Biodiversidade
ameaçada.
Nurit Bensusan
Por Nurit Bensusan –
A presidenta Dilma Rousseff pode vetar ou
sancionar, total ou parcialmente, a qualquer momento, o projeto de lei sobre
acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Leia o artigo da
assessora do ISA e especialista em biodiversidade, Nurit Bensusan, sobre o
assunto. O texto foi publicado originalmente no jornal Correio Braziliense de
11/5/2015.
Tristeza não tem fim, biodiversidade, sim…
Todos sabemos que o Brasil é um país de natureza
exuberante, um lugar com uma enorme biodiversidade, expressa em números
incomuns de espécies de plantas, animais e micro-organismos e em ambientes tão
diferentes como a Amazônia e a Caatinga. O Brasil abriga cerca de 20% de todas
as espécies vivas do planeta. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, nossa
biodiversidade poderia concretizar a ideia de que o Brasil é o país do futuro.
Um futuro diferente do presente desigual, injusto e insustentável.
Entre as possíveis oportunidades que essa
biodiversidade nos traz está o desenvolvimento de produtos derivados do vasto
patrimônio genético que representa. Esses produtos não são apenas novos
medicamentos ou cosméticos, mas também tintas, solventes, essências, óleos,
produtos de limpeza, biotecnológicos e químicos. E para que os países
megadiversos, como o Brasil, possam obter benefícios usando de forma
sustentável sua natureza, a Convenção da Biodiversidade (CDB), um dos tratados
internacionais assinados na Conferência Rio-92, estabeleceu um mecanismo
chamado “repartição justa e equitativa” dos benefícios oriundos do acesso ao
patrimônio genético. Trata-se de um nome complicado para uma ideia simples:
quem usa algum componente da nossa biodiversidade e, com isso, afere algum
lucro, deve dividir esse lucro conosco, o povo brasileiro. Essa divisão deve ser
justa e garantir a igualdade de direito entre os envolvidos.
Além disso, a Convenção reconhece a importante
contribuição do conhecimento dos povos indígenas e das comunidades tradicionais
(ribeirinhos, extrativistas, quilombolas etc) para a conservação e o uso
sustentável da biodiversidade. Por isso, também estipula que haja repartição de
benefícios quando esse conhecimento é utilizado para o desenvolvimento de algum
produto. Um exemplo disso são remédios desenvolvidos a partir do saber indígena
sobre plantas medicinais.
Semente de copaíba. Foto: Tui Anandi – ISA
A repartição de benefícios foi uma das grandes
inovações da CDB e traz em seu bojo uma excelente ideia: fomentar um uso de
base científica e tecnológica dos componentes da biodiversidade, garantindo
assim sua conservação. Algo como a galinha de ovos de ouro. Se usarmos um
ovinho e os recursos derivados de cada ovo de cada vez, é possível manter a
galinha e assegurar que ela continue botando ovos. A concretização dessa ideia,
porém, é mais complexa. É difícil controlar e regular o acesso e o uso de
componentes da biodiversidade e, ao mesmo tempo, criar mecanismos justos e
equitativos de repartição de benefícios.
No Brasil, esse assunto é regulado, desde 2001, por
uma Medida Provisória (MP) que não agrada a ninguém. Foram feitas várias
tentativas de criar um novo marco legal para o tema, mas todas fracassaram. Por
fim, no ano passado, em plena Copa do Mundo, o governo federal enviou ao
Congresso um projeto de lei, em regime de urgência, para substituir a MP. O que
se viu, então, foi uma tramitação apressada, e nada democrática, de um assunto
complexo e votações pautadas por interesses que não são os do povo brasileiro.
Os detentores do conhecimento tradicional, povos indígenas e comunidades
locais, os pesquisadores e os ambientalistas foram alijados do debate e o texto
refletiu apenas os interesses das empresas que usam componentes da nossa
biodiversidade e conhecimentos tradicionais a ela associados.
O resultado final emergiu da Câmara dos Deputados,
na semana retrasada, e agora está na mesa da presidenta da República para
sanção ou veto. Trata-se de uma nova lei que confirma a dificuldade que o
Brasil tem em perceber sua biodiversidade como oportunidade, como passaporte
para o futuro, e não como maldição da qual quer se livrar.
Nessa nova lei, a União, guardiã – ao menos
teoricamente – da nossa biodiversidade, abre mão de quase todas as
possibilidades de aferir benefícios com a exploração do nosso patrimônio
genético. A repartição de benefícios passará a ser uma exceção ao invés da
regra e será sempre pautada pelas escolhas de quem usa e explora a
biodiversidade, ou seja, as empresas. Como parte da tristeza sem fim, fica a
questão de como a União pode abrir mão de tudo isso em nosso nome, sem sequer
nos consultar. Depois de quase 20 anos de debates sobre esse assunto, como
podemos acabar com uma lei, aprovada apressadamente, que não trará nenhuma
segurança jurídica e prejudicará a todos os envolvidos? Resta a esperança –
talvez vã – de que Dilma Rousseff vete alguns dispositivos e torne a nova lei um
pouco menos inaceitável, porque torná-la aceitável é agora impossível.
Fonte: Instituto Socioambiental
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