O clima e o mosquito.
Foto: Divulgação/Sanofi Pasteur
Por Leonardo Pujol –
Como o aquecimento global influencia os casos de
dengue no Rio Grande do Sul.
Domingo, ao acordar, dona Darci não se sentiu bem.
Seu corpo estava mole como geleia. Os olhos, fundos. A temperatura corporal era
alta, quase a ponto de borbulhar. Tremia. Sentia dor em cada fio de cabelo.
Estava fraca até mesmo para comer. Jamais tinha sentido um mal-estar
semelhante. Debilitada, optou por um analgésico e se embrulhou na cama. Rogava
para que aquele domingo preguiçoso passasse logo – e que aquela dor estranha
fosse junto.
Na manhã seguinte, a empregada doméstica de 42 anos
percorreu, indisposta, as poucas quadras que separam a sua casa de um dos dois
postos de saúde do pequeno município de Caibaté, distantes 476 quilômetros a
noroeste de Porto Alegre. “A doutora disse que eu tinha pegado um gripão”,
exclama, recordando a consulta. Para sarar a médica lhe aplicou uma injeção,
não sem antes receitar “bastante repouso e paracetamol”.
Passados três dias, o corpo de Darci respondia de
forma ainda mais grosseira. Sua pele fervia. Manchas e erupções semelhantes ao
sarampo percorriam suas pernas e o torso. Decidiu consultar a médica mais uma
vez. Pesarosa, a profissional lhe deu uma má notícia: a injeção causara uma
reação alérgica em seu corpo. Para reverter o suposto contratempo, a solução
era ingerir “bastante líquido”. Isso ajudaria a eliminar o efeito da injeção.
As horas passavam e a dor continuou. Se ela não conhecesse o relógio, poderia
jurar que os ponteiros corriam mais morosamente que o habitual.
Já na quinta-feira, sem sinal de melhora, o marido
aconselhou a mulher que fosse a um clínico particular. Ele, por sua vez,
suspeitou de infecção alimentar. “Tive que tomar várias injeções e soro na
veia”, relembra Darci, em conversa por telefone. Na sexta e no sábado, além dos
sintomas que a torturavam há dias, sua pressão baixou. Ao completar uma semana
desde aquele domingo preguiçoso e cheio de dor, Darci Corrêa dos Santos Garcia
foi internada no Hospital Roque Gonzales, o único de Caibaté. Ninguém sabia explicar
o que acontecia com ela.
O sul se fez sertão
Os gaúchos que moram na região Noroeste lembram com
horror do verão de 2005. O período ficou marcado por uma das maiores secas da
história. A estiagem durou 45 dias entre janeiro e fevereiro, o suficiente para
deixar quase todo o Rio Grande do Sul de joelhos em termos hídricos. Lavouras
de milho, arroz e soja, por exemplo, foram devastadas – efeito que fez o PIB
amargar um tombo histórico de 2,8%. Rios, açudes e sangas transformaram-se em
terra rachada. A população mal conseguia satisfazer suas necessidades básicas,
como tomar banho ou lavar a louça. Mais de 80% dos 497 municípios decretaram
situação de emergência.
Com pouco mais de 7 mil habitantes, na época, a
pequena Caibaté foi uma das cidades arrasadas. Situada nas Missões – região
nacionalmente conhecida pelas edificações jesuítas –, o município precisou
implantar, às pressas, um programa que amenizasse o problema. Entre as soluções
estava a instalação de dezenas de caixas d’água para coletar e armazenar a
pouca água que caia com a chuva.
A medida ajudou em 2005, como também em 2012 –
outro ano de seca brava. No último verão, contudo, mesmo sem registrar uma
estiagem oficial, o desabastecimento passou a ser o vilão – similar ao que
aconteceu em diversas regiões brasileiras, principalmente em São Paulo.
Espelhados pela atitude tomada há uma década, um percentual expressivo dos
caibateenses – hoje menos de 5 mil, segundo o último censo do IBGE – comprou
mais caixas d’água como forma de prevenção.
Acontece que, nesse movimento, muitos moradores
negligenciaram o cuidado com os equipamentos. Mal vedadas, além de armazenar
água, algumas (leia-se várias) caixas serviram como criadouro de elementos
voadores de origem egípcia, menores que 1 centímetro e de coloração preta com
listras brancas no corpo e nas pernas. Sim, o desleixo deu vez ao Aedes
aegypti, o principal vetor da dengue no Brasil.
Surto nas Missões
Ruínas de São Miguel das Missões, um dos mais
importantes monumentos históricos brasileiros. Foto: Camila Domingues/Palácio
Piratini.
Quando baixou no hospital, os exames de Darci
acusaram uma pedra em sua vesícula. A disfunção logo foi tratada, mas a febre,
as náuseas e as dores ainda não tinham cessado. Para confundir ainda mais os
enfermeiros, outras pessoas com sintomas parecidos começaram a procurar a
unidade. Só então suspeitaram que fosse dengue.
Dona Darci fez dois hemogramas, que foram enviados
à capital para análise. No fim daquela semana, a confirmação: estava há quase
duas semanas com o vírus da dengue encubado. Era um dos primeiros casos na
cidade. Com tratamento correto, dessa vez, Darci se recuperou ao longo da
semana seguinte. Deu até entrevista para a televisão
contando o drama. Perguntada se imagina onde possivelmente fora infectada, não
soube responder. “Eu não faço a mínima ideia”, chancelou.
Hoje é difícil encontrar um morador de Caibaté que
não conheça alguém que tenha contraído dengue nos últimos meses. No
levantamento realizado entre 1º de janeiro e 28 de abril, o município era o
recordista gaúcho no número de casos confirmados: 229. Isso significa que a
cada 21 pessoas, uma foi infectada. A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS)
confirmou que a região sofre um surto da doença. Em todo o Rio Grande do Sul,
no mesmo período, foram 552 casos confirmados – 456 autóctones (contraídos no
Estado) e 96 importados.
Apesar do alarme, 2015 ainda não se compara com o primeiro
surto enfrentado pelos gaúchos em 2010. Conforme a SES-RS, naquele ano foram
notificados 3.489 casos de dengue. A maioria das ocorrências em Ijuí, que fica
a 86 quilômetros de Caibaté.
Acesse o infográfico com a dimensão da dengue no
Rio Grande do Sul aqui.
O efeito dengue
Há muito tempo o Brasil convive com a dengue. As
primeiras referências são do período colonial. O primeiro caso ocorreu no
Recife, em 1865. Sete anos depois, em Salvador, uma epidemia da doença matou 2
mil pessoas, segundo os registros hitóricos. Foi o médico e cientista Oswaldo
Cruz que implantou, em 1903, o programa pioneiro de combate ao mosquito
transmissor. A maior preocupação, além da dengue, eram as epidemias de febre
amarela – também causadas pelo mosquito.
Nos últimos anos, porém, os especialistas têm
olhado com assombro a mutação e a propagação do Aedes aegypti no país. Até
2007, os piores meses no combate à dengue eram tradicionalmente entre março e
maio, quando as altas temperaturas e a umidade atmosférica criavam situações
propícias para a proliferação do mosquito – que se reproduz em locais que
acumulam água como latas, copos plásticos, tampas, pneus velhos, jarros de
flores, garrafas, vasinhos de plantas, caixas d’água, tambores, latões,
cisternas, sacos plásticos e lixeiras. Desde então, cientistas, virologistas e
epidemiologistas tentam entender o porquê do aumento da doença em outros meses
considerados “mais tranquilos” pelos agentes de vigilância sanitária. A
resposta pode estar em uma recente pesquisa da United Nations University
(UNU), do Canadá.
Segundo o estudo, a urbanização e o aquecimento
global tem influenciado na incidência. Para obter a afirmação, os cientistas
realizaram o primeiro Mapa Global de Vulnerabilidade ao
Vírus da Dengue. O estudo foi montado em cima dos indicadores de
exposição, como as condições ambientais que sustentam as populações de
mosquitos, e da susceptibilidade, como fatores sociais que levam à infecção.
“Esses mapas são úteis aos tomadores de decisão para ajudar a evitar surpresas
quando dengue ocorre em uma área de forma inesperada”, explicou por e-mail
Sarah Dickin, uma das três autoras do estudo.
A pesquisa analisa quatro cenários diferentes, de
acordo com os meses de janeiro, abril, julho e outubro. No que se refere ao Rio
Grande do Sul, fica claro que algumas épocas do ano são mais propicias para a
exposição do mosquito – já que a região é dotada de condições climáticas
sazonais. Janeiro se mostra o mês de maior vulnerabilidade devido ao calor provocado
pelo verão (foto abaixo). O Noroeste, por ser a região mais quente do Estado, é
a área mais suscetível. Foi lá que a Secretaria de Saúde reconheceu um surto da
dengue neste ano.
Janeiro e outubro mostram chance maior de contrair
o mosquito. Imagem: Montagem/UNU
Mudança no tempo
O calor no planeta Terra foi abundante no início de
2015. A confirmação é dos relatórios da NASA, da Agência Meteorológica do Japão
(JMA, na sigla em inglês) e da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos Estados
Unidos (NOAA, na sigla em inglês). O NOAA, por exemplo, diz que a
temperatura média global no primeiro trimestre do ano ficou 0,82ºC acima da
média registrada ao longo de todo século 20 – a maior para o período desde o
início das medições, em 1880.
Com o planeta mais quente, a incidência de doenças
provocadas por mosquitos aumenta. Isso porque a proliferação dos insetos é mais
fácil em temperaturas elevadas. E ainda tem um agravante: a chuva,
característica que parece crescer na região sul. “As projeções para o Brasil,
em geral, são de períodos mais secos. A única diferença é mesmo no Rio Grande
do Sul, que aumentará a ocorrência de chuva daqui para frente”, explica a
professora Ana Maria Avila, pesquisadora no Centro de Pesquisas Meteorológicas
e Climáticas Aplicadas em Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). A soma de calor com chuva resulta em mais focos de acúmulo
de água. Logo, a lógica fala por si: mais calor e mais água acumulada, mais
chance de dengue.
Pesquisadores descobriram que o aumento de 1°C na
temperatura mínima fez crescer 45% dos casos de dengue em um mês. Foto: Ivo
Gonçalves/PMPA.
Uma pesquisa de 2013, que
avaliou a relação entre variações climáticas e o risco de dengue no Rio de
Janeiro, corrobora a previsão. Segundo os autores da Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), se levado em conta que, entre os anos de
2001 e 2009, o aumento de 1°C na temperatura mínima em um mês fez crescer 45%
dos casos de dengue no mês seguinte, a elevação de 10 milímetros na
precipitação de chuvas também esteve relacionada a um aumento de 6% dos casos
da doença. Ainda que não haja um dado especificamente sobre o Rio Grande do
Sul, uma coisa parece certa: se a população não se conscientizar e eliminar os
possíveis focos de reprodução, o Aedes aegypti vai ficar igual pinto no lixo.
Cidade mobilizada
O surto de dengue sem dúvida é o momento mais
insólito que Caibaté viveu em seus 49 anos. A rotina na cidade mudou
drasticamente. Desde março, pais são chamados a creches e escolas para assistir
a palestras sobre riscos e prevenção da doença. Os dois postos de saúde
passaram a abrir à noite para dar conta de todo o trabalho. Segundo a
prefeitura, teve estabelecimento que até fechou em alguns turnos porque os
funcionários ficaram doentes e impossibilitados de trabalhar.
Santa Lúcia, padroeira da paróquia de Caibaté, na
entrada da cidade. Foto: Divulgação.
Nos restaurantes, nas rodas de chimarrão e em
outros pontos da cidade, a conversa ultimamente é sobre os últimos infectados e
os locais onde foram encontradas larvas do mosquito. A primeira morte provocada
pela dengue na história do Estado vira e mexe é pauta também. Uma mulher de 41
anos faleceu no dia 22 de março, vítima da doença. O caso aconteceu em Santo
Ângelo, a 58 quilômetros de Caibaté.
Os moradores, contudo, suspeitam que se todos que
apresentaram os sintomas procurassem atendimento, muito provavelmente o número
de caibateenses infectados seria maior. Maria Luiza Schneider, por exemplo, só
soube que teve dengue 15 dias depois de melhorar. “Teve um dia que fiquei com
uma dor insuportável no corpo. Mas como fiz medicação na veia, eu melhorei logo
no segundo dia”, explica, por telefone. “Só fui saber que era dengue quando fiz
o exame, duas semanas depois”, completou ela, que trabalha como auxiliar de
escritório no hospital da cidade.
O futuro a nós pertence
Agente aplica inseticida na esperança de diminuir
os focos de proliferação do mosquito. Foto: Patrícia Coelho/PMPA
Segundo o Mapa Global de Vulnerabilidade ao Vírus
da Dengue, as doenças associadas à água são responsáveis por cerca de 3 milhões
de mortes por ano, seja por ingestão, contato (como a esquistossomose) ou por
vetores que dependam da água para proliferar. No caso da dengue, estima-se que,
a cada ano, 400 milhões de pessoas sejam infectadas em todo mundo. Pacientes
sofrem com dores nas juntas, febre alta e sintomas similares ao da gripe. Em
casos mais graves, como da dengue hemorrágica, a pessoa pode morrer. Anualmente
são 20 mil mortes provocadas pelo Aedes aegypti – o equivalente à devastação de
quatro Caibatés.
Especialistas do mundo todo trabalham na produção
de uma vacina que combata o vírus da dengue. Outros buscam meios de aproveitar
os próprios mosquitos, como o teste realizado no município de Manacapuru, no
Amazonas. A estratégia consiste em atrair as fêmeas dos mosquitos até pequenos
baldes tratados com um inseticida de alta potência que mata as larvas do
inseto, mas não os mosquitos adultos. “Nós não descobrimos a pólvora, mas esse
procedimento vai ajudar nas técnicas que já conhecemos”, reconhece Gonçalo
Ferraz, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (Ufrgs) e um dos autores do teste. “O importante é que
conseguimos atingir um maior número de criadouros. Os agentes sempre têm
dificuldades de encontrar as acumulações pequenas de água.”
Enquanto a solução definitiva ainda não chega, a
endemia, que já atinge mais de 100 países, continua a se expandir. No Brasil, o
crescimento da doença no primeiro trimestre de 2015, se comparado com o mesmo
período do ano passado, é de 240%. Dos 460 mil casos, mais da metade está
concentrado no estado de São Paulo. Além dele, Mato Grosso do Sul, Goiás e Acre
também apresentam incidência epidêmica. Os motivos são diferentes, segundo as
secretarias. No estado goiano, a interrupção de serviços básicos em alguns
municípios, como a coleta de lixo, é um dos fatores que provocaram o surto,
informou a superintendente estadual de Vigilância em Saúde, Maria Cecília
Brito, ao jornal Folha de S. Paulo.
Os autores do Mapa Global de Vulnerabilidade ao
Vírus da Dengue enfatizam a necessidade de traçar um plano antecipado para
enfrentar os desafios. “Sempre há incerteza nas projeções, mas é importante ser
pró-ativo no planejamento de futuras necessidades, fornecendo informações para
as comunidades sobre a forma de protegerem a si mesmos e suas comunidades”,
concluiu Sarah Dickin, da United Nations University.
Para conter o avanço do Aedes aegypti na região
Noroeste do Rio Grande do Sul, uma força-tarefa da Vigilância Ambiental em
Saúde aplica periodicamente inseticidas com veículos para bloqueio químico e
máquinas costais, especialmente nos municípios de São Miguel das Missões, Mato
Queimado, Cerro Largo, Rolador, Santo Ângelo e, claro, Caibaté. Ainda assim,
novos casos seguem aparecendo. “O medo é grande, né? E o pior é que, agora, é a
minha irmã que tá com dengue”, lamenta Darci, que num domingo desses acordou
com dores por todo o corpo – diagnosticado como um gripão.
Fonte: Jornalismo Ambiental
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