A cidade como currículo:
pesquisador espanhol desafia escola a olhar a rua.
por Ana
Luiza Basilio, do Portal Aprendiz
A rua é uma aula, uma lousa, um lugar onde se
escreve. Não é apenas parte do caminho percorrido até o museu, o centro
cultural ou a escola. A rua também ensina e precisamos aprender a ler as
mensagens que ela emite. Essa é a provocação feita pelo pesquisador Jaume
Martínez Bonafé aos educadores brasileiros durante sua passagem por Belo
Horizonte (MG). O espanhol, docente na Universidade de Valencia, defende que é
preciso superar a concepção de uma escola articulada com seu entorno e adotar a
cidade toda como currículo.
“Proponho que exploremos a ideia da cidade fazendo
currículo. Há milhares de situações construindo constantemente significados.
Creio que a cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos
fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e devem ser
estudados como tal.”
Segundo ele, para colocar em prática essa visão, é
preciso admitir que há um currículo fora da escola, que pode ser construído a
partir das diferentes experiências e práticas culturais, e levando em conta as
inúmeras formas de entender e vivenciar o mundo. “Se nos ensinassem a ler a rua
de outra maneira, muito provavelmente, seríamos cidadãos diferentes, saberíamos
valorizar as praças e as cidades a partir de um outro olhar.”
Além de deslocar a aprendizagem para fora das
instituições de ensino, a proposta de Bonafé convoca urbanistas, engenheiros,
prefeitos, secretários, comunicadores, a sociedade como um todo, a refletir
sobre quais mensagens as cidades que projetamos e vivemos passam para as
crianças desde a mais tenra idade. É o chamado “texto da cidade” que, em sua
opinião, urge ser transformado.
“É necessário intervir nesse texto da cidade, a
partir de uma outra pedagogia – que não cabe só aos educadores, mas também aos
prefeitos, às pessoas que têm responsabilidade na gestão municipal.”
Para entender como a cidade pode ser tomada pela
educação enquanto currículo, o Portal Aprendiz conversou com Bonafé, após sua
palestra no I Seminário Internacional de Educação Integral, realizado pelo
Territórios, Educação Integral e Cidadania (TEIA) da UFMG, entre 5 e 7 de
novembro.
Portal Aprendiz: Como se dá a construção do
currículo na rua?
Jaume Martínez Bonafé: Minha hipótese de trabalho é que
agora estamos pensando o currículo apenas dentro da escola. O currículo é o
conjunto de significados que a escola articula, dentro de seus objetivos
específicos, para dizer ‘isto é o que você tem que aprender, assim você vai ser
uma pessoa útil’. Este é um pouco o seu discurso institucional.
Eu creio que também há um currículo fora dela. Há
uma prática cultural que gera significados, formas de subjetivação e formas de
entender o mundo e de compreender-se nele que têm a ver com as experiências
vividas na cidade. Minha proposta de trabalho parte da cidade como currículo.
Portanto, teríamos que analisá-la como formadora de práticas, experiências,
relações e materialidades que vão articulando uma forma de entender a cultura e
de se entender como parte dela.
A questão é: quem escreve o texto na cidade? Minha
hipótese é que hoje o texto da cidade é a pedagogia do capitalismo, mas há
também outras linguagens, outros significados, outras práticas sociais que têm
a ver com os movimentos sociais e com um currículo contra-hegemônico.
Há um currículo fora da escola e é preciso
investigá-lo. Foto: João Xavi.
Aprendiz: E como crê que a escola pode dialogar com
estes elementos?
Bonafé: São coisas diferentes. Na minha conferência, eu
quis diferenciar de uma proposta pedagógica bastante antiga e vinculada aos
projetos de inovação, que diz que a escola tem que sair para o entorno,
pesquisá-lo, explorá-lo. Portanto, suas matemáticas, histórias e geografias
devem contemplar o entorno no trabalho pedagógico, mas eu não falo disso. Acho
que, com isso, a escola não rompe com o currículo tradicional. O que faz é
oxigená-lo, não para discutir a rua, e sim para que as matemáticas, histórias e
geografias possam se fazer mais próximas ao sujeito, aproximando-as da rua.
O que eu digo é que o currículo está na rua e
devemos investigá-lo. Vamos entender o que significam as grandes avenidas, os
centros comerciais e as praças; qual o significado para as crianças ou para as
pessoas mais velhas, para os homens ou mulheres, para negros e para os brancos.
Vamos ver quais significados se constroem na cidade e nos dar conta de que em
uma cidade há muitas cidades, interpretadas segundo o mundo de cada um.
Proponho que exploremos a ideia da cidade fazendo
currículo. Há milhares de situações que estão construindo constantemente
significado. Creio que a cidade junto aos meios de comunicação são elementos
que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e
devem ser estudados como tal.
Aprendiz: Na Espanha, alguma experiência segue esse
caminho?
Bonafé: Este é um conceito novo. Há algumas experiências,
como na minha faculdade, onde trabalho com meus estudantes, mas o tema ainda é
muito incipiente.
Aprendiz: Como as políticas públicas podem dialogar
com isso?
Bonafé: É preciso que haja tamanho comprometimento de uma
prefeitura com a pedagogia política, pública e social que isso possa
influenciar em sua gestão. Uma possibilidade, por exemplo, seria intervir sobre
o modo por meio dos quais os cidadãos se convertem em machistas. Isso não pode
depender só da vontade do comércio que vende a roupa ou do publicitário,
entende? É preciso um debate político e pedagógico.
É necessário intervir nesse texto da cidade, a
partir de uma outra pedagogia – que não cabe só aos educadores, mas também aos
prefeitos, às pessoas que têm responsabilidade na gestão municipal.
Por exemplo, eu sei que uma cidade necessita da
circulação rápida de automóveis, mas penso que quem desenha os entornos do
urbanismo social deveria se dar conta de que com isso nos passam a seguinte
mensagem: “você vive em um mundo de pressas e, além disso, é insignificante ao
lado dos carros, posto que até os semáforos são todos pensados para eles”. Isso
é um texto pedagógico. Estão nos dizendo, desde pequenos, que nas cidades em
que vivemos a pressa é fundamental. Acredito que os urbanistas também têm a
responsabilidade de propor que o desenho dos entornos urbanos contemple uma
outra maneira de entender os sujeitos.
De modo geral, nós não fomos formados para as
relações que se dão com os espaços. Tampouco a escola nos ajuda a nos pensar
neles, pois também está distanciada do tempo e do espaço real, por estar
concentrada em seus próprios arranjos de tempo e espaço.
O que a cidade pensada para carros diz sobre onde
se vive? Foto: Marcus Lyra.
Aprendiz: A rua é então um espaço de socialização?
Bonafé: A rua é uma aula, uma lousa, um lugar onde se
escreve. É o melhor lugar onde se dita as mensagens, é um texto pedagógico. É
muito interessante analisá-la a partir da pedagogia que se propõe. Se nos
ensinassem a ler a rua de outra maneira, muito provavelmente, seríamos cidadãos
diferentes, saberíamos valorizar as praças e as cidades a partir de um outro
olhar.
Por exemplo, me contaram de uma cidade em que na
região onde os edifícios são mais altos, viviam as pessoas mais ricas. Pra mim,
isso mostra o quão analfabetos podem ser os ricos, posto que sempre será mais
cômodo, mais habitável, viver em um lugar mais horizontal, com pouca densidade
habitacional, do que em um prédio de 30 andares. Se isso é valorizado como
melhor, pior para os ricos, não? Tudo isso são mensagens culturais. É melhor
viver num prédio de 30 andares? Pra mim, não. Eu quero ter um jardim, cultivar
uma horta.
Aprendiz: Algumas cidades são reconhecidas como
cidades educadoras. O que pensa sobre elas?
Bonafé: É um conceito interessante, mas tampouco é o que
estou falando. A cidade é um veículo. Precisamos colocar os dispositivos
culturais dela nas mãos dos projetos educativos das escolas, fazê-la educadora
nesse sentido. A cidade passa a contemplar a ideia de que suas instituições,
sobretudo culturais, cumpram seus objetivos. Que os museus tenham material
didático; que os hospitais tenham um projeto pedagógico também para as crianças
que se hospitalizam ou para as pessoas, etc. Isso me parece bom, mas o que eu
proponho é ir além dessa questão.
Aprendiz: Então, não basta ter o equipamento sem
uma intenção pedagógica?
Bonafé: Claro. A cidade educadora não é só o museu, o
teatro. A rua também educa. E este espaço é, digamos, “desproblematizado” do
ponto de vista pedagógico. Mas, veja, é ele que o professor utiliza para
conduzir a criança até o museu. Ou seja, é tão educativo quanto, mas passa uma
outra educação, outro discurso, outra pedagogia.
Fonte: Portal Aprendiz
Nenhum comentário:
Postar um comentário