Pesquisadores discutem
perspectivas de atuação científicas e políticas no contexto de conflitos
territoriais.
No
Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente, os pesquisadores Jaime Breilh e Jean
Pierre Leroy discutiram perspectivas de atuação científicas e políticas no
contexto de conflitos territoriais.
“Como construir um mundo emancipado se a acumulação
de capital adentrou o espaço da educação e da ciência, domesticando as
universidades e centros de pesquisa?”. A pergunta é de Jaime Breilh, professor
da Universidade Andina Simón Bolívar (UASB), no Equador. Médico, PhD em
Epidemiologia e mestre em Medicina Social, ele proferiu a conferência ‘A função
social da ciência, a ecologia de saberes e outras experiências de produção
compartilhada de conhecimentos’ no 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente,
promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva entre 19 e 22 de outubro
em Belo Horizonte. Reivindicando a experiência do Simpósio, que propôs a
integração entre academia e movimentos sociais para a produção de conhecimento
e intervenção nos territórios marcados por conflitos socioambientais, o
pesquisador analisou a situação da produção de conhecimento atualmente,
destacando um cenário marcado pela “ciência do produtivismo, da conexão direta
e tecnocrática com a produção” e por um “neofuncionalismo das universidades,
operando para o grande crescimento da aceleração da acumulação de capital”.
Breilh lembrou que centros de pesquisa e ensino
antes reconhecidos por seu espírito crítico estão, hoje, capturados pelas redes
de financiamento privado e pelas grandes empresas que os convertem em centros
de produção de funcionalidades aos seus interesses de mercado, comprometendo a
função social e coletiva do conhecimento ali elaborado. Pautada pelo mercado e
interesses dos financiadores privados, a ciência se distancia cada vez mais dos
conhecimentos e saberes populares, assim como das necessidades das comunidades
afetadas pelo modelo de desenvolvimento hegemônico. “Está claro que com a
atuação dos monopólios industriais há contaminações, ampliação de toxicidades,
perda de biomassa. E as universidades, capturadas, estão alheias a isso. A
espoliação dos recursos naturais está na ordem do dia e não se toma
conhecimento do fenômeno da apropriação da terra do mundo pelas corporações”,
sinalizou o professor, exemplificando com o caso de países africanos que
tiveram suas terras de plantio compradas por grandes corporações do
agronegócio, impactando populações locais e seus modos de vida. “Em todo
planeta, se está comprando a melhor terra do mundo, e também fontes de água. Os
países que estão no coração da nova epidemia de ebola, como a Libéria, Guiné,
Serra Leoa, são justamente os centros maiores dessa problemática”, disse. E
completou: “A Libéria, por exemplo, foi adquirida por uma grande companhia que
converteu territórios a preços baixíssimos e transformou áreas de plantio de
alimentos em lavouras de soja transgênica. Temos ainda o exemplo da Etiópia, que
se converteu no maior produtor de quinoa [planta nativa da região dos Andes, na
América do Sul] do mundo. A quinoa andina, indígena, está convertida em
mercadoria no chamado ‘milagre etíope’, que se fez expropriando terras de
pequenas comunidades e pagando cerca de cinco a 20 euros por hectare de terra
ao ano”, contou, lamentando a ausência da discussão sobre processos como este e
em conjunto com as populações atingidas nas universidades e centro de pesquisa
do mundo.
A crítica ao atual modelo de produção de
conhecimento foi compartilhada por Jean Pierre Leroy, da Rede Brasileira de
Justiça Ambiental (RBJA), que proferiu a conferência ‘Direitos, Justiça
ambiental e políticas públicas’, de abertura do 2º SIBSA. Francês radicado no
Brasil, filósofo e mestre em Educação, Jean Pierre foi coordenador do Programa
de Pesquisa sobre Campesinato em Áreas de Fronteira e assessor da Comissão
Pastoral da Terra, tendo participado ativamente das lutas pela Reforma Agrária
e em defesa da agroecologia no país. Partindo das formulações do sociólogo
Pierre Bourdieu, ele apontou que o modelo de unificação e universalização do
conhecimento é acompanhado pela submissão de outras formas de saber, criando
assim um monopólio na produção de ciência. “É uma forma de universalidade que
cria uma nobreza de poder e de conhecimento. O que o SIBSA tem de original é
experimentar um encontro de conhecimentos e saberes, buscando a universalidade
a partir do diverso e do múltiplo, sem submissão”, defendeu.
Conhecer para transformar: ‘economia da morte’ e
conflitos territoriais hoje
Analisando as situações de conflitos territoriais
para pensar que tipo de políticas públicas o atual cenário exige, Jean Pierre
apontou a necessidade de ampliação da noção de território que hoje parametra a
legislação em defesa dos povos tradicionais: “O território, aos poucos, vai
sendo redefinido pelo capital para sua realização. E a noção contida das leis
que definem o território para povos tradicionais é insuficiente diante da força
do conceito para esses povos. O território precisa ser entendido como luta,
resistência, organização de formas de viver e de memórias”, disse. Ele destacou
que as lutas territoriais são o que muitas vezes dão sentido e identidade às
comunidades atingidas pelo desenvolvimento, atravessando gerações, e que isso
precisa ser incorporado na produção de conhecimento em saúde e ambiente para
formulação de políticas públicas consistentes.
Tratando do papel do Estado, apontou sua atuação em
defesa dos interesses do capital e a concepção de crescimento que, juntas,
produzem um modelo de desenvolvimento excludente e violento. “É a lógica do
crescimento a qualquer custo, num contexto em que o capitalismo mundial se
encontra em fase de total internacionalização. Há poucas empresas e
conglomerados atuando em todo mundo, sob hegemonia do discurso econômico
capitalista monopolista. Nesse cenário, precisamos de um projeto de saúde e
ambiente para além do imediato, que sirva para o outro lado do mundo. Os
governos são dirigidos pelo capital mundial, e como fica a sociedade nisso?”,
questionou, apontando que a justiça ambiental é antes de tudo um “grito”: uma
luta para que nenhuma pessoa entre na condição de ‘atingido’ pelo
desenvolvimento. “Mas isso vai além: é um clamor para que se perceba que há
povos cujos modos de vida se associam ao meio ambiente, e que se negam a serem
vítimas desse processo. É a afirmação de que o modelo que está posto não é
viável e não tem futuro, e um alerta de que não há futuro sem que meio ambiente
seja parte de nossas vidas”, defendeu.
Jaime Breilh também destacou a importância das
experiências das comunidades tradicionais para a constituição de um modo de
vida pautado pela integração entre a humanidade a natureza, radicalmente
diferente do atualmente hegemônico. “O ser humano, sob a perspectiva atual, é
concebido como proprietário, e a natureza, como mercadoria”. A partir dessa
caracterização, Breilh defendeu uma visão emancipadora, a partir da crítica da
economia política, que compreenda natureza e ser humano como um só grande conjunto
de movimento. Ele exemplificou a importância dos saberes tradicionais com as
experiências dos indígenas, que estabelecem relações sustentáveis e não
destrutivas com a natureza. Apontando que vivemos um período marcado, desde os
anos 1980, pela aceleração de uma “economia da morte”, defendeu que entre
sociedade e natureza existe uma relação profunda, um metabolismo indissolúvel
que vem sendo ignorado pela perspectiva que separa a humanidade do mundo à sua
volta.
Ele apontou que esse metabolismo pode ser, de
acordo com a história de cada sociedade, um espaço que constitua um avanço do
bem-estar e da vida ou, então, uma engrenagem da economia da morte. “A
reprodução social atualmente hegemônica é obviamente a reprodução social do
sistema capitalista. E é claro que essa não é uma reprodução unilateralmente
definida pelo poder hegemônico. A relação se dá em lutas profundas com a
resistência social, com a capacidade do ser humano e instituições democráticas
e organizações populares de defenderem e avançarem em direção à vida enquanto a
hegemonia avança em direção à morte”, disse.
Como uma das expressões da aceleração da economia
da morte, o pesquisador discutiu a utilização das novas tecnologias de
informação e comunicação e seus impactos na modificação do espaço social.
Segundo ele, as transformações atuais levam não mais apenas às formas de
toxicidade físicas (das quais os agrotóxicos são o maior exemplo), mas também à
toxicidade cibernética. “Temos um espaço social – produzido historicamente,
como explicam David Harvey e Milton santos – ao qual não damos tanta
importância e que é fundamental na produção de saúde: o espaço cibernético.
Nele também se dão conflitos, também se constitui a luta por identidade e há
ali uma ruptura da subjetividade, da privacidade, da sociabilidade e um
determinado desenvolvimento comportamental”, avaliou, destacando que não se
trata de negar as possibilidades da tecnologia.
“Não estou contra a tecnologia,
sou um profundo usuário. Mas não vou perder a capacidade de observar o que está
acontecendo com o condicionamento mental da sociabilidade. O grande movimento
da internet é em direção à acumulação e circulação de capital, sob formas de
subsunção do trabalho e do consumo e reprodução de formas políticas e
culturais. Há, por exemplo, formas de exploração invisíveis do trabalho. Onde
está o operário do Facebook? Somos nós! Nossas fotos, nosso amor, nosso
carinho, nossa sexualidade, nossa vida que se mostra e se inclui na formação de
uma grande base de dados para o lucro”, apontou, lembrando que isso também está
ligado a novo comportamento de patologias. “Não me refiro apenas ao
ciberbullying e suicídio de adolescentes a partir [de eventos acontecidos na]
da internet, mas também a formação de uma grande massa em que talentos, capacidades
e conexões cerebrais estão orientadas a um tipo de visão que não é o que serve
para um pensamento crítico e articulado”, alertou.
Metacrítica de conhecimento e integração com
movimentos sociais como alternativas
Como contraposição à economia da morte e sua
aceleração no capitalismo contemporâneo, o professor equatoriano apresentou o
que chama de ‘quatro S’ necessários à construção de uma sociedade orientada
pela defesa dos direitos humanos. “Uma economia orientada pela vida deve ser
sustentável; a identidade e a cultura devem ser soberanas, sem estarem
submetidas à alienação; a política deve ser construída e nutrida pela
solidariedade; o metabolismo social deve ser saudável e constituir modos
saudáveis de vida e de relacionamento com ecossistema”. Pensando na
constituição de alternativas ao momento histórico em que os ‘quatro S’ se
deterioram, ele defende a constituição de uma metacrítica capaz de articular os
elementos emancipadores de todas as perspectivas críticas ao atual modelo de
desenvolvimento. “Precisamos de uma metacrítica que enriqueça a crítica do
sistema capitalista a partir de todas perspectivas epistêmicas que questionam o
capital. E isso deve se pautar por duas construções que não podem ser
separadas: a construção do bem viver material e espiritual”, defendeu.
Jaime Breilh elaborou sua perspectiva de
constituição de uma metacrítica como forma de superação ao atual modelo de
produção de conhecimento, que considera enfraquecido por traços positivistas e
de relativismo cultural. “A crítica não pode deixar de considerar a divisão das
classes na sociedade. Diversidades são fundamentais, e não podemos divorciar a
compreensão dessas diversidades em respeito a esse grande terminal da
iniquidade que é a classe social”. Ele defendeu a possibilidade de complementação
entre as diferentes vertentes críticas em direção à compreensão do metabolismo
da sociedade com vistas à sua superação. “Só assim poderemos entender os
impactos de saúde em todas as suas dimensões. A dialética da ciência do
pensamento crítico emancipatório implica a relação estreita entre ideias
radicais e práticas radicais. Sem isso, não avançaremos. E isso obviamente isso
implica em respostas políticas, porque há necessidade de termos um projeto
histórico de futuro”.
Ele exemplificou com a produção de conhecimento na
área da saúde, mostrando que ideias radicais não se traduzem automaticamente em
práticas radicais. Contando sobre sua participação recente em congressos nas
áreas de ciências da saúde e da epidemiologia crítica, disse que notou uma
forte presença do positivismo e do pensamento reducionista no fazer científico.
“Seguimos condenados a uma visão marcada várias formas de determinismo. O
conceito de determinações sociais da saúde, por exemplo, vem sendo percebido
como uma análise determinista de causas e fatores de risco descolada da
totalidade histórica e social. O mesmo acontece na análise do meio ambiente,
com uma ecologia empírica em que as evidências ambientais são isoladas e
desconectadas da história. O ambiente físico, biológico, químico e os fatores
climáticos são atomizados entre si e em sua relação com a acumulação de
capital”, argumentou.
No campo prático, junto à produção de conhecimento,
está o desafio de traduzir a leitura da realidade em uma intervenção
transformadora. Nesse sentido, Jean Pierre Leroy destaca a experiência
agroecológica como uma importante contraposição ao modelo hegemônico de
produção da vida. “A agroecologia é a solução, não como uma experiência
minoritária, mas como modelo geral. É por ela que seremos capazes de dar comida
para as cidades, e desenvolver potencialidades com preservação de águas,
florestas e bens naturais”, apontou. Ao mesmo tempo, pontuou, a formulação de
políticas públicas precisa avançar na construção do modelo alternativo,
incorporando os segmentos atingidos pelos conflitos territoriais decorrentes da
expansão do capitalismo. “As políticas precisam ser abertas e as comunidades
devem estar integradas. Uma política de cima para baixo não tem chance de dar
certo. É preciso permitir a autonomia desses povos e liberar sua capacidade de
autogestão, apostando na constituição dos comuns: os grupos sociais, junto a
seus territórios, formulando projetos fora da ótica do mercado para a
natureza”, defendeu.
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