Abertura de poços fora de normas
técnicas não resolve problema do desabastecimento. Entrevista com Reginaldo
Bertolo.
“Se houver uma superexplotação de aquíferos em
larga escala, numa vazão total dos poços maior que a quantidade de água
infiltrada nos aquíferos pela chuva, haverá um abaixamento dos reservatórios
subterrâneos”, alerta o pesquisador.
Foto: Águas Americanas
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A crise de abastecimento de água vivida pela
cidade de São Paulo trouxe à tona, mais uma vez, o que parecia ser uma grande
ideia. Ora, se o sistema público não está “dando conta” de entregar água em
casa, no condomínio ou na empresa, por que eu mesmo não assumo isso? É mais ou
menos nessa lógica que operamos quando colocamos abertura de poços artesianos
como alternativa para resolver esse desabastecimento.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line,
o diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas da Universidade de São
Paulo – Cepas USP, Reginaldo Bertolo, freia essa lógica. Ele
deixa claro que abrir um poço artesiano não resolve o problema de
abastecimento. Pelo contrário, pode colocar em risco reservas subterrâneas de
água, ameaçando até mesmo rio e lagos em épocas de menos chuva. Além disso, é
necessário que se adotem critérios técnicos para assegurar a potabilidade da
água. “A Associação Brasileira de Águas Subterrâneas – ABAS estima que
apenas 10% dos poços construídos sejam outorgados no Brasil. Em São Paulo esta
taxa é maior, estimada em cerca de 30%”, completa.
O problema da abertura de poços se evidenciou em
São Paulo, mas é algo que ocorre em todo o Brasil. Por ser mais barato e menos
burocrático, a maioria das pessoas opta por contratar empresas que não seguem o
que determina a legislação. Temos, assim, todo o combustível para o descontrole
do sistema. “É impossível realizar qualquer trabalho de planejamento do uso
racional dos recursos hídricos subterrâneos se não soubermos onde estão
os poços e quanto eles extraem de água dos aquíferos. Áreas com grande
densidade de poços representam áreas de superexplotação dos aquíferos”,
justifica Bertolo. E, nesse contexto, o poder público também tem de ter
seu papel na ação de regulamentar e fiscalizar essa corrida da água.
Reginaldo Bertolo é geólogo graduado pela Universidade de São Paulo
– USP, com mestrado e doutorado em Geociências pela mesma instituição. Além de
atuar como diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas – CEPAS, também
é professor doutor do Instituto de Geociências da USP. Seus trabalhos se
concentram em geoquímica de águas subterrâneas, poluição de aquíferos e gestão
de qualidade de águas subterrâneas.
Confira a entrevista.
Foto: Visão Regional
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IHU On-Line – Qual tem sido a causa da abertura de
poços irregulares no estado de São Paulo? É possível estimar qual o percentual
de poços abertos por conta da última crise hídrica?
Reginaldo Bertolo - A abertura de poços irregulares
não acontece apenas no Estado de São Paulo, mas em todo o Brasil e de uma forma
mais crítica que em São Paulo. A Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
– ABAS estima que apenas 10% dos poços construídos sejam outorgados no
Brasil. Em São Paulo esta taxa é maior, estimada em cerca de 30%.
A causa principal é por ser bem mais barato.
Demanda menos tempo para abertura e é menos burocrático fazer um poço não
registrado. Além disso, o usuário não vê nenhuma vantagem em registrar o poço,
pois não vê nenhuma contrapartida em serviços por parte do Estado. O usuário
também nem sabe que tipo de serviço seria esse, porque não é prestado pelo
Estado. O serviço do Estado seria o disciplinamento no uso da água subterrânea
para garantir em longo prazo a oferta de água para os próprios usuários em quantidade
e qualidade adequadas.
É bastante difícil a tarefa de estimar a quantidade
de poços irregulares abertos por conta da crise hídrica. Mas
percebe-se que o número deve ser muito expressivo. As empresas de perfuração
estão vivendo uma demanda pela construção de novos poços de 100 a 200% maior
que em períodos normais.
IHU On-Line – Qual a implicação da abertura de
poços irregulares para as águas subterrâneas?
Reginaldo Bertolo – É impossível realizar qualquer
trabalho de planejamento do uso racional dos recursos hídricos subterrâneos se
não soubermos onde estão os poços e quanto eles extraem de água dos
aquíferos. Áreas com grande densidade de poços representam áreas de superexplotação
dos aquíferos. E é impossível evitar o surgimento destas áreas se não se
sabe quantos poços lá existem. Além disso, os poços irregulares frequentemente
são construídos fora das normas técnicas (por isso são mais baratos), podendo
extrair água de reservatórios rasos e de menor qualidade, aumentando a
probabilidade de a água não atender a critérios de potabilidade.
Isso eleva a
probabilidade de riscos à saúde dos usuários dos poços.
IHU On-Line – Como se dá a gestão de qualidade de
águas subterrâneas no país? E o que ainda precisa ser feito acerca desse
quesito?
Reginaldo Bertolo - Normalmente, para fins de abastecimento
público, as concessionárias são obrigadas por lei (Portaria 2.914 do
Ministério da Saúde) a realizar análises químicas de potabilidade da água de
abastecimento e tomar medidas para corrigir os problemas de potabilidade que
podem acontecer. Em paralelo, as secretarias de meio ambiente estaduais são
também obrigadas a fazer a gestão de áreas contaminadas de seus estados, o que
favorece a identificação de áreas com maior probabilidade de ocorrência de
aquíferos contaminados. No Estado de São Paulo, a Companhia Ambiental do
Estado de São Paulo – CETESB realiza um trabalho sistemático de
acompanhamento da qualidade da água de uma rede de cerca de 300 poços. O
Serviço Geológico do Brasil está iniciando um trabalho semelhante em nível
federal. Mas esta rede é pequena e deve ser ampliada.
“Os poços irregulares
frequentemente são construídos fora das normas técnicas, podendo extrair água
de reservatórios rasos e de menor qualidade, aumentando a probabilidade de a
água não atender a critérios de potabilidade”
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IHU On-Line – A legislação nacional determina que
um poço artesiano só seja perfurado mediante autorização do órgão que faz a
gestão de recursos hídricos. Porém, em cada estado há órgãos diferentes fazendo
essa gestão, e em muitos estados a regulamentação da legislação é diferente.
Essa confusão em torno da legislação contribui para a abertura de poços
irregulares? O que seria uma legislação ideal?
Reginaldo Bertolo - A outorga de uso de águas
subterrâneas é sempre função de órgãos de gestão estaduais. A outorga do
uso de águas superficiais depende da extensão da bacia: se ela estiver toda
dentro de um estado, então a outorga é estadual. Se o rio é dividido por
diferentes estados, então a Agência Nacional das Águas – ANA é o órgão
de outorga. Não vejo que isso possa contribuir para a abertura de poços
irregulares.
IHU On-Line – Desde a década de 1990, o Ministério
Público do Rio Grande do Sul vem trabalhando na elaboração de formas de proibir
a perfuração de poços em áreas que são atendidas por redes públicas. O estado é
o único que veda esse uso, autorizando apenas para fins de agricultura,
floriculturas e indústrias. Essa é solução para evitar a perfuração
indiscriminada de poços artesianos?
Reginaldo Bertolo - Não. Esta solução, da forma como
está desenhada, visa atender a interesses comerciais de empresas de
abastecimento público. Elas veem a opção de uso da água subterrânea como
um concorrente indigesto, pois o custo da água através de poços profundos
(mesmo legalizados) é sempre mais barata que a água vendida pelas
concessionárias.
IHU On-Line – A Associação Brasileira de Águas
Subterrâneas estima que cerca de 80% dos poços da região metropolitana de São
Paulo são irregulares. Por que essa fiscalização não consegue ser feita?
Reginaldo Bertolo - Falta de estrutura do Estado,
gerada por falta de reconhecimento da importância do recurso hídrico
subterrâneo por parte dos governantes.
IHU On-Line – O poder público também é acusado de
não fiscalizar a abertura de poços. Mas uma saída alternativa não seria o
investimento em informação e ações de educação ambiental mostrando que o uso da
água é bem comum e as fontes não devem ser “ocupadas” com ligações
particulares?
Reginaldo Bertolo - Sim. Mas isso só será feito
quando houver reconhecimento da importância do recurso.
IHU On-Line – Levando em consideração que se
perfuram poços artesianos de forma arbitrária e sem o respaldo de autoridades
que gerem os recursos hídricos, corre-se o risco de extrair água de má
qualidade? Quais os efeitos na saúde?
Reginaldo Bertolo - Sim. Como disse acima, poços
ilegais em geral são mais baratos. São mais baratos porque são feitos fora
das normas técnicas que de alguma forma ajudam a evitar a exploração de águas
de reservatórios aquíferos muito rasos. Estes reservatórios rasos
frequentemente apresentam água com qualidade bacteriológica inadequada, além de
potenciais problemas com substâncias químicas dissolvidas, como o nitrato. Em áreas
urbanas, soma-se a isso a possibilidade de haver contaminantes derivados
de petróleo e solventes industriais, caso o usuário tenha um poço
muito próximo de postos de combustíveis ou indústrias. Os efeitos à saúde podem
ser os mais variados. Desde uma dor de barriga até casos mais complicados de
intoxicação, ou mesmo câncer no caso de exposição crônica em longo prazo.
“Uma superexplotação de
aquíferos em larga escala poderá provocar a diminuição das vazões dos rios,
ou mesmo o secamento de lagos. A água subterrânea tem, portanto, uma grande
importância do ponto de vista ecológico, pois ela garante as vazões dos rios
durante os períodos de estiagem”
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IHU On-Line – Qual é o impacto que outros
mananciais, como rios e lagos, podem sofrer com a abertura de poços artesianos?
Reginaldo Bertolo - Se houver uma superexplotação
de aquíferos em larga escala, numa vazão total dos poços maior que a
quantidade de água infiltrada nos aquíferos pela chuva, haverá um abaixamento
dos reservatórios subterrâneos. Isso poderá provocar a diminuição das vazões
dos rios, ou mesmo o secamento de lagos. A água subterrânea tem, portanto, uma
grande importância do ponto de vista ecológico, pois ela garante as vazões dos
rios durante os períodos de estiagem. Mais um motivo para fazermos a gestão
adequada dos aquíferos.
Por João Vitor Santos
Fonte: IHU On-line
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