Crise da água afronta a ciência
brasileira.
por André
Trigueiro*
O Sistema Cantareira registra hoje, 23 de outubro,
3,0% de volume útil. Foto: Vagner Campos/ A2 FOTOGRAFIA (16/05/2014)/ Fotos
Públicas.
Não foi por falta de aviso.
Além do seu incomensurável capital natural, o
Brasil construiu ao longo do tempo um robusto estoque de conhecimento
científico a respeito de seus biomas, ecossistemas e bacias hidrográficas.
Gente do calibre de José Lutzenberger, Augusto
Ruschi e Aziz Ab’Saber (dentre tantos outros que descortinaram novos e
importantes horizontes de investigação científica) revelaram que a natureza se
comporta como um sofisticado sistema interligado, onde certos gêneros de
intervenção, aparentemente inofensivos, podem causar gigantescos estragos.
Não fosse a genialidade e o respeito que impuseram
a partir de seus trabalhos científicos, seriam massacrados pelos poderosos da
época.
Não foram poucos os políticos inescrupulosos e
empresários gananciosos que tentaram a todo custo “desconstruir” (para usar uma
palavra da moda) suas reputações.
Deixaram um legado reconhecidamente importante que
deveria inspirar uma nova ética no modelo de desenvolvimento, especialmente
mais cuidado na forma como certas políticas públicas são concebidas e
aplicadas.
Portanto, é curioso imaginar o que Lutz, Ruschi e
Ab’Saber diriam hoje sobre essa crise hídrica sem precedentes na história do
Brasil?
Em 1980, ao publicar o livro com o sugestivo título
“O Fim do Futuro?”, José Lutzenberger denunciava que “a perda da capa vegetal
protetora, além de significar o desaparecimento dos habitats essenciais à
sobrevivência da fauna e das espécies vegetais mais especializadas e preciosas,
causa o desequilíbrio hídrico dos corpos d`água (…) Estamos preparando para o
nosso país o mesmo destino que o do cordão subsaariano”.
Um dos primeiros a prever a escassez de água no
mundo, Augusto Ruschi denunciava em sucessivos alertas, como nesse texto de
1986, os impactos causados pelo desmatamento sobre a vazão de água dos rios,
especialmente na Amazônia:
“Há 35 anos, escrevi que estávamos caminhando para
construir na Amazônia o segundo maior deserto do mundo. Hoje, a previsão vai se
confirmando. No primeiro ano, depois que desmatam, é uma beleza: o solo
continua fértil, produz-se muito. Mas, depois, a matéria orgânica é lixiviada
para as profundezas do solo e planta nenhuma vai lá embaixo buscá-la. Forma-se
o cerrado, depois a caatinga, e finalmente, o deserto”.
Um dos mais respeitados cientistas brasileiros,
Aziz Ab’Saber denunciou abertamente o absurdo do novo Código Florestal ter sido
aprovado há quase três anos no Congresso Nacional sem o respaldo da ciência. E
previu consequências trágicas para os recursos hídricos.
“Trata-se de desconhecimento entristecedor sobre a
ordem de grandeza das redes hidrográficas do território intertropical
brasileiro” (…) Em face do gigantismo do território e da situação real em que
se encontram os seus macro biomas – Amazônia Brasileira, Brasil Tropical
Atlântico, Cerrados do Brasil Central, Planalto das Araucárias, e Pradarias
Mistas do Brasil Subtropical – e de seus numerosos minibiomas, faixas de
transição e relictos de ecossistemas, qualquer tentativa de mudança do Código
Florestal tem que ser conduzido por pessoas competentes bioeticamente
sensíveis”.
Como se sabe, não foi assim que aconteceu.
Prevaleceram os interesses da bancada ruralista.
Em tempo: o desmatamento na Amazônia entre agosto e
setembro aumentou 191%, segundo dados apurados pelo Instituto Imazon.
E os candidatos à Presidência, o que dizem?
Bem, a cada novo dia de campanha eleitoral o Brasil
tem menos água e menos floresta. E as prioridades continuam sendo outras.
Mas o legado de Lutz, Ruschi e Ab’Saber segue
incomodando. Até que alguém resolva prestar atenção e evitar uma catástrofe
ainda maior.
Ouça o comentário sobre este assunto na Rádio CBN.
* André Trigueiro é jornalista com
pós-graduação em Gestão Ambiental pela Coppe-UFRJ onde hoje leciona a
disciplina geopolítica ambiental, professor e criador do curso de Jornalismo
Ambiental da PUC-RJ, autor do livro Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia
para um Planeta em Transformação, coordenador editorial e um dos autores dos
livros Meio Ambiente no Século XXI, e Espiritismo e Ecologia, lançado na Bienal
Internacional do Livro, no Rio de Janeiro, pela Editora FEB, em 2009. É
apresentador do Jornal das Dez e editor chefe do programa Cidades e Soluções,
da Globo News. É também comentarista da Rádio CBN e colaborador voluntário da
Rádio Rio de Janeiro.
Fonte: Mundo Sustentável
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