Falta de água em Itu provoca mais
de mil reclamações ao Ministério Público.
Numa sexta-feira de agosto, foram abertas as
inscrições para Os Mil Nomes de Gaia, colóquio que reuniria no
Rio de Janeiro pensadores de vários países que vêm refletindo
sobre a mudança do clima e a crise ambiental global.
Atraído pelas estrelas acadêmicas de primeira grandeza, o público esgotou em
cerca de uma hora e meia os ingressos para cada um dos cinco dias de programação.
A reportagem é de Bernardo Esteves, publicada
pela revista Piauí, 10-10-2014.
Realizado na terceira semana de setembro, na Casa
de Rui Barbosa, em Botafogo, o evento também teve
transmissão pela web. Foi concebido pelo antropólogo Eduardo Viveiros
de Castro, do Museu Nacional da UFRJ, pela filósofa Déborah
Danowski, da PUC do Rio, e pelo
antropólogo francês Bruno Latour, do Instituto de
Estudos Políticos de Paris, ou Sciences-Po.
Na semana do colóquio, a NOAA,
agência federal americana que monitora os oceanos e a atmosfera, anunciou que a
temperatura média da superfície do planeta registrada em
agosto foi a mais alta para esse mês desde 1880, quando as medições começaram a
ser feitas de modo sistemático. A continuar nesse ritmo, 2014 pode se tornar o
ano mais quente já documentado, na contramão da suposta estagnação do
aquecimento global alardeada pelos céticos do clima.
O aquecimento da Terra,
a faceta mais falada da crise ambiental, integra um quadro de ameaças não menos
perturbadoras, como a acidificação dos oceanos ou a perda
acelerada da biodiversidade e da cobertura vegetal, todos eles processos
interligados. A riqueza de detalhes com que a catástrofe vem sendo descrita
contrasta com a inércia de governos, empresas e sociedades civis – um relatório
divulgado em setembro mostrou que em 2013 as emissões de gases do efeito estufa
aumentaram 2,3% em relação ao ano anterior.
No ano 2000, o biólogo americano Eugene
Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel
em 1995, propuseram que se alterasse a linha do tempo com que os cientistas
medem os éons, épocas e períodos geológicos, de modo a refletir as
transformações no planeta causadas pelas atividades do homem. Segundo eles, as
marcas da ação humana continuarão visíveis por milênios, gravadas nas camadas
geológicas da Terra. Paleontólogos de um futuro longínquo – ou
mesmo de outra civilização, caso a nossa venha a ser dizimada – provavelmente
saberão identificar a alteração brusca na composição da atmosfera e as demais
mudanças ambientais que provocamos, por meio dos fósseis de incontáveis
espécies extintas, rejeitos radioativos, toneladas de plástico e outros rastros
da nossa passagem devastadora pelo globo.
A essa época em que nossa espécie se tornou uma
força geológica, Stoermer e Crutzen sugeriram
dar o nome Antropoceno. Numa aula recente, Viveiros de
Castro explicou que o conceito marca um colapso de escalas – a
história do planeta e a da espécie humana, antes nas mãos de disciplinas
distintas, agora se confundem. “O capitalismo passa a ser um episódio da
paleontologia.”
Desde que foi proposto, o termo Antropoceno
vem sendo apropriado por especialistas de várias disciplinas. No entanto, a
União Internacional de Ciências Geológicas, guardiã da escala do
tempo, ainda não o adotou oficialmente. A ideia esteve na pauta do último
congresso da entidade, em 2012, quando uma comissão discutiu se o sinal da
presença humana nas camadas geológicas é forte e distinto o bastante para
justificar a formalização de uma nova época. Discussão inconclusiva, decisão
adiada para o congresso de 2016: até lá, continuamos vivendo no Holoceno,
iniciado há 12 mil anos, ao final da última glaciação.
Não há consenso sobre quando teria começado o Antropoceno.
Crutzen vê sua origem na invenção da máquina a vapor em 1784,
marco da Revolução Industrial, mas há quem prefira situá-la no
início da agricultura, na era dos grandes descobrimentos ou no início da era
nuclear – cada recorte com suas implicações políticas. O nome da nova época
também é motivo de discórdia. Ao atribuir a transformação planetária ao
anthropos, o termo Antropoceno joga a culpa sobre toda a
espécie, embora uns sejam mais responsáveis do que outros. O sociólogo Jason
Moore propôs o nome Capitaloceno, enfatizando o modo
de produção responsável pelas mudanças globais. “Essa opção focaliza as causas
mais que as consequências, mas perde de vista o fato de que é possível sair do
capitalismo, mas não do Antropoceno”, ponderou
Viveiros de Castro. “Quando o capitalismo acabar, o planeta vai
continuar registrando, por muito tempo, os efeitos da Revolução
Industrial e da emissão de gás carbônico.”
O dia da palestra de Bruno Latour
– o nome de maior projeção dentre os convidados do colóquio – foi o primeiro a
ter as entradas esgotadas. Nascido na Borgonha há 67 anos, Latour
se formou em filosofia e atuou como sociólogo e antropólogo das ciências. Nas
últimas quatro décadas, tem proposto uma nova forma de enxergar a produção do
conhecimento científico, rejeitando noções como o excepcionalismo humano ou o
dualismo entre natureza e sociedade, e entre sujeito e objeto.
Conquistou uma
legião de seguidores em várias disciplinas, mas também alguns críticos. No ano
passado, recebeu o prêmio Holberg, citado em seu currículo
como “o equivalente mais próximo do Nobel para as humanidades e ciências
sociais”. Criado em 2003 pelo governo norueguês, o prêmio já foi concedido a
nomes como Jürgen Habermas e Manuel Castells.
Latour usa óculos de armação
grossa e tem os cabelos pretos repartidos de lado, contrastando com o grisalho
das fartas sobrancelhas e do cavanhaque. Durante um almoço na semana do evento,
ele contou que seu interesse pela crise ecológica começou nos anos 90, quando
orientou doutorados sobre controvérsias ambientais, fez um estudo para o Ministério
do Meio Ambiente e escreveu Políticas da Natureza.
“Mas foi por volta de 2005 que passei a me interessar por Gaia,
incorporando o termo como figura da atualidade.”
O químico James Lovelock se
inspirou em Gaia – deusa mãe da mitologia grega que
personifica a Terra – para batizar a hipótese que descreve o planeta como um
sistema complexo autorregulável, com comportamento semelhante ao de um
organismo vivo. Sua proposta, formulada nos anos 70, projetou a imagem de Gaia,
que fez sucesso na cultura pop e entre alguns cientistas, mas nem todos
compraram a ideia. Junto com outros colegas, Latour vem
redefinindo o conceito em livros, artigos e conferências. Na abertura do
colóquio, o francês alertou para o risco de um pensamento holístico que
despreze a multiplicidade de Gaia. “Se a tratarmos como uma
totalidade, ela será apenas uma possibilidade de recarregar as formas de
modernismo que se esgotaram justamente por causa da crise ecológica.”
Em suas últimas publicações e conferências, Latour
tem mostrado como a crise ambiental é marcada por um novo tipo
de controvérsia, cuja resolução já não pode ser arbitrada pela ciência. “É
fácil entender por que as pessoas não correm para depositar confiança nos
resultados dos cientistas”, considerou o francês. “Eles anunciam fatos que
estão tão bem estabelecidos quanto os fatos mais bem estabelecidos da história
das ciências, mas pedem que você mude sua vida.”
Para Latour, a crise põe em
xeque as distinções tradicionais entre fatos e valores, forjadas num mundo em
que a ciência cuida dos objetos, e a política, dos sujeitos. Mas não há como
fazer ciência desinteressada no mundo de Gaia. Latour
notou que afirmar que a água ferve a 100 graus centígrados é uma coisa;
constatar que a concentração atmosférica de gás carbônico chegou a 400 partes
por milhão, como aconteceu em 2013, é outra bem distinta. “Nenhum
climatologista pode ouvir essa frase e passar a outro tópico”, ele lembrou. “A
constatação soa como uma sirene ensurdecedora.”
E, no caso dele próprio, a gravidade de suas
reflexões não o impele à ação? “Sempre desconfiei dos intelectuais engajados”,
respondeu Latour, que acredita ser mais útil fazendo o que faz
– dando aula, mobilizando estudantes e propondo a discussão pública do tema. E,
desde 2010, fazendo teatro, que lhe oferece um meio mais flexível para intervir
no debate sobre a mudança climática. Seu projeto Gaïa Global Circus
já deu origem a duas peças, uma das quais coescrita por ele próprio. Do Rio, o
francês embarcou para Nova York, onde armaria o Circo
de Gaia na semana em que a cidade recebeu a Cúpula do Clima
da Onu e a Marcha do Povo pelo Clima, a maior manifestação já
feita em torno da causa, com 300 mil pessoas.
Latour condenou o desdém de
alguns colegas pelo tema ambiental. “Na França e no
Brasil, a questão continua a despertar um sorriso nos intelectuais
que, uma vez que leram Foucault e Deleuze e
foram vagamente de esquerda, pensam já ter feito seu trabalho para o resto da
existência”, disse o francês. “Chamo a isso de quietismo ambiental. No fundo,
creio que eles estejam mais próximos dos céticos.”
A ideia de reunir pensadores que refletem sobre a
crise ambiental surgiu em 2012, na casa de Eduardo Viveiros de Castro
e Déborah Danowski em Teresópolis, numa
conversa com Bruno Latour e sua mulher, Chloé.
O antropólogo brasileiro pretendia estimular um debate que ainda é tímido entre
seus colegas. “No Brasil, é muito pequena a reflexão das
ciências humanas e sociais sobre as mudanças climáticas”, disse. “Essa
discussão está pegando fogo no mundo todo, mas a ficha não caiu aqui.”
Ao lado de Déborah, Viveiros
de Castro tem tratado do tema em suas intervenções públicas, seja em
conferências, seja nas redes sociais. Na semana do colóquio, lançaram Há
Mundo por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins – um livro que Latour
recomenda ler “como se toma uma ducha gelada”, para nos prepararmos
para o pior.
Na abertura do colóquio, o antropólogo brasileiro
lamentou que o tema do aquecimento global estivesse ausente da imprensa e da
agenda eleitoral. Assinalou também uma coincidência irônica: na mesma semana, o
Rio de Janeiro sediava outro evento internacional, a Rio
Oil & Gas 2014, uma feira da indústria petrolífera que tinha entre
os patrocinadores Petrobras, Shell, Total,
Statoil, ExxonMobil e outros gigantes do
setor que mais emite gases-estufa. O evento recebeu dezenas de milhares de
participantes em seus quatro dias, inclusive o vice-presidente Michel
Temer, em campanha para a reeleição. “É eloquente o fato de estarmos
dividindo o espaço do Rio de Janeiro com os grandes
responsáveis por boa parte da crise climática mundial”, disse Viveiros
de Castro.
Em sua conferência, sublinhou a importância de o
aquecimento global ser discutido pelas humanidades. “Sabemos muito bem o que
está acontecendo e quem é o responsável, o que não sabemos é o que fazer e
como, e isso está inteiramente fora das competências dos cientistas do clima”,
disse. Viveiros de Castro ironizou a proposta que o biólogo
americano Edward Wilson fizera semanas antes, de reservar
metade do planeta para os organismos não humanos. “Ele não diz exatamente onde
vai ficar essa metade, e nem em qual metade ficarão os Estados Unidos”,
disse, arrancando risos. “É a típica ideia de jerico de um cientista natural
americano. Por isso nós, cientistas antinaturais, precisamos entrar no jogo.”
O time escalado para o colóquio contou sobretudo
com filósofos, historiadores e cientistas sociais, mas também incluiu
pesquisadores das ciências naturais, como o físico Alexandre Costa,
professor da Universidade Estadual do Ceará e editor do blog O que Você Faria Se
Soubesse o que Eu Sei?
Costa disse que não estava ali
para dar boas notícias. Projetou slides que ilustravam o ritmo inaudito do
aquecimento do sistema climático, o crescimento da forçante radiativa e o risco
da emissão na atmosfera de uma quantidade assombrosa de metano estocada no
permafrost ártico. “A besta climática está acordando”, resumiu.
Quando o microfone foi aberto ao público, uma
senhora se disse bouleversée, em sintonia com o espírito algo
francófilo que permeava o encontro. Sua ficha acabara de cair. “Estou
extremamente chocada. Queria fazer uma pergunta ao Alexandre e
a todos que detêm esse tipo de conhecimento: Você tem filhos? Como consegue
dormir e ser feliz todos os dias?” Costa sacou da mala duas
caixas de remédio e agitou-as no ar: “Como eu consigo levar adiante?”,
perguntou à plateia. “Jogando dopado!”
Numa conversa no dia seguinte, o físico afirmou
que gostaria de provocar reações como aquela em todo mundo. Mas, além da
preocupação, ele deseja mobilização. “Uma década atrás precisávamos da
esperança das pessoas; hoje queremos o desespero.”
Outro nome estrelado do colóquio foi a belga Isabelle
Stengers, uma química convertida em filósofa da ciência que é autora
ou coautora de mais de vinte livros e professora da Universidade Livre
de Bruxelas desde 1997. Em 2009, lançou No Tempo das
Catástrofes: Resistir à Barbárie que Vem Aí, uma reflexão sobre a crise
ecológica sem edição em português. Propôs ali a imagem da “intrusão
de Gaia” para caracterizar a irrupção irreversível do planeta no primeiro
plano de nossas vidas, chamando a atenção dos colegas para o conceito de Lovelock.
Nascida em 1949, Stengers é uma
senhora de olhar vivo e fala envolvente. Numa entrevista no último dia do
colóquio, ela falou sobre a situação inédita com que se deparam as ciências
naturais. “Os cientistas do clima precisam de apoio. Eles devem desconfiar de
seus aliados tradicionais – as empresas e o Estado –, que podem se apropriar
completamente do problema com consequências catastróficas.” Para a pensadora
belga, o momento é de cooperação. “As ciências humanas podem lhes dar a
imaginação que a sua formação não lhes deu sobre as consequências que não lhes
são familiares”, afirmou. “Se eles puderem povoar sua imaginação, talvez fiquem
menos vulneráveis.”
Escalada para a conferência de encerramento, Stengers
fez um balanço das discussões travadas durante a semana. Em tom grave, observou
que no futuro talvez sejamos confrontados por questionamentos similares aos dos
jovens alemães nascidos no pós-guerra, quando descobriram os horrores do Holocausto:
“Vocês sabiam, e o que fizeram?” Ela se disse hesitante entre o
pesadelo e a vergonha. “Daqui a trinta ou quarenta anos seremos a geração
mais odiada.”
Fonte: IHU On-line
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