Os assassinatos de Paris: uma
armadilha mortal.
por
Roberto Savio*
Marcha histórica pela liberdade reúne mais de 1
milhão de pessoas em Paris. Foto: France Diplomatie.
São Salvador, Bahamas, janeiro/2015 – É triste ver
como um continente que foi berço de uma civilização marcha cegamente para uma
armadilha: a de uma guerra santa contra o Islã. Para isso bastaram três
terroristas muçulmanos e um ataque assassino ao semanário parisiense Charlie
Hebdo.
É preciso sair da compreensível onda do “todos
somos Charlie Hebdo” para examinar os fatos e entender que estamos em
mãos de uns poucos extremistas, nos colocando em seu próprio nível.
A radicalização do conflito entre o Ocidente e o
Islã terá consequências terríveis.
O Islã é a segunda religião do mundo, com 1,6
bilhão de pessoas. Os muçulmanos são maioria em 49 países do mundo e constituem
23% da humanidade.
Nesse quadro, os árabes são 317 milhões dos 1,6
bilhão. Quase dois terços dos muçulmanos (62%) vivem na região Ásia-Pacífico.
Estudos do Centro de Pesquisa Pew sobre o mundo
muçulmano indicam que os muçulmanos do sul da Ásia são mais radicais quanto à
observância e pontos de vista religiosos.
No sul da Ásia, 81% estão de acordo com o castigo
corporal severo para os criminosos, contra 57% no Oriente Médio e Norte da
África. A favor da execução dos que renunciam ao Islã, estão 76% no Sul da Ásia
contra 56% no Oriente Médio.
Portanto, é claro que a história do Oriente Médio
explica a especificidade dos árabes no conflito com o Ocidente.
E aqui há quatro razões principais.
Primeiro: todos os países árabes são artificiais.
Em maio de 1916, François Georges-Picot, pela França, e Mark Sykes, pela
Grã-Bretanha, acordaram a divisão do Império Otomano ao final da Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), mediante um tratado secreto que contou com apoio do
Império Russo e do reino da Itália.
Assim, os países árabes atuais nasceram como
resultado de uma divisão entre França e Grã-Bretanha, sem considerar as
realidades étnicas, religiosas ou históricas. Alguns desses países, como o
Egito, tinham uma identidade histórica, enquanto isso não acontecia com os
outros, como Arábia Saudita, Jordânia, Iraque, ou mesmo os Emirados Árabes
Unidos.
Vale a pena recordar que o problema dos 30 milhões
de curdos divididos entre quatro países também foi criado pelas potências
europeias.
Segundo: as potências coloniais instalaram reis e
xeques nos países que criaram. Para dirigir estes Estados artificiais exigiu-se
mão de ferro. Portanto, desde o princípio, houve uma total falta de
participação da sociedade em um sistema político fora de sintonia com o
processo democrático que estava em curso na Europa.
Com a benção europeia, estes países ficaram
congelados na época feudal.
Terceiro: as potências europeias nunca investiram
no desenvolvimento industrial ou em um verdadeiro desenvolvimento. A exploração
do petróleo estava nas mãos de empresas estrangeiras e só depois da Segunda
Guerra Mundial (1939-1945) e o consequente processo de descolonização, o
petróleo ficou em mãos locais.
Quando as potências coloniais se retiraram, os
países árabes não tinham um sistema político, infraestruturas, nem gestão local
modernas. Quando a Itália abandonou a Líbia (sem saber que tinha petróleo),
unicamente três líbios tinham formação universitária.
Quarto: nos Estados que não proporcionaram educação
e saúde aos seus cidadãos, a piedade muçulmana assumiu a tarefa de dar aquilo
que o Estado negava. Foram criadas grandes redes de escolas religiosas e
hospitais.
Quando as eleições foram finalmente autorizadas,
estas se converteram na base da legitimidade e no voto para os partidos
muçulmanos. Tomando o exemplo de dois países importantes, Argélia e Egito, onde
os partidos islâmicos ganharam, os golpes militares com a conivência do
Ocidente passaram a ser o único recurso para detê-los.
Esta síntese de tantas décadas em poucas linhas é,
naturalmente, superficial e omite muitas outras questões. Mas este processo
histórico abreviado é útil para a compreensão de como a ira e a frustração se
espalham agora por todo o Oriente Médio e a forma que assume a atração para o
movimento extremista Estado Islâmico (EI) nos setores pobres.
Não devemos esquecer que este cenário histórico,
embora remoto para os jovens, se mantém vivo devido à dominação israelense do
povo palestino. O apoio cego do Ocidente a Israel, especialmente dos Estados
Unidos, é visto pelos árabes como uma humilhação permanente e a expansão dos
assentamentos continua eliminando a possibilidade de um Estado palestino
viável.
O bombardeio de Gaza em julho e agosto, que
produziu um débil protesto do Ocidente e nenhuma ação real, é a prova clara
para o mundo árabe de que a intenção é mantê-los submetidos, aliando-se apenas
com corruptos e legitimando governos indesejáveis.
A intervenção ocidental contínua no Líbano, Iraque
e Síria, e aviões teledirigidos que bombardeiam por toda parte são vistos pelos
1,6 bilhão de muçulmanos como um Ocidente historicamente comprometido em manter
o Islã curvado, como observa em sua conclusão o informe do Centro Pew.
Deve-se recordar que o Islã tem várias práticas
internas, e entre elas a divisão entre sunitas e xiitas é a maior. Enquanto
entre os árabes pelo menos 40% dos sunitas não reconhecem um xiita como outro
muçulmano, fora da zona árabe isto tende a desaparecer.
Na Indonésia, apenas 26% se identificam como
sunitas, enquanto 56% se dizem “apenas muçulmano”. No mundo árabe, somente no
Iraque e Líbano, onde as duas comunidades viviam lado a lado, a grande maioria
dos sunitas reconhecia os xiitas como outro muçulmano.
O fato de os xiitas, que representam apenas 13% dos
muçulmanos, serem a imensa maioria no Irã, enquanto a Arábia Saudita lidera a
corrente sunita, explica o conflito interno em curso na região, convulsionada
pelas duas lideranças.
A Al Qaeda na Mesopotâmia, então encabeçada pelo
jordaniano Abu Musab al-Zarqawi (1966-2006), impôs com êxito uma política de
polarização no Iraque, atacando os xiitas, que causou uma limpeza étnica de um
milhão de sunitas em Bagdá.
Agora o EI, o califado radical que igual ao
Ocidente está desafiando todo o mundo árabe, atraiu muitos sunitas do Iraque,
que haviam sofrido represálias por parte dos xiitas.
O fato é que centenas de árabes morrem
cotidianamente devido ao conflito interno.
Os terroristas que atacaram o Ocidente, em Ottawa,
Londres ou Paris, têm o mesmo perfil: um jovem nascido no país, que não provém
de países árabes, que não era religioso durante sua adolescência, que de alguma
maneira é um solitário errante, e que não encontra trabalho.
Em quase todos os casos esse jovem tinha alguma
conta a acertar com a justiça. Só nos últimos anos se converteu em um
praticante que aceitou os chamamentos do EI para matar infiéis. Em sua opinião,
com isto encontraria uma justificativa para sua vida e se converteria em um
mártir em outro mundo.
A reação a tudo isto é uma nova campanha no
Ocidente contra o Islã. O último número da revista The New Yorker
publicou um duro artigo que define o Islã não como uma religião, mas como uma
ideologia.
Na Itália, a Liga Norte, o partido direitista
anti-imigrantes, condenou publicamente o papa Francisco por convidar o Islã
para um diálogo, e o comentarista conservador Giuliano Ferrara disse na
televisão que “nos encontramos em uma guerra santa”.
A reação global europeia e norte-americana é de
denunciar os assassinatos de Paris como o resultado de uma “ideologia mortal”,
como a definiu o presidente da França, François Hollande.
Estudos realizados em toda a Europa indicam que a
imensa maioria dos imigrantes se integrou com êxito na economia. Informes da
Organização das Nações Unidas (ONU) também demonstram que a Europa, com sua
queda demográfica, precisa de uma imigração de pelo menos 20 milhões de pessoas
até 2050, se deseja que sobreviva seu modelo de bem-estar social e seja
competitiva no mundo.
Porém, o que estamos conseguindo? Os partidos de direita
xenófoba condicionam na Europa os governos de Dinamarca, Grã-Bretanha, Holanda
e Suécia, e parecem a ponto de ganhar as próximas eleições na França.
Naturalmente, o que aconteceu em Paris foi um crime
atroz e a livre expressão de opiniões é essencial para a democracia, mas
deve-se acrescentar que pouquíssimos alguma vez leram a Charlie Hebdo e
conhecem seu nível de provocação.
Sobretudo porque, como Tariq Ramadan disse no The
Guardian, no dia 10 deste mês, em 2008 a Hebdo demitiu um desenhista
que fez uma piada sobre um vínculo judeu do filho do presidente Sarkozy.
A Charlie Hebdo é uma voz em defesa da
superioridade e da supremacia cultural da França no mundo. Contava com um
pequeno número de leitores, que conseguiu vendendo provocações. Exatamente o
contrário da visão de um mundo baseado no respeito e na cooperação entre as
diferentes culturas e religiões.
Mas agora todos somos Charlie, como todo o mundo
está dizendo. Entretanto, radicalizar o choque entre as duas maiores religiões
do mundo não é um assunto menor.
Devemos lutar contra o terrorismo, seja este
muçulmano ou não. É preciso recordar que Anders Behring Breivik, um norueguês
que queria manter seu país a salvo da penetração muçulmana, assassinou 91 de
seus concidadãos em 2011.
No entanto, estamos caindo em uma armadilha mortal,
ao fazermos exatamente o que deseja o islamismo radical. Declarar uma guerra
santa contra o Islã equivaleria a empurrar a imensa maioria dos muçulmanos para
a radicalização.
O fato de os partidos europeus de extrema direita
colherem os benefícios desta radicalização é muito bem-vindo pelos muçulmanos
radicais. Eles sonham com uma luta mundial para impor o Islã como a única
religião. E não qualquer Islã, mas a interpretação fundamentalista do sunismo.
Em lugar de adotar uma estratégia de isolamento,
estamos nos comprometendo com uma política de enfrentamento. As perdas de vidas
no 11 de setembro de 2001 em Nova York foram minúsculas em comparação com o que
está acontecendo no mundo árabe, onde em um só país, a Síria, 50 mil pessoas
perderam a vida em 2014.
Como podemos cair cegamente em uma armadilha, sem
nos darmos conta de que estamos participando de um terrível conflito em escala
mundial?
* Roberto Savio é fundador da agência IPS e
editor da Newsletter Other News.
Fonte: ENVOLVERDE
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