A travessia ao Monte Roraima.
por Luciana Tancredo, de
Plurale*
Ao longo de uma semana, a nossa editora de
fotografia fez a caminhada até o alto de um dos pontos extremos do país, na
fronteira com a Venezuela e Guiana. Venceu seus desafios e pode apreciar a
exuberância e grandiosidade da região. Agora, compartilha com os leitores de
Plurale.
De Boa Vista (RR) – Lendas indígenas, mistérios,
paisagens exuberantes e um clima de aventura. Estes são alguns dos “ingredientes”
que renderiam, sem dúvida, um bom livro ou até novela. Pois é justo um cenário
da novela O império, da Rede Globo que fomos desvendar e conhecer de perto.
Na
verdade, muito antes do Monte Roraima, no extremo norte do país, passar a ser
conhecido como o Monte do Comendador José Alfredo – personagem vivido na trama
de Aguinaldo Silva pelo ator Alexandre Nero – já tínhamos acertada este
Especial.
Depois de desbravarmos diversas outras regiões,
de diferentes biomas, para os nossos leitores – como o Pantanal, diversos
pontos da Amazônia brasileira e peruana, a região Sul, a Mata Atlântica,
Fernando de Noronha, Chapada dos Veadeiros, Serra da Canastra (MG), etc-
sabíamos que tínhamos um “encontro marcado” com o extremo Norte, uma subida de
2.800 metros, caminhando quase 90 quilômetros ao longo de oito dias em terreno
acidentado e íngreme, cruzando rios, enfrentando sol e chuva e fugindo das
pedras escorregadias.
Nas aulas dos nossos tempos do tradicional
Primário aprendemos que o Brasil era marcado ao Norte pelo Monte Roraima e ao
Sul pelo Arroio Chuí. Pesquisando com calma, descobrimos que o ponto mais
extremo em Roraima é o Monte Caburaí, na Serra com o mesmo nome, marcando a
fronteira entre o Brasil e a Guiana. Mas o Monte Roraima marca o nosso
imaginário há muitos anos. Estaríamos em um dos extremos de nosso país tão
continental: ali fica o Ponto Triplo, marco das fronteiras do Monte: Brasil,
Venezuela e Guiana. A Venezuela, detém quase que 80% do Monte Roraima, a Guiana
uns 15% e o Brasil tem a menor parte, não mais do que 5%. Por isso a maioria
das agencias operadoras de turismo no monte são venezuelanas, e são também as
autoridades desse pais que controlam a entrada e saída dos turistas do Parque
Canaima, onde fica o Tepui.
Há cerca de um ano, decidimos que iríamos fazer
esta travessia. Como não sou uma aventureira de carteirinha – embora já tenha
rodado vários destinos pelo Brasil e pelo mundo fotografando roteiros de
natureza, normalmente com a providencial ajuda do carro, barco ou helicóptero –
fazer trekking nunca foi uma rotina em minha vida. Quando mais em um terreno
íngreme e acidentado.
Desafio - Encarei a missão como
um verdadeiro desafio. Ao completar 50 anos, levando uma vida agitada, amante
da natureza, tendo visitado vários parques e destinos inóspitos como o Atacama,
na verdade, sempre fui uma moradora de grande centro. Era preciso rever
hábitos, reencontrar o equilíbrio com a balança e reorganizar o corre-e-corre
diário do trabalho para conseguir realizar este sonho. Chegar ao Monte Roraima
não de helicóptero – há esta opção sim, mas a preço bem mais caro, claro e
mesmo assim é preciso também andar bastante no topo para conhecer a região -,
mas caminhando, em grupo de trekking ao longo de oito dias.
Antes, no entanto, foram meses de preparo e um
roteiro bem disciplinado para dar conta da missão.
Fiz meu “dever-de-casa”,
treinando com disciplina: caminhadas em média de 10 quilômetros por dia, pelo
menos três vezes por semana e de preferência em terrenos acidentados e
carregando uma mochila com 5 quilos.
Acompanhe, a seguir, o serviço completo com dicas
mesmo para um turista iniciante no trekking como eu. Asseguro: até mesmo para
uma andarilha sem tanta experiência, é possível sim atingir a meta traçada. Não
é preciso escalar, basta ter coragem e seguir todas as indicações dos
experientes guias.
Especialistas- Aqui, fazemos
questão de fazer importante ressalva. Nada disso teria sido possível sem os
guias e toda a equipe envolvida no roteiro. Gente acostumada com grupos deste
tipo há 12 anos. “Nossa missão é esta. Dar todo o suporte para que o visitante
possa aproveitar cada minuto da beleza do Monte Roraima”, diz Joaquim Magno
Souza, dono da Roraima Adventures Turismo, agência especializada neste roteiro
e em outros tantos de aventura. Ele esteve pela primeira vez no Monte Roraima
em 1992, como turista e, desde então, a região “entrou na sua vida”. Conta à
Plurale que naquele ano, juntou-se a três amigos e se arriscaram a ir até um
lugar até então desconhecido. “Depois disso, todos os anos esse era meu
refúgio”, revela Magno, em uma narrativa que se cruza com a do personagem
“Comendador José Alfredo” de “Império” que volta sempre ao Monte para se
energizar. Desde 1992 até hoje, já foram 89 viagens ao topo da montanha.
“Certamente, devo ser o brasileiro que mais vezes esteve lá em cima”, calcula.
As semelhanças com a ficção, no entanto, acabam
aí. No Monte não há garimpo, grutas como as da novela, diamante cor-de-rosa ou
qualquer outra ligação com a trama do folhetim. É possível chegar de
helicóptero sim, mas não há o clima quase de “Indiana Jones” do século 21 como
a televisão mostra. No entanto, com a experiência de quem lá já esteve,
asseguro: a realidade é muito mais espetacular e incrível que o roteiro
televisivo.
Gostaríamos de agradecer imensamente também aos
guias que nos acompanharam, representados aqui na figura do experiente líder
dos guias, Everaldo Cunha Souza, o Borracha, e a todos da simpática equipe. Não
só garantiram segurança e atenção ao grupo, como ainda nos desvendaram as
lendas, os encantos e “tesouros” naturais da floresta.
Lendas - Lendas como a de
Makunaima – o Deus guardião dos montes para os índios Pemon – cuja imagem está
“gravada” nas pedras do paredão rochoso e “exige” de cada visitante um pedido
de licença para que possa adentrar na região com segurança e assim também
voltar.
Os índios que trabalham como carregadores e
também são guias contam que Makunaima nasceu das águas de um lago, após os
reflexos dourados do sol e prateados da lua se encontrarem. Mas houve um dia em
que a divindade se cortou e de cada gota de sangue nasceu um índio. Outra
informação importante que os guias nos passam: nada de gritar, já que Makunaina
mão gosta de barulho. Se isso acontecer, advertem, o Deus fica com raiva e
fecha o tempo imediatamente, derramando chuva pesada.
As lendas não param por aí. Contam também que o
Kukenan, o Monte vizinho ao Roraima, significa Vale dos Mortos e para os índios
Pemon também é conhecido como Matawi, ou a “montanha que mata gente”. Era ali
que aconteciam os sacrifícios, nos quais índios se jogavam do ponto mais alto
para acalmar Makunaima ou pagar promessas. Hoje, nenhum índio se atreve a
acompanhar as expedições por lá e o Governo da Venezuela praticamente proíbe
visitantes no lugar.
Pesquisamos muito antes de começar a jornada e
sabíamos um pouco do que iríamos encontrar por lá. Além da savana e da
floresta, lemos que ali havia espécies endêmicas, algumas que aparecem somente
em dois lugares no planeta: nessa região do Roraima (no topo inclusive) e na
África, reforçando a tese de que esses continentes a muitos e muitos anos atrás
eram unidos.
Grupo solidário - Éramos 19
visitantes no grupo de diferentes perfis, idades e nacionalidades: brasileiros
de diferentes regiões, dois franceses e três suíços. Para minha alegria, tive a
companhia de outras duas mulheres. No grupo, havia novatos na experiência e
também verdadeiros profissionais em trilhas, como o fotógrafo suíço Hans Peter
Gass Migliati, que dá aulas para grupos de turistas em caminhadas e escaladas
nos Alpes. Especializado em fotografia de natureza, ele estava encantando com o
que via. “Muito mais espetacular do que esperava”, disse. Hans estava
acompanhado de dois amigos, Roni Lopes que é enfermeiro e Paulo Zingg, todos
filhos de brasileiros, mas residentes na Suiça.
Grupos de amigos e parentes também são bem
comuns. Como dois irmãos e o marido de uma prima: Luiz Eduardo Hargreaves é
vegetariano, largou emprego em Brasília e está viajando há cerca de um ano, em
período sabático por diferentes pontos; o irmão, Paulo Hargreaves, e o primo,
Ricardo Alexandre Mendes Calvo, o Rick, formavam o trio do trekking. Outro
grupo bem animado e unido eram os “catarinas”, três amigos de Santa Catarina,
que gostam de se aventurar em escaladas, Dieter Lichtblau, Francisco Gruber e Laercio
Linzmeyer.
A caminhada também pode ser a dois, como para o
casal de veterinário e fisioterapeuta, Renato Valentin e Berenice Chianello ,
ambos maratonistas, mas com pouca experiência no trekking. Ou de solitários,
que logo se enturmam e viram grandes amigos, como Pedro Horigoshi,
acostumadíssimo ao trekking de longa distância ou Louc Durieux, um francês
super simpático que trabalha com turismo de aventura. Também alegraram o grupo
o solidário Luiz Tropardi, que me emprestou um de seus bastões de caminhada, o
que eu agradeço muito, e a corajosa Caroline Migault, uma jovem francesinha que
viaja o mundo de hoje de mochila nas costas completamente sozinha. Não posso
esquecer do Coelho, Vilmar e o Rogério, o trio divertido de Manaus.
Dicas- Mas como foi a caminhada?
Que cuidados tomar? Como suportar os desafios? Conto isso a seguir em uma
espécie de diário de viagem. Compartilho com os leitores em fotos especiais de
cenários muitas vezes beirando o surreal. O Tepui Roraima, também conhecido
pelos índios como a Mãe das Águas, nos inspira a tentar olhar a natureza de uma
forma diferente. Assim que olhamos as montanhas ao longe, com a chuva caindo em
cima delas, é difícil imaginar tudo que vamos encontrar pelo caminho.
A primeira dica para garantir uma boa caminhada é
tomar todo o cuidado com os pés. Passe sempre vaselina nos pés e use duas meias
para garantir pés secos e saudáveis. Uma só bolha e o serviço estará perdido.
Arrumar as malas, ou melhor, as mochilas, também foi um outro desafio.
Primeiro
organizar e comprar tudo o que recomendavam como essencial e depois tentar
colocar tudo e o mínimo de roupa possível (o que para uma mulher já é bem
difícil) dentro de duas mochilas. Sem, é claro, esquecer que eu estava indo
para fotografar, ou seja meu equipamento também tinha que ir. E não é leve. Por
mais minimalista que eu fosse nessa hora, seriam pelo menos 4 kg só de
equipamento. A tarefa estava complicada, mas não impossível. Como já estava
acertado que teria um carregador pessoal, para a minha mochila cargueira,
barraca e outros materiais, que não poderiam passar de 15kg, restava uma
mochila e um cinto de fotografia para o resto todo: equipamento fotográfico,
água, barrinhas de cereal, repelente, filtro solar, corta vento, capa de chuva,
óculos escuros, creme para os pés (pode parecer frescura, mas foi um dos itens
mais importantes da mochila).
A ajuda de especialistas é mesmo essencial. Nada
de se aventurar sozinhos por esta floresta. Há opções para todos os bolsos e
gostos. A Roraima Adventures Turismo, por exemplo, faz quatro saídas para o
Monte Roraima e tem calendário fechado até 2016. O dono, Joaquim Magno,
assegura que o acesso ao Monte Roraima é possível à maioria das pessoas, mas “é
preciso ter consciência de que a realidade da trilha é bastante cansativa,
anda-se em terrenos acidentados, um sobe-desce sem parar, e o desgaste físico é
extenuante.” Isso pudemos constatar em nossa jornada.
Ele completa: “Não é
necessário ter grande experiência, porém exige disposição e condicionamento
físico em perfeito estado. Nos extremos de idade foram um garoto de oito anos e
um senhor de 82 anos, sendo que pessoas acima do peso ou sedentárias podem
subir, desde que sejam conscientizadas das dificuldades. O nosso mais gordinho
foi um mineiro que tinha 165kg”, lembra.
Verdadeiro tesouro - Posso
assegurar que não chega a ser um trekking tão pesado e que, com a ajuda de
especialistas e um grupo solidário e experiente como o meu, é possível, sim,
cumprir a missão. Garanto ainda que todo esforço diário de cerca de sete horas
de caminhada – em clima adverso – mais do que compensa ao chegar no topo do
Monte e ver não só a imensidão, mas também cada detalhe da biodiversidade
local. Constatamos que fazer esta travessia não era apenas a questão de vencer
um desafio. Foi uma experiência de vida completamente diferente de tudo o que
já havia visto até então.
Que “Comendador” que nada. O Monte é nosso, de
todos nós. Tenho orgulho de dizer que o verdadeiro “diamante cor-de-rosa” –
diferente da trama da novela – pode ser encontrado por cada um dos visitantes
que respeitem a região, suas lendas e tradições. Sem levar ou interferir em
nada.
O “tesouro” – a natureza preservada- está e deve ficar na montanha.
Fonte: 44
de Plurale em revista
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