Concentração
de problemas ambientais.
Nora Pavón e uma de suas filhas, na parte dos
fundos da casa, com o lixão e o pântano circundante, uma cloaca natural em
Villa Inflamable, no município de Avellaneda, no sul de Buenos Aires. Foto:
Fabiana Frayssinet/IPS.
Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
Avellaneda, Argentina, 18/9/2015 – Em Villa
Inflamable, um assentamento precário ao sul da capital argentina, as crianças
estão envenenadas com chumbo. Reassentá-las, e suas famílias, exige um processo
socioambiental tão complexo quanto o das obras de saneamento da área, em uma
das bacias mais contaminadas do mundo. Ao pisar em Villa Inflamable, incrustada
no Polo Petroquímico de Dock Sud, no município de Avellaneda, na área
metropolitana de Buenos Aires, o gosto dos produtos químicos e as partículas de
pó são sentidos na saliva, na garganta e nos pulmões.
Mas aqui, onde mais de 1.500 famílias estão
expostas a contaminantes da indústria e do solo recheado de resíduos tóxicos,
sobre os quais construíram suas casas, as crianças sofrem no sangue.
“Com um ano, tinha 55 microgramas de chumbo no
sangue. Tive que interná-la”, contou à IPS a moradora do bairro, Brenda
Ardiles, sobre sua filha, agora com três anos. Ela tem outra menina de oito
meses, também contaminada. “Todas as noites sangram pelo nariz, não aguentam a
dor de cabeça, têm dor nos ossos, mas como à noite não há transporte, só de
manhã posso ir ao posto de saúde”, acrescentou sua sogra, Nora Pavón, mãe de
outras quatro crianças afetadas.
O Centro para o Controle e a Prevenção de
Enfermidades define o envenenamento por chumbo durante infância a partir de dez
microgramas por decilitro no sangue. No longo prazo, pode afetar o
desenvolvimento e o aprendizado, reduzindo a inteligência, e provocando perda
de audição e hiperatividade. “Uma das minhas filhas está na terceira série e a
outra na quarta e não sabem ler. Os médicos disseram que esse atraso é
consequência do chumbo”, confirmou Pavón.
Villa Inflamable concentra todos os problemas
ambientais da Bacia Matanza Riachuelo, que em seus 64 quilômetros quadrados
atravessa 14 municípios, incluindo a capital, onde desemboca. Em sua área,
vivem mais de 120 mil famílias em 280 assentamentos, sendo necessário
reassentar 18 mil. De um lado, estão as empresas contaminadoras: petroquímicas,
hidrocarboníferas, armazenadoras de substâncias químicas e combustíveis, e
processadoras de resíduos tóxicos. Do outro, os problemas típicos da miséria,
como moradias precárias, áreas inundáveis, lixões clandestinos e falta de
saneamento.
“Essa lagoa está toda podre, não sei o que jogam
nela”, disse Pavón, apontando para o pântano atrás de sua casa, rodeado de lixo
e que funciona como uma cloaca natural do bairro. No total, na bacia vivem
cerca de cinco milhões de pessoas, 35% sem água potável e 55% sem banheiro.
“Muitas crianças têm diarreia. A rede de água está contaminada e as ligações
clandestinas não são seguras”, explicou Claudia Espínola, da Junta de Moradores
Semeando Juntos, que distribui baldes com água potável em Villa Inflamable.
Área industrial do Riachuelo, com o porto ao fundo,
em Buenos Aires. A Autoridade da Bacia Matanza Riachuelo tem registradas em sua
margem 13 mil empresas, sendo sete mil industriais e 1.254 contaminantes. Cerca
de 900 já apresentaram planos de reconversão. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
A Suprema Corte de Justiça determinou, em 2008, a
descontaminação da área à Autoridade da Bacia Matanza Riachuelo (Acumar),
criada dois anos antes, que estabeleceu, em 2011, o Plano Integral de
Saneamento Ambiental para sua limpeza e seu desenvolvimento sustentável.
O plano inclui a reconversão industrial, limpeza e
descontaminação de rios e margens, coleta e tratamento de lixo, obras de
escoadouro e tratamento da água, além da reurbanização de assentamentos ou sua
mudança de lugar. No total, o plano engloba 1.600 projetos a serem completados
até 2024, incluída a construção de 1.900 casas, com investimento total de US$ 4
bilhões.
“Nos ofereceram outro lugar, mas não aceitei porque
somos três famílias, 15 pessoas, e vivemos nesta casa. Não cabíamos na outra,
mesmo que fizéssemos malabarismos”, contou Pavón, que aceitou uma segunda
proposta, embora lamentando que não haverá espaço para suas crianças brincarem.
Muitos não aceitam a mudança por motivos que variam
desde a oferta habitacional até o desconhecimento da grave contaminação. “Às
vezes, as casas são pequenas e muitos estão acostumados a terrenos grandes.
Outros trabalham ou têm seu negócio em casa, são recicladores, e não sabem como
continuarão em outro local”, explicou Espínola à IPS.
Outra razão mais difícil de resolver é a rivalidade
entre as equipes de futebol do velho e do novo bairro onde serão reassentadas,
no mesmo município de Avellaneda. “É um problema histórico entre os torcedores
dos clubes de Dock Sud e de San Telmo, uma rivalidade às vezes violenta. Um
problema cultural que acreditamos poder reverter e estamos trabalhando nisso”,
acrescentou Espínola.
Em Villa Inflamable, um centro de saúde ambiental
agora controla os níveis de contaminação. Mas, segundo Leandro García Silva,
chefe de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Defensoria do Povo da
Nação, que acompanha a decisão judicial, falta um mapeamento prévio de risco.
“O sistema de saúde não tem muitas ferramentas para agir sobre as doenças
originadas em questões ambientais, porque o médico não pode receitar a limpeza
do ambiente. Precisamos adaptar as ferramentas de saúde pública a esse novo
problema”, ressaltou.
Uma rua de Villa Inflamable, um assentamento
precário ao sul de Buenos Aires, no Polo Petroquímico de Dock Sud, na margem da
bacia Matanza Riachuelo. Nesse bairro, mais de 1.500 famílias vivem expostas à
contaminação industrial e aos resíduos tóxicos, que envenenam suas crianças.
Foto: Fabiana Frayssinet/IPS.
Simultaneamente, a Acumar empreendeu ambiciosos
projetos de infraestrutura, como a construção de um coletor de esgoto de 11,5
quilômetros e um emissário subfluvial de 11 quilômetros, financiados pelo Banco
Mundial com US$ 840 milhões, em obras que devem estar concluídas no ano que
vem. Antolín Magallanes, diretor institucional da Acumar, disse à IPS que o
coletor é um duto subterrâneo em uma margem do Riachuelo, que levará o esgoto a
dois tanques de decantação, nas localidades de Dock Sud e Berazategui. Nesta
última já funciona.
“O coletor é uma obra muito importante, porque 70%
ou 80% da contaminação do Riachuelo ocorre pelo esgoto. Isso resolve quase
completamente esse problema”, acrescentou Magallanes. Além disso, serão
construídas seis cascatas para oxigenar as águas, projetadas pela empresa
estatal Águas e Saneamento Argentino (AySa) e a Universidade de Buenos Aires.
“O capítulo de saneamento é importantíssimo, as
obras de infraestrutura previstas vão proporcionar maior cobertura de saneamento
e tratamento, sobretudo em efluentes de esgoto e provisão de água potável”,
pontuou Javier García Espil, coordenador da equipe do Riachuelo na Defensoria.
“Mas se isso não for acompanhado de gestão ambiental, ou seja, do ordenamento
do território, controle das indústrias e de inundações, fomento de novos modos
de ocupação desse território, será uma resposta limitada”, acrescentou à IPS.
A Acumar reforçou as inspeções nessa região, que
contribui com 30% do produto industrial argentino. “Temos registradas cerca de
13 mil empresas, das quais aproximadamente sete mil são indústrias, e 1.254
foram identificadas como poluidoras. Cerca de 900 já apresentaram planos de
reconversão”, assegurou Magallanes.
A Defensoria reconhece esses avanços mas critica
como insuficientes os créditos para essas reconversões e os planos
estratégicos. “O problema não é simplesmente inspecionar e ajustar algum
processo, que, mesmo necessário, é parte de um problema maior, que é definir o
tipo de indústria que queremos no futuro. Um desafio grande que segue
pendente”, enfatizou García Espil.
García Silva acrescentou que “é necessário colocar
em marcha mecanismos novos: a gestão ambiental com ordenamento territorial,
considerando a capacidade dos ecossistemas, e a complexidade do território,
envolvendo a participação social”. Sete anos de luta complexa contra dois
séculos de abandono de uma bacia que, segundo Magallanes, “foi o refúgio
histórico de milhões de pessoas que não tiveram para onde ir por questões
sociais”.
Pavón, imigrante da província do Chaco, resume
assim a questão: “Voltaria ao Chaco que é mais saudável e mais bonito para
criar as crianças, mas não tem trabalho. Vi no noticiário que uma criança
morreu lá de desnutrição”. Ainda assim tentou voltar ao seu povoado “para ver se
baixava um pouco o chumbo nas crianças”, mas fracassou por falta de trabalho.
Entre a desnutrição e o chumbo, teve que escolher o chumbo.
Fonte: ENVOLVERDE
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