segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ninguém nos representa.
Não há um problema específico com o formato do debate da sexta-feira na Globo – exceto talvez os tempos muito limitados. Mas, no caso, tempo não fez falta, porque raramente alguém tinha algo importante a dizer. O buraco é mais embaixo.

O que não havia era candidatos. Dilma é uma fantasia do Lula. Foi pinçada meio que do nada para realizar uma sacada do ex-presidente, de que era “a vez de ter uma mulher no cargo”, tese que em si não está nada errada. Mas, para fazer sentido, seria necessário ter uma mulher com uma trajetória social e política de verdade – com sua história nos movimentos populares, Marina seria um exemplo disso (e ela também foi ministra de Lula).

Já Aécio é uma fantasia de outro tipo: a do “herdeiro político” consanguíneo. Ao contrário de Dilma, Aécio tem uma trajetória pública compreensível – o que não quer dizer recomendável. Mas pelo menos sabe-se o que ele representa politicamente. Aécio traz em si essa marca do que o elitismo nacional tem de pior, a mediocridade do compadrio e do nepotismo patriarcais. Aécio, no fundo, não passa de uma fantasia de Tancredo Neves.

No debate global, o mediador também não existia, no sentido de que não é um jornalista importante enquanto jornalista. É um jornalista-galã, uma bobagem que vem da empáfia estética da Globo “padrão de qualidade” nos anos 70, e que desembocou confortavelmente no jornalismo-celebridade dos dias atuais.

O Brasil está num momento estranho. Saiu de alguma coisa (essa coisa elitista branca e patriarcal que Aécio simboliza-sinaliza bem), mas ainda não chegou a lugar nenhum. A oratória incompreensível de Dilma, que é uma mescla de clichês, impaciência e confusão, não tem muito significado em si mesma.

Durante o debate, chegou a ser ofensivo o momento em que Dilma sugeriu a uma eleitora indecisa, uma economista de 54 anos desempregada, que fosse fazer um curso profissionalizante. O bizarro é que a mulher, com quem Dilma não teve a menor empatia, não era dissemelhante à própria Dilma. Que uma vez, em 1995, faliu uma loja de R$ 1,99. A resposta de verdade seria “mais sorte na sua próxima vida”.

O que os petistas chamam por jargões como “coração valente” e “onda vermelha” não tem uma substância real. O curso à esquerda esboçado no segundo turno não corresponde às crenças reais de Dilma – Dilma só acredita, e num nível bem medíocre, na economia de consumo. “Coração valente” teria se não escondesse sua posição (se é que ainda a tem) sobre o aborto.

Um instante antes das manifestações de 2013 o melhor que o governo Dilma tinha conseguido pensar como programa de inclusão era uma campanha com a Regina Casé, falando de “comprar eletrodomésticos para equipar as casas próprias do programa Minha Casa Minha Vida”.

Há um problema aí. Principalmente depois do seu caso de câncer, Lula se afastou da rotina de Dilma. Deixou de transmitir sua visão, matreira mas ainda assim bem mais próxima da realidade, de como se relacionar com movimentos sociais, sindicatos, e outras representações da sociedade civil.

A ruptura com o elitismo e a horizontalidade do governo Lula não só não prosperaram no governo Dilma, como ganharam essa leitura medíocre (da parte de Dilma) e vazia e “estilizada” (da parte do marqueteiro João Santana). Sobrou, claro, o vício “sindical” petista em aparelhar o estado. Mas a animação moralista de final de campanha não vai abrir um “portal mágico” (como alguém escreveu no facebook) que traga o velho PT de volta. A fantasia social de Lula deu uma degenerada.

Lula sabe disso. As conversas sobre a participação de Lula no segundo  turno da campanha foram bastante complicadas. Certamente Lula, Dilma e João Santana deram uma adiada na resolução dos conflitos para embarcar o ex-presidente na falácia do portal mágico e do “coração valente”.

A situação política atual é canhestra, bisonha. A potência mostrada nas manifestações de junho de 2013 pertence a outro canal de percepção – simplesmente não há hoje como expressar essa potência, viva, num tipo de joguete publicitário em que as eleições se transformaram. Saudades de um bom bate-boca com o Brizola, ou com o próprio Lula.

A sensação “épica” do embate entre Aécio e Dilma é uma fraude. O que há são dois candidatos-atores (canastrões) apelativos e moralistas, um contra a “corrupção” (quando ele mesmo vem do coração das estruturas corruptas, coisa que o eleitorado detecta) e o outro contra o “elitismo” playboy, mas sem nada de verdade a alegar.

Eu, falando por mim, já dei um voto de confiança a Dilma há quatro anos – e esse voto de confiança foi totalmente frustrado. Não tenho a menor razão para acreditar que, apesar das falas recentes, ela represente de alguma maneira as preocupações com as nações indígenas (nosso mais importante patrimônio psíquico), o meio ambiente, as mulheres, os negros, a cultura, os ativistas pró-maconha, os gays.

Dilma já demonstrou que não compreende nada disso, e não vai compreender. Teve a faca e o queijo na mão e não soube o que fazer com eles. Há gente desses movimentos que quer fazer essa disputa num próximo governo do PT. Eu acho mais prudente devolver o PT para a oposição, para ver o que sobra.

Assistir a um debate do vazio, entre uma fantasia de Lula e uma fantasia de Tancredo Neves, mediada por uma fantasia da Globo, só me reforça essa certeza de que nada nem ninguém ali me representa.
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