Maioridade penal: o que aprender com o Uruguai.
Por Inês Castilho –
Cinquenta mil uruguaios vãos às ruas contra
redução da maioridade em 18/10/14, às vésperas do plebiscito. Apoio ao
encarceramento caiu de 75% para 47%, após campanha,
Uma articuladora da luta contra a redução revela
como criatividade, informação refinada e celebração da alegria espantaram medo
e preconceito difundidos pela mídia.
Veronica Silveira é uruguaia, mas fala portunhol.
De verdade: portunhol é seu idioma cotidiano. Ela explica que nasceu em Rivera,
cidade do norte do Uruguai vizinha de Santana do Livramento, no extremo sul do
Rio Grande do Sul. “É só atravessar uma rua e já é Brasil. E a música que se
escuta, a tele, é tudo brasileiro. A língua cotidiana é o portunhol, só se fala
espanhol em conversas formais.”
Pergunto sobre a personalidade do povo de
fronteira – um extremo, território de passagem. Ela conta que Rivera vive mais
a política brasileira que a de Montevidéu, e que se caracteriza pelo
conservadorismo. “Rivera bota freio nos avanços do país.” Só mesmo a tradição
familiar de militância política para explicar que ela tenha estado no centro do
movimento político “No a La Baja” (“Não à Redução”), que deteve a redução da
maioridade penal no seu país.
Veronica esteve no Brasil, de 27 a 29 de abril,
participando de encontros e debates a convite da Fundação Rosa Luxemburgo.
Transbordando entusiasmo, conta como defensores dos direitos humanos e uma
grande diversidade de organizações venceram o plebiscito que, em 26 de outubro
de 2014, junto às eleições presidenciais, perguntou à população se queria
encarcerar, como os adultos, jovens desde os 16 anos.
Com 27 anos, formada em Serviço Social na
Universidad de La Republica – “excelente universidade pública e gratuita” –,
Veronica vive há 10 anos em Montevidéu, onde se ligou à Casa Bertolt Brecht –
centro de produção de cultura política critica, como a campanha que deteve a
privatização da água – que abrigou a Comissão No a La Baja.
Cerca de 75% da população eram a favor da
redução, no Uruguai – aqui são 87%. Como conseguiram reverter esse quadro?
Em 2011, Pedro Bordaberry, político do Partido
Colorado e filho do homem que inaugurou a última ditadura no Uruguai, toma o
tema da menoridade perigosa para fazer campanha política e propõe a coleta de
assinaturas para um plebiscito. O tema não era novo, há registros sobre “jovens
que não querem nada com a vida, vândalos” desde 1934. Mas, desde a última
década havia aumentado o número de citações sobre delinquência de adolescentes.
Embora não sejam significativos, a mídia tratou de ampliá-los.
O Uruguai tem uma população envelhecida – as
mulheres geram cada vez menos filhos, e engravidam cada vez mais tarde. Assim,
temos uma faixa de juventude reduzida, o que torna difícil participar
politicamente e ter voz. A juventude participa e age, mas politicamente
seguimos tendo pouco espaço. Desde 1994, com a privatização que varreu o
continente e o endurecimento das leis, a população carcerária adulta
superaumentou, vivendo em condições infraumanas. Em 2002 houve uma grande crise
do país, e mais da metade das crianças nasciam em condições abaixo da linha de
pobreza. Aquelas crianças são os adolescentes de hoje. Eles são filhos dessa
crise, tinham então 2 ou 3 anos e nada o que comer.
Esses jovens em conflito com a lei são
meninos e meninas?
Sempre mais meninos, não porque as meninas
tivessem sido menos vitimadas pela crise, mas porque culturalmente são os
meninos que delinquem, e também porque há um olhar policial voltado para isso.
Provavelmente as meninas são hoje mães adolescentes dos meninos que estão
delinquindo para comer ou consumir os produtos exubidos no mercado.
Entre 2000 e 2010, a população menor que
delinquia aumentou 1%, apenas. De uma população adolescente total de aproximadamente
280 mil, cerca de mil garotos estavam em conflito com a lei, com medida
privativa de liberdade ou não. Mas sucedeu que o sistema penitenciário, cheio
de falhas, registrou muitas fugas nos centros de reclusão de menores –
aconteceram mil em 2011. Também nesse período aconteceram delitos de grande
violência cometidos por adolescentes, três assassinatos em dois meses. E a
mídia, claro, fez com que a situação parecesse ainda mais grave.
Quando, em 2011, Bordaberry propõe recolher
assinaturas para o plebiscito, havia na população um apoio de 75% ou 76% à
redução. Em 2012, apesar de vários coletivos de defesa de direitos humanos e da
juventude terem se reunido para dizer não, conseguiu-se o número de assinaturas
necessário. Quem era favorável à redução da maioridade penal tinha elementos
para defendê-la. Já quem era contrário não tinha argumentos que tocassem a
sensibilidade daquelas pessoas que enxergavam a realidade só pelas notícias de
televisão. Então se começou a campanha – não porque houvesse chance de ganhar,
mas porque precisávamos nos posicionar, dar respostas, e, se a população fosse
votar, que ao menos soubesse o que estava fazendo.
Como se formou a Comissão No a La Baja?
Em 2011 e 2012 nosso trabalho foi de construção
do grupo de coletivos. Não revertemos nenhum percentual, nem trabalhamos com
informação. Apenas nos debruçamos na construção da linha argumental,
intelectual, acadêmica, com o público já convertido, fazendo debates e
palestras para conseguir elementos capazes de convencer a população. E nesse
período éramos só intelectuais, o movimento estudantil e muitas pessoas
independentes.
Não foi imediatamente que os partidos, assim como
os sindicatos – a PIT–CNT, central que reúne todos os sindicatos e portanto
todos os trabalhadores, cerca 240 mil – assumiram a causa. Depois de 2011, já
com as assinaturas necessárias para o plebiscito, foi que se incorporaram
partidos políticos, e se pronunciaram muitas organizações, tais como as
igrejas, os escoteiros, o movimento Teto para meu país e outras. Todos esses
aportes fizeram com que a composição da Comissão ganhasse grande diversidade.
Nossa força foi termos nucleado todas essas
organizações e pessoas numa mesma campanha. A organização era única e todos os
participantes, individual e coletivamente, estávamos dentro da Comissão. Claro,
somos 3 milhões, isso aqui seria muito difícil. Mas de outra forma não teríamos
convencido ninguém.
Como foi a construção dos argumentos
usados para convencer a população?
Nesses dois anos de trabalho interno coletando informações,
conseguimos uma lista de argumentos muito longa – da área de direitos, da
neurociência, sociológicos, da área jurídica e do sistema penal adolescente.
Juntamos todos esses aportes e partimos para a batalha com uma frente única de
razões que poderiam ser usadas com acadêmicos, vizinhos, quem quer que fosse.
Contudo, esses dois anos de construção da linha
de argumentação, por si só, não teriam sido suficientes. Era necessário falar
sobre isso de tal forma que incluísse todo mundo. Como estratégia de
comunicação usamos não só palestras de todo tipo, mas shows na rua, marchas
cheias de alegria e cores, debates na vizinhança. A ideia era tirar a sensação
de medo, ir aos bairros que seriam os mais atingidos, mas onde a maioria se
posicionava a favor porque só se informava pela mídia. Usamos o Teatro
Legislativo, junto com o Teatro do Oprimido, ambos de Augusto Boal. Foi uma
grande experiência! Estivemos nas capitais e grandes cidades de 10 dos 19
departamentos [estados] do país, em atos nos quais a população participou não
só como espectadora. Uma pessoa do público era convidada a atuar, e todos
podiam fazer propostas sobre a questão da minoridade infratora – desde
recreação para jovens até mudanças no sistema penal adolescente. Essas
propostas depois eram lidas e o público respondia mostrando um cartão verde, de
apoio; vermelho, de rejeição; ou amarelo, de abstenção. Foi um exercício
maravilhoso de apropriação da política e de criação de soluções. Não atingiu
muita gente, porque nossos recursos eram limitados, mas foi muito importante.
Além de compilar as propostas – que serão entregues este ano no parlamento –, a
gente aproveitava as idas ao interior do país para criar novos núcleos da
frente No a La Baja. Depois se trabalhou mais para territorializar a luta.
Como foram recebidos?
O problema da delinquência de jovens existia
somente em Montevideu e em algumas grandes cidades. Mas o maior apoio estava no
interior, por causa da televisão. Era muito importante levar a luta a esses
lugares, com dados que mostrassem que a mídia não dizia a verdade. Que garotos
de 13 a 17 anos já são penalizados e submetidos à privação de liberdade em
centros de reclusão que não deixam nada a desejar aos presídios. E que os que
estão nesses institutos são sempre os mesmos.
Quando o movimento ganhou maciçamente a
população?
Entre 2012 e 2014 a Comissão compatibilizou as
propostas com manifestações, caminhadas pelas ruas, e conseguiu envolver uma
massa de gente. Muitos jovens, mas também população adulta. Nesses anos foram
feitos os Amanhecer contra a Redução, que começam a ser feitos também no
Brasil. Em 2014 a Marcha da Diversidade – que no Uruguai é uma grande festa –
apoiou o não à redução e ao retrocesso dos direitos. Uma canção foi criada
especialmente para a campanha.
Quem a financiou, e que papel tiveram as
redes sociais?
Foi uma campanha muito barata. Nos dois primeiros
anos, tivemos só o aporte do que cada um sabia fazer – um vídeo com
personalidades do mundo político e cultural dizendo não à redução e porque,
realizado pelo puro amor e puro saber de dois ou três companheiros. Foi tudo
feito muito através das redes sociais, todas as convocações, e o cartaz Si me
preguntan digo No a La Baja viralizou na rede. Músicos que estavam com a causa
doavam sua arte fazendo shows nas ruas.
No último ano e meio, aí sim, os partidos
políticos contrários à redução fizeram seu aporte, os sindicatos fizeram
grandes aportes, e organizações também. A Casa Bertolt Brecht recebeu
financiamento da Fundação Rosa Luxemburgo para organizar um debate com
especialistas internacionais – uma neurocientista, um advogado, um psicólogo –
nessa ideia de fazer confluir aportes de todas as áreas.
Nessa caminhada, a Comissão notou que havia muita
desinformação, por exemplo sobre o sofrimento dos garotos em conflito com a
lei. Então fizeram um vídeo que traz informações sobre a juventude e mostra que
eles não são perigosos, antes, são eles que estão em perigo.
Como você vê a luta contra a redução aqui
no Brasil?
Aqui se tem de fazer muita difusão de informação.
No debate que fizemos ontem (27.04), ouvi dados terríveis: sete garotos são
assassinados a cada duas horas no Brasil, e de cada dez, oito são pretos. Dona
Maria, Seu João têm de saber que sucedem muito mais coisas do que mostra a
Globo, como falta de oportunidade de ensino, trabalho, cultura etc.
Quando fui convidada a vir aqui, tive medo de
trazer um receituário. Mas há muita semelhança entre a situação aqui e a do
Uruguai, são usados os mesmos argumentos, vocês têm as mesmas dificuldades.
Julio Bango, deputado da Frente Ampla, Partido Socialista, compilou informações
e colocou-as num vídeo muito útil. Seria interessante que se fizesse algo assim
aqui.
Temos pouco tempo para articular a
campanha…
Nossa campanha foi vitoriosa no ano e meio de
mobilização de rua, e não em 4 anos. Revertemos a opinião pública quando todas
a pessoas que são referência falaram não à redução, pessoas de todas as idades
saíram às ruas, e as informações foram sendo divulgadas. Temos um
documento-base com todos os argumentos de porque não reduzir. Foi um grande
trabalho, importante por contar com todos os respaldos.
Quais os argumentos mais importantes?
Recolhemos experiência nos cárceres de
adolescentes. Para aqueles que sofreram violência e querem vingança, é preciso
dizer que os garotos são presos e passam muito mal. Argumentos na linha dos
direitos humanos não funcionam, porque acham que eles não devem ser defendidos.
Dizíamos: senhora, seu filho quantos anos tem? Considera que já é adulto? E
aqui a neurociência ajudou bastante.
E como foi o dia da vitória?
Voto ainda em Rivera, porque lá falta gente de
esquerda, então mantive meu voto lá. Nas eleições nacionais de 26 de outubro,
meus companheiros ligavam dizendo vamos perder, porque até o fim as pesquisas
davam esse resultado. Meus companheiros que estavam mas mesas eleitorais diziam
isso e chorávamos pelo telefone. Às 8 ou 9 horas da noite começaram a sair os
resultados e um dos maiores institutos de pesquisa, de direita, declarou: sai a
redução. A gente estava paralisada. Mas, uma hora depois, quando mostraram os
dados das mesas eleitorais, eles tinham 47% dos votos. A população disse No a
La Baja! E aí fomos para a rua, fizemos uma grande festa da vitória.
Depois disso, não tinha sentido manter a
Comissão, uma frente ampla onde se sentavam juntos gente de partidos de direita
– como os blancos que diziam No – e de esquerda. Então a Comissão se desfez, e
hoje apenas um ou outro coletivo continua trabalhando na temática da violência e
adolescentes.
Como a Casa Bertolt Brecht, que está fazendo uma
pesquisa sobre medidas não privativas de liberdade. Entrevistamos técnicos, e
eles nos dizem que trabalham com isso há 20 anos e nunca viram uma pesquisa
sobre o assunto. Segundo a lei, e me disseram que no Brasil é a mesma coisa, as
medidas de privação da liberdade são a última opção, tanto aqui como lá. Então
a gente não fala de medidas alternativas, pois elas na verdade são
prioritárias.
A pesquisa sai até o final do ano, e em agosto
pretendemos fazer um seminário regional do Cone Sul com experiências positivas.
Sabemos que em alguns cantões da Europa fala-se em aumentar a maioridade penal
até 20, 21 anos. Queremos dar visibilidade a essas experiências e às práticas
não privativas de liberdade.
* Inês Castilho
é jornalista.
Fonte: Outras
Palavras
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