As caras da injustiça ambiental.
A injustiça ambiental tem cara. A de Antônio
Filho, morador do bairro de Piquiá de Baixo, em Açailândia, Maranhão, destruído
a partir da instalação de indústrias siderúrgicas ao redor das casas da
comunidade. Ou a de Patrícia Generoso, de Conceição do Mato Dentro, em Minas
Gerais, por onde passa um mineroduto de 525 quilômetros. Ou as de tantos outros
atingidos por projetos que opõem desenvolvimento, justiça ambiental e saúde
(ver relatos na pág. 14). Essas caras foram apresentadas no 2º Simpósio
Brasileiro de Saúde e Ambiente (Sibsa), organizado pela Associação Brasileira
de Saúde Coletiva (Abrasco), em outubro, em Belo Horizonte. O encontro teve
como marca a articulação da academia com os movimentos sociais, reconhecendo os
envolvidos em conflitos territoriais não como objetos de pesquisa, mas como
sujeitos de resistência.
Da abertura do simpósio à
aprovação da Carta de Belo Horizonte (ver box na pág. 17), a interação entre
ciência e saber popular foi destaque. O presidente do 2º Sibsa, Hermano Castro,
diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz),
ressaltou que essa articulação é fundamental para se ter “um só corpo na defesa
intransigente da vida, especialmente em um país em que o capital avança sobre a
natureza, os bens naturais são precificados e retirados das populações e a
sustentabilidade dos ecossistemas sucumbe”.
Inovação e necessidade
Inovação e necessidade
Os movimentos sociais não
participaram do evento somente como convidados falando em mesas-redondas, mas
também na organização e na comissão científica. “É uma inovação, um sonho e uma
necessidade para entendermos integralmente o processo de desenvolvimento social
com as populações que são sujeitos dele”, ressaltou Hermano.
O diretor da Ensp apontou as implicações do
atual modelo para a saúde: interfere na determinação saúde/doença, levando a
adoecimento e morte, especialmente de grupos mais vulneráveis — indígenas,
afrodescendentes, comunidades tradicionais, camponeses e camponesas,
trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, moradores e moradoras das zonas
de sacrifício no campo, nas florestas, nas águas e nas cidades.
O presidente da Fiocruz, Paulo
Gadelha, reforçou que saúde e ambiente são temas simbióticos. “Não se pode
pensar saúde e ambiente como questões desconectadas, pois ambos sofrem as
consequências perversas do modelo de desenvolvimento e do processo de
organização da produção e do trabalho”, disse.
Daí surge a necessidade de se
colocar a saúde no centro do modelo, tarefa que a Fiocruz tem levado à frente,
como ele apontou, especialmente nos debates da Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20 (Radis 118 e 121), e na formulação
dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Radis 113, 121, 127 e 147). “Os
indicadores da saúde qualificam a medição de um desenvolvimento sustentável e
trazem no seu bojo as noções de direito e de políticas sociais”.
O grito da justiça ambiental
O grito da justiça ambiental
Sobre a desterritorialização
gerada pelos casos de injustiça ambiental, falou o filósofo francês Jean Pierre
Leroy, integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e assessor da
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), na
conferência Direitos, justiça ambiental e políticas públicas. Nas palavras
dele, justiça ambiental deve ser encarada mais do que como uma definição conceitual:
“É um grito”.
Trata-se da afirmação de algo que
interpela toda a sociedade: não se pode pensar um futuro sem que o meio
ambiente seja parte da vida. “É um grito, uma luta travada para que ninguém se
encaixe na condição de atingido, partindo dos que não aceitam ser eliminados e
silenciados pelo injusto modelo de desenvolvimento do capitalismo. É um clamor
daqueles que sabem que seus modos de viver e de se relacionar com o ambiente
não são parte do problema, mas da solução”.
Jean Pierre tratou os territórios
como espaços das tradições, onde se pode encontrar esperança para um futuro
sustentável, dada a ligação profunda dos povos com a natureza. As ameaças são a
agricultura industrial, os latifúndios monocultores e os grandes
empreendimentos, que avançam pelo país, gerando desterritorialização e
desapropriação, com respaldo governamental, em nome do crescimento econômico.
Na reflexão do filósofo, a
desterritorialização não é apenas física, mas também simbólica. “Quando povos
são expulsos de seus territórios, eles perdem mais do que a posse da terra;
perdem o que têm de mais profundo: suas raízes”, disse, indicando como exemplo
a destruição de uma cachoeira sagrada para os Munduruku com vistas a se
construir uma barragem no rio Tapajós.
“Quando se fala em
desterritorialização de povos tradicionais, alguns dizem: ‘são apenas dez
famílias atingidas aqui e dez ali; o que representam diante do tamanho das
nossas cidades?’ Porém, ao cortar raízes, corta-se junto a possibilidade de
continuar um projeto de vida de integração profunda com a natureza”,
argumentou. Essas vidas perdem o sentido: passam a ser “vidas em suspenso” ou
“vidas não reconhecidas”, na definição do pesquisador.
‘Neoextrativismo’
‘Neoextrativismo’
Jean Pierre lamentou que o
extrativismo seja a sina do Brasil. Ele classificou o período atual de
neoextrativista, traduzido como o mesmo de outrora com a diferença de ter sido
apropriado pelo Estado com o objetivo de servir ao capital. “Um Congresso
dominado pelo agronegócio quer concentrar o poder de decidir onde indígenas
podem ficar”, observou.
O filósofo fez ressalvas: essas
práticas não são de um governo ou de outro, e sim práticas de Estado, inseridas
em um contexto internacional. “O capital financeiro não conhece fronteiras e
não está submetido a nenhum tipo de controle democrático”, avaliou, defendendo
um projeto com saúde ambiental em dimensão global.
O desafio, indicou, é que esse
projeto seja assumido pelos cidadãos das cidades, que muitas vezes perdem de
vista que suas vidas têm ligação com o que acontece no campo. Um projeto não
dos bens comuns, mas dos comuns, que escapa das noções de lucro, bens e mercado
e prioriza a sintonia da população com a natureza.O que emperra a transformação
é o que o médico equatoriano Jaime Breilh chamou de “economia da morte”, na
conferência A função social da ciência, ecologia de saberes e outras
experiências de produção compartilhada de conhecimentos. A economia da morte
baseia-se, segundo ele, na convergência de capitais para fomentar o uso
produtivista das tecnologias, na desapropriação e nos processos de pilhagem, e
no que a jornalista canadense Naomi Klein classificou como shock: o
aproveitamento de crises e eventos adversos, como o furacão Katrina, para fazer
reformas impopulares.
Para além dos agrotóxicos e do
uso insalubre da nanotecnologia, Breilh indicou que novas tecnologias de
comunicação e informação geram novas toxicidades: “A comunicação contribui para
modificar o espaço social onde se operam os impactos do sistema, com toxicidade
cibernética, que leva a conflitos sobre identidade, subjetividade, privacidade,
sociabilidade e desenvolvimento neurocomportamental”. Assim, defendeu que as
iniquidades não se dão somente pelos modos de produção, mas por uma organização
material da vida calcada na acumulação, que gera solidão para perpetuar o
consumismo.
Construção de resistências
Construção de resistências
Pesquisador do Centro de Estudos
da Saúde do Trabalhador (Cesteh), da Ensp, e coordenador do Mapa da Injustiça
Ambiental, Marcelo Firpo explicou que os conflitos ambientais são expressão da
disputa por territórios e diferentes cosmovisões de economia, trabalho,
natureza, vida e saúde. Eles envolvem comunidades atingidas, movimentos
sociais, organizações solidárias, os produtores dessas violências e o Estado —
que, segundo ele, funciona como elemento chave na geração das injustiças.
Relatora da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais (Dhesca), Cristiane Faustino apontou que o poder público
opera criando consenso social da importância de projetos de desenvolvimento.
“Os grandes empreendimentos
demandam territórios, biodiversidade e água, mas não ocupam territórios vazios.
Os territórios são habitados por pessoas de carne, osso e sentimento. E a vida
ali instituída tem relação com o que no lugar existe”, observou. O mais
violento, na avaliação dela, é justamente o poder de decidir com quem fica a
posse de um território, por alguns poucos sujeitos, com maior poder político e
econômico, acostumados a ditar as regras do jogo. “Os conflitos não estão
descolados da estrutura patriarcal, racista, adultocêntrica, sexista,
heteronormativa”, enumerou.
Firpo reforçou que os conflitos
têm relação direta com o modelo de desenvolvimento hegemônico, baseado em
poderio de transnacionais, mercantilização da vida e da natureza, produtivismo
e consumismo, o que alguns chamam de crescimentismo. Ele apontou, no entanto,
um aspecto positivo: a construção de resistências e alternativas. “Os conflitos
ambientais têm potencial dinâmico, revelador, emancipatório, na medida em que
permitem a emergência e a articulação para o enfrentamento desse modelo
hegemônico”. Cristiane fez importante ressalva: “Mesmo quando não há
resistência explícita à desterritorialização, há conflito. Pode ficar no nível
do não dito, mas há conflito”.
Autor: Bruno Dominguez
Revista Radis número 148
O Programa RADIS de Comunicação e Saúde é um
programa nacional e permanente de jornalismo crítico e independente em saúde
pública, iniciado em 1982, na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
(Ensp/Fiocruz). Os objetivos do projeto original estavam nas iniciais do
próprio nome: reunião, análise e difusão de informação sobre saúde, que inovava
também por adotar um conceito ampliado de saúde, incluindo qualidade e
condições de vida.
Fonte: EcoDebate
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