Em busca
da Amazônia 2.0.
Foto: Eco Verde
Como a floresta pode se tornar um laboratório vivo
de inovações tecnológicas relevantes e de baixo custo.
Por Sérgio Adeodato*
Quem se depara pela primeira vez com a realidade do
isolamento da Floresta Amazônica se surpreende com a felicidade da vida ribeirinha.
O povo adora uma celebração; as festas varam a noite até o raiar do dia, no
embalo de muita música, comida e bebida. Ao final, a montanha de resíduos
gerados pela farra chama atenção. Em qualquer outro lugar do País, a primeira
providência seria varrer o lixo, ou pelo menos escondê-lo. Mas ali é diferente:
copos, latas, plásticos, garrafas e demais objetos descartáveis têm valor para
a autoestima. De certa maneira simbolizam status, riqueza e poder, situação
perfeitamente compreensível para quem não faz muito tempo dependia de produtos in
natura, conquistou acesso ao consumo e mudou de hábito.
A ascensão econômica e social é mais do que justa.
Mas a enxurrada de produtos industrializados e suas embalagens acendeu o sinal
de alerta na floresta. E passou a exigir ideias inovadoras para que as
mercadorias que entram na rotina diária não prejudiquem a qualidade de vida.
A solução surgiu na comunidade Três Unidos,
habitada por índios da etnia Kambeba, na Área de Proteção Ambiental do Rio
Negro, nos arredores de Manaus (AM). No local foi instalado um inusitado galpão
de triagem, adaptado às condições do lugar, para recebimento do lixo reciclável
recolhido pelos moradores em 16 povoados ribeirinhos. A principal novidade está
na logística, que exigiu o projeto de recipientes customizados para embarque
nas lanchas do transporte escolar, responsáveis por levar os materiais até uma
cooperativa de catadores da capital amazonense. De lá, o papel, por exemplo, é
vendido a um depósito atacadista que junta maior quantidade para abastecer uma
fábrica de papelão em Pernambuco.
“Empreendedorismo caboclo” valoriza o lado humano
do bioma
Pela primeira vez, a reciclagem chega a uma área
protegida como reserva ambiental. “Não foi fácil conscientizar as famílias e
agora já notamos que o número de casos de diarreia diminuiu”, conta o pajé
Valdemir Triukuxuri. O hábito era queimar o lixo ou jogá-lo no rio como algo
que a natureza se encarregaria de eliminar, assim como faziam pais e avós com
as sobras de frutos, peixes e outros itens orgânicos mais tradicionais do
consumo na floresta.
A rotina começou a mudar com a central de resíduos,
construída em lugar nobre da comunidade, à vista de todos. “A ideia neste
momento não é gerar escala, mas sensibilizar os ribeirinhos para a questão”, explica
Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak, fabricante de
embalagens longa vida que apoia o projeto, em parceria com a Fundação Amazonas
Sustentável (FAS).
A iniciativa ilustra o desafio da inovação na
Amazônia, centro das atenções globais devido à importância para o equilíbrio
climático. “O esforço não deve estar na sofisticação, mas na relevância das
soluções, muitas vezes simples e de baixo custo, capazes de resolver entraves
do desenvolvimento sustentável”, diz Virgílio Viana, superintendente geral da
FAS.
Os avanços vão desde um trepador mecânico para
subir mais fácil e rápido na palmeira de açaí e coletar o fruto até um modelo
inovador de saúde pública com roteiro de visitas domiciliares a mães e crianças
por entre rios e igarapés.
“Em vários casos, o pulo do gato está em vencer o
isolamento”, ressalta Viana, ao informar que o desafio inspirou a criação da
Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, de modo que
boas ideias sejam compartilhadas entre os sete países do bioma. A iniciativa,
integrante de um projeto global das Nações Unidas, lançou neste ano um prêmio
para reconhecer e replicar as melhores soluções.
“Temos como negócio o convívio com o lado humano da
floresta, onde há culturas tradicionais e modos peculiares de produção que
precisam ser valorizados, para além das cobras e jacarés normalmente mostrados
aos visitantes”, diz Alexander Guimarães, à frente da start-up Amazon Share,
voltada para o turismo comunitário. O projeto se destacou no desafio de inovação
“The Boat Challenge”[1], promovido pela Coca-Cola para
identificar ideias práticas capazes de mudar a realidade socioambiental de
Manaus. Nas vilas, jovens nativos aprendem contabilidade e são mobilizados a
montar negócios, como mercearias e confecção de camisetas e artesanato, no
conceito de “empreendedorismo caboclo”.
Energia solar portátil
O Rio Negro, no Amazonas, é rota de experimentos
com potencial de beneficiar toda a região, caso sejam integrados a políticas
públicas. Longe da rede elétrica, a comunidade Tumbira, onde há um núcleo de
educação para o uso sustentável da floresta, é abastecida por um sistema
híbrido, parte painéis solares e parte óleo diesel, em fase piloto de testes
mediante parceria com a Schneider Electric.
A inovação garante o funcionamento de uma
microagência bancária do Bradesco que permite saques, depósitos e
transferências. Em vez de pagar caro pelo transporte fluvial para receber
salários, benefícios ou aposentadorias na capital, os ribeirinhos têm acesso ao
dinheiro na própria comunidade, com o uso de cartão magnético, e com ele
movimentam a economia local. O “banco” é operado por um ex-madeireiro ilegal,
Roberto Brito, hoje dedicado a mostrar para visitantes a floresta bem
conservada e as novidades que chegam por lá – inclusive a internet.
A questão da energia é obstáculo em grande parte da
Amazônia, onde a mesma floresta que captura e estoca carbono da atmosfera é
dona de uma matriz energética [2] suja, que emite gases de efeito
estufa, à base de usinas termelétricas e pequenos geradores a óleo diesel,
caros para os padrões da região. Para viabilizar a purificação da água servida
aos índios das etnias Deni e Kanamari, no Rio Xeruã, o pesquisador Roland
Vetter, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), desenvolveu um
equipamento solar portátil que reduziu em 80% as doenças associadas à
contaminação hídrica por esgoto. “A poluição passa a ser um problema quando as
populações indígenas deixam de ser nômades e se concentram em um único local”,
explica o cientista.
O método trata a água mediante a incidência de luz
ultravioleta, com bateria que garante o funcionamento por cinco dias sem sol.
Depois de patenteada, a tecnologia foi transferida para uma empresa do Amazonas
que disseminará os equipamentos no mercado, com pagamento de royalties ao Inpa
e aos inventores. Pela primeira vez em sua história, a instituição, criada há
62 anos como resposta às ameaças de internacionalização da Floresta Amazônica,
será remunerada por uma inovação. Há outras 71 em carteira, já com depósito de
patente, à espera de interessados. A próxima novidade a chegar ao mercado
deverá ser a sopa de piranha desidratada, de efeito afrodisíaco. Além dela,
estão em teste novos cosméticos e remédios, obtidos do gengibre amargo [3].
A chave saber quais espécies vegetais existem na
Amazônia, onde estão e qual a chance de serem comercialmente aproveitadas. Em
Belém, o Museu Emílio Goeldi guarda coleções científicas centenárias, fiéis
depositárias da flora e fauna. Com 209 mil amostras de plantas, o acervo é
estratégico na defesa contra a biopirataria. Mas metade dos pesquisadores da
instituição está apta a se aposentar, colocando em risco a continuidade de
trabalhos, como os estudos com a “terra preta” – tipo de solo milenar, rico em
matéria-orgânica proveniente do lixo de populações ancestrais, cobrindo 18 mil
quilômetros quadrados da floresta. Pesquisadores reproduziram o material no
laboratório, imitando a natureza, e patentearam o processo para aplicá-lo na
produção agrícola. “Não é por falta de pesquisa que há deficiência de políticas
para o desenvolvimento sustentável”, avalia Ilma Vieira, coordenadora de
biodiversidade do Museu, fundado em 1866 por intelectuais que pretendiam dar
“aparato civilizatório” à capital paraense.
“Apostamos no diferencial da região para acesso a
novos suprimentos, mas o desafio é tão grande quanto o potencial”, avalia
Iguatemi Costa, gerente do Núcleo de Inovação Amazônia (Nina), da Natura, em
Manaus. Desenvolvimento territorial e empreendedorismo são panos de fundo na busca
por formas alternativas de capturar valor na sociobiodiversidade. “Existe massa
crítica, mas são necessárias políticas públicas para que haja um ambiente
favorável a mais iniciativas e investimentos de longo prazo, com desdobramento
na economia florestal [4]”, completa Costa.
A estratégia da empresa na região é trabalhar em
rede, mapeando competências em frentes como a formação de lideranças e a
interface entre floresta e agricultura para dar escala [5] a
ingredientes da biodiversidade. O olhar nas cadeias produtivas procura incluir
tecnologias que as tornem mais eficientes, com garantia de qualidade do insumo
antes da chegada às fábricas. Para Costa, a reforma da lei brasileira de acesso
ao patrimônio genético tende a impulsionar inciativas de bioprospecção, apesar
de a logística amazônica de pesquisa ser cara.
Arranjos colaborativos são a saída: “Buscamos agora
novas essências para perfumaria, em cooperação com universidades, e começamos a
preparar o campo para trabalhar pela primeira vez com comunidade indígena”.
Entender o conhecimento tradicional e a visão de mundo ribeirinha é o primeiro
passo para valorizá-lo.
Referências
[1] A iniciativa selecionou 35 empreendedores sociais
que receberão investimento para a transformação de seus projetos em negócios,
cinco deles incubados na sede da FAS.
[2] No Amazonas, 82% da energia provém de
termelétricas e 18% de hidrelétricas. Quase metade da energia distribuída é
furtada, gerando perda de R$ 1,3 bilhão por ano à companhia elétrica.
[3] O extrato de zerumbona, obtido da espécie Zingiber
zerumbet, compõe um gel utilizado com bons resultados para tratar ferimentos em
diabéticos.
[4] A produção da floresta nativa na Amazônia gira em
torno de R$ 9 bilhões ao ano, segundo o IBGE. Os destaques são madeira tropical
serrada e, mais recentemente, o açaí.
[5] De todos os insumos da biodiversidade consumidos
pela Natura, 13% provêm da Amazônia. A meta é aumentar para 30% até 2020.
Fonte: Página 22
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