão
podem ‘condenar à morte’ soluções importantes que, no futuro, podem ser
indispensáveis”.
A pesquisadora
lembra que a água pluvial pode se contaminar durante a passagem por telhas e
calhas, além de entrar em contato com a poluição ambiental. “As edificações não
dispõem de técnicos que realizem o monitoramento da qualidade da água, e é
importante alertar a população dos riscos”.
Já as chamadas “águas cinzas” são as provenientes
de lavatórios, chuveiros, banheiras, máquinas de lavar roupas. “Implantar
sistemas de reúso de águas cinzas em edificações existentes requer modificar
todo o sistema de esgoto, de modo a separar as chamadas ‘águas negras’, das
bacias sanitárias, que no sistema convencional são coletadas em conjunto com as
águas cinzas”, explicou a pesquisadora. “Ou seja, pode ser inviável
economicamente”.
Marina afirma que em edificações comerciais e
industriais, onde há equipes de gestão para fazer o monitoramento da qualidade
da água não potável, o aproveitamento de água de chuva pode e deve ser feito.
“Recentemente, orientei uma tese de doutorado
sobre o uso de um coagulante natural para tratamento da água residuária de
usinas de concreto para fins de reúso na própria usina”, relatou ela.
“Verificamos que mais da metade do consumo de água potável poderia ser substituído
por água de reúso, após passagem por um sistema de tratamento. Essa tese
recebeu, no final de 2014, o 1º lugar no prêmio de inovação e sustentabilidade
da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), na categoria de
pesquisa”.
Ela relata que existem outros “tipos de águas”
que também podem ser aproveitados, como as chamadas “águas claras”, efluentes
gerados em sistemas de resfriamento, sistemas de vapor e condensado, de
destilação, entre outros. “Pesquisas que desenvolvemos no Hospital de Clínicas
(HC) da Unicamp indicam que grandes volumes de água poderiam ser reutilizados
para fins não potáveis no campus como um todo, onde existem vários equipamentos
e sistemas similares aos que estudamos”.
Mas a implantação em edificações existentes nem
sempre é simples. “Há necessidade de um sistema separado de abastecimento de
água potável, incluindo reservatórios, bombas, além dos tubos e conexões, além
do sistema de tratamento, cuja instalação demanda espaços muitas vezes
inexistentes na edificação”.
REGRAS DIFERENCIADAS
Marina acredita que a legislação sobre
edificações deveria prever exigências diferenciadas sobre o uso eficiente da
água, dependendo do tipo de edificação e da situação de estresse hídrico local.
“O estabelecimento de regras generalizadas pode levar ao descumprimento das
mesmas”, adverte. “O consumo de água nas indústrias tem uma grande margem de
redução, tanto pelo emprego de tecnologias economizadoras como de sistemas de
água não potável”.
A pesquisadora defende também o aumento do reúso
de água urbano, em que o efluente da estação de tratamento de esgoto apresenta
qualidade, na maioria das vezes, maior do que a da água do rio em que será
lançado. “As cidades brasileiras não foram projetadas com rede de abastecimento
de água não potável e depende-se do uso de caminhões-pipa para a distribuição,
o que contribui para uma participação ainda tímida dessa fonte. Há necessidade
de melhorar esta logística de distribuição, tendo em vista que a implantação de
rede dupla de abastecimento urbano apresenta impedimentos que a tornam inviável
economicamente. Alem disso, há necessidade de adaptação da rede predial, já que
a água não potável não pode ser misturada à potável”.
INCENTIVO
Marina defende o uso de incentivos para a adoção
de medidas economizadoras de água. “Obviamente que a tarifa também é uma forma
de induzir ao uso eficiente, mas há que se levar em conta que a água é um bem
essencial, sendo necessário manter tarifas sociais”, lembrou.
A pesquisadora enumera algumas possibilidades,
como a redução de impostos condicionada ao emprego de medidas de uso racional;
e programas, em larga escala, de substituição de componentes convencionais por
economizadores, com subsídios para a compra e instalação. “Esses são exemplos
de incentivos que podem ser muito mais efetivos do que simplesmente estabelecer
porcentagens de redução de consumo padronizadas, que tem sido a sistemática
adotada no país”, disse.
“As concessionárias de água e esgoto também
precisam incentivar para o uso eficiente de água nos edifícios, uma vez que
isso pode possibilitar a oferta de água para mais pessoas com a mesma
infraestrutura instalada e garantir o abastecimento em situações de crise”,
declarou.
Texto:
Carlos Orsi
Fotos: Antônio Scarpinetti
Edição de Imagens: Fábio Reis
Fotos: Antônio Scarpinetti
Edição de Imagens: Fábio Reis
Fonte: Jornal
da Unicamp Nº 623
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