Desigualdades sociais: o que as
empresas podem fazer para superá-las?
por
Eliane Barbosa*
A ampliação da visão acerca dos problemas sociais
do país possibilitará uma aplicação mais heterogênea dos recursos destinados à
ação social. Foto: Shutterstock.
As empresas precisam adotar medidas direcionadas
para a superação das desigualdades sociais. Este artigo sugere alguns caminhos.
Nos últimos anos, o Brasil viu ser reduzido o
número de pessoas que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza. Um
conjunto de fatores contribuiu para esse cenário, dentre os quais se destacam o
crescimento econômico experimentado pelo país na primeira década do novo
milênio e a implementação de um conjunto de políticas governamentais de
valorização real do salário mínimo e de transferência de renda.
Infelizmente, a redução da pobreza não se refletiu
de modo equivalente na redução das desigualdades. É fato que também houve uma
queda desses indicadores, mas os resultados não são tão satisfatórios, uma vez
que as distâncias que separam os mais ricos dos mais pobres vêm sendo superadas
em ritmo ainda muito lento ante a necessidade de maior justiça social. Isso
significa que a sociedade brasileira continua convivendo cotidianamente com um
abismo social entre os mais ricos e os mais pobres, ou seja, entre aqueles que têm
garantido acesso a bens sociais fundamentais – como educação de qualidade,
saúde, habitação digna, trabalho decente, lazer e cultura, entre outros – e
gozam, assim, das oportunidades para o desenvolvimento de seu pleno potencial e
os que vivem à margem dessa possibilidade.
Pesquisas nacionais e internacionais evidenciam a
gravidade das disparidades socioeconômicas no Brasil. O World Income Inequality
Database, produzido pelo Instituto Mundial de Pesquisas de Economia do
Desenvolvimento da Universidade das Nações Unidas (UNU-Wider), revela que, no
ano de 2008 – período em que o país via despencar os indicadores de pobreza e
extrema pobreza –, numa lista de 151 países, o Brasil figurava como o sétimo
com o pior índice de Gini, que é um importante indicador de desigualdade. Dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad-IBGE, 2012) revelam que
esse mesmo índice tem caído em ritmo muito lento no que diz respeito ao mundo
do trabalho e que, além disso, o grupo que apresentou maior aumento de rendimento
entre os anos de 2011 e 2012 foi o de 1% dos mais ricos do país, cuja
participação no total de salários pagos subiu de 12% para 12,5% naquele
período.
Diante desses dados, é forçoso reconhecer que o fim
da miséria é apenas o início de um processo e que a próxima agenda a ser
enfrentada é a do desenvolvimento com enfrentamento da desigualdade.1
Uma análise das estatísticas e indicadores sociais
permite afirmar que, no Brasil, a desigualdade se estrutura especialmente
diante da fronteira racial. Fronteira que, ao separá-la em dois grupos
majoritários (negros e brancos), também a divide em dois segmentos distintos
quanto ao nível de desenvolvimento humano: o grupo dos brancos, que, em 2013,
apresentou um alto nível de desenvolvimento, com um IDH de 0,735, e o dos
negros, para os quais, naquele mesmo período, foi computado um IDH de 0,645,
que representa um nível médio de desenvolvimento.2
A diferença de acesso dos dois grupos à renda e
direitos sociais básicos é também revelada quando analisamos que a população
negra permanece sub-representada entre os brasileiros mais ricos e
sobrerrepresentada entre os mais pobres. Segundo cálculos do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para o ano de 2009, entre os 10% mais ricos
da população, apenas 24% eram negros, enquanto, entre os 10% mais pobres, estes
correspondiam a 72%.3.
No entanto, a raça, que é de fato o principal
limite na demarcação da desigualdade entre os grupos sociais no país, não atua
sozinha. O sexo também determina as trajetórias dos indivíduos. Logo, na
avaliação das desigualdades entre os grupos sociais se faz também necessário
observar essa variável. Segundo dados das últimas Pnad, quando consideramos
esses dois limites (raça e sexo), mais de 99% dos brasileiros podem ser
classificados em um dos quatro grupos sociais majoritários: mulheres negras,
homens negros, mulheres brancas e homens brancos, sendo que tais grupos se
subdividem diante de outros limites classificatórios.
Uma análise dos indicadores sociais de rendimento
do trabalho e educação revela que a classificação de um indivíduo em cada um
desses grupos explica, pelo menos em parte, a sua trajetória no mundo do
trabalho. Mostra, por exemplo, que as mulheres brancas estão sub-representadas
nos escalões mais altos das organizações, em que pese o fato de pertencerem ao
grupo mais bem formado do país. Também demonstra que as mulheres negras
constituem o grupo que goza de menos oportunidades de trabalho e fica com o
menor retorno esperado pelo investimento em educação, encontrando-se sobremodo
sub-representadas nas grandes corporações.
Mas o que as empresas têm a ver com essas questões,
que a princípio podem parecer de natureza mais sociológica que organizacional?
Como já foi sugerido em outros estudos, podemos considerar que as desigualdades
sociais tenham como uma de suas causas certos “mecanismos sócio-organizacionais
típicos do funcionamento do mercado de trabalho”4. O que implica dizer que o
modo como as empresas e demais organizações se relacionam com cada um daqueles
quatros principais segmentos em muito explica o nível de desigualdade da
sociedade brasileira.
As estatísticas apontam, por exemplo, que as
desigualdades raciais e de gênero são reproduzidas no mundo do trabalho e,
diante disso, que empresas e demais organizações empregadoras são, junto com o
governo, responsáveis pela instalação e perpetuação de um sistema socialmente
injusto, uma vez que deixam de adotar medidas necessárias para a superação
desse quadro, com especial atenção ao setor empresarial, uma vez que se
constitui no núcleo por excelência da distribuição de renda e oportunidades.
O que, então, as organizações podem fazer para
contribuir para a superação das desigualdades sociais no Brasil? Em primeiro
lugar, existe a necessidade de um redimensionamento do problema. Algumas
iniciativas empresariais – como, por exemplo, aquelas voltadas para a
valorização da diversidade, responsabilidade social e ação social – devem ser
reavaliadas e certamente reclassificadas, de modo que sejam incluídas na esfera
da sustentabilidade, que, na maioria das vezes, ainda caminha manca,
considerando apenas a dimensão ambiental e a econômica e negligenciando quase
que totalmente a dimensão social do conceito.
O conceito de desenvolvimento sustentável, que, num
primeiro momento, supervalorizou os aspectos ambientais, tem sido renegociado
para incluir de modo mais efetivo as questões relativas à sua dimensão social.
Com isso, enfatiza a promoção da igualdade, a inclusão social e a igualdade de
raça e gênero, entre outros fatores, como metas importantes a serem perseguidas
na busca do que verdadeiramente poderemos chamar de desenvolvimento.
Diante disso, argumentamos que as empresas precisam
adotar medidas especialmente direcionadas para a superação das desigualdades
sociais e sugerimos alguns caminhos.
Primeiro, faz-se necessária uma revisão de seus
processos internos de contratação, promoção e remuneração, além da
diversificação das fontes para recrutamento de trabalhadores para as posições
de níveis hierárquicos mais elevados. O fato de existirem poucos trabalhadores
negros em posições de médio a alto escalão não é explicado apenas pela suposta
baixa capacidade técnica desses profissionais. É verdade que, historicamente,
mulheres e homens negros sempre tiveram menos oportunidade de acesso à educação
formal (e, especialmente, à educação formal dita de qualidade), que é
privilegiada no mundo corporativo. Mas alguns estudos já demonstram que esse
elemento isoladamente não justifica a quase completa ausência deles nas
posições de gestão das organizações. As empresas precisam assumir que há vícios
em suas práticas internas e que a revisão dos processos implica não apenas a
reformulação dos fluxos, mas também a formação dos gestores no tema promoção da
igualdade, de um modo geral, e promoção da igualdade racial, muito
especificamente, dada a importância desse componente na explicação das
desigualdades sociais no país.
A área de gestão da diversidade das empresas também
precisa aliar suas ações a partir de dois valores principais: a valorização da
diversidade e a equidade. Num país como o Brasil, há de se questionar,
inclusive, o que temos chamado de mérito e como e para que finalidades esse
princípio tem sido utilizado.
De fato, diversos setores das organizações devem
ser envolvidos nesse processo, e não apenas aqueles vinculados à área de gestão
de pessoas. O setor de marketing e comunicação, que, por meio de peças
publicitárias, apresenta a cara da empresa para o público interno e externo,
precisa participar desse diálogo e identificar como, por meio de seu trabalho,
as organizações discriminam e reproduzem desigualdades sociais e, a partir daí,
rever suas práticas, especialmente aquelas relacionadas às imagens com que
fazem representar as empresas. Como conceber, num país de maioria negra, peças
publicitárias e desfiles de moda, por exemplo, com baixa ou nenhuma
representatividade de modelos e manequins negras e negros?
Finalmente, devemos destacar aqui que os setores de
responsabilidade social e investimento social privado também lucrarão
enormemente ao ingressarem nesse diálogo. A ampliação da visão acerca dos
problemas sociais do país possibilitará uma aplicação mais heterogênea dos
recursos destinados à ação social. Como sugere a “Visão ISP 2020”, do Grupo de
Institutos Fundações e Empresas (Gife), o setor de investimento social privado
precisa ser mais abrangente e distribuir de forma mais equitativa e equilibrada
seus recursos, para que estes possam alcançar todas as áreas relevantes para o
desenvolvimento social brasileiro. O que implica diversificar os investimentos
sociais – que hoje estão muito concentrados nos temas educação, cultura e
juventude – para outras áreas, tendo como referência também a dimensão
geográfica e populacional.
Notas
1 BARBOSA, Alexandre de Freitas (org.). O Brasil
Real: a desigualdade para além dos indicadores. São Paulo: Outras Expressões,
2012.
2 LAESER. Tempo em Curso: publicação eletrônica
mensal sobre as desigualdades de cor ou raça e gênero no mercado de trabalho
metropolitano brasileiro, Outubro, 2002-2013.
3 Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça /
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. [et al.], 4ª ed. Brasília: Ipea,
2011. 39 p. : il.
4 VARELLA, Santiago F. Direitos Coletivos,
Discriminação Racial e Justiça: Determinantes da resistência às ações
afirmativas nos discursos jurídicos. 2009. 321 f. Tese (doutorado em
sociologia) – Instituto de Ciências Sociais, UnB, Brasília, 2009.
* Eliane Barbosa da Conceição é doutora em Administração de
Empresas pela Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Centro de Estudo em
Administração Pública e Governo da mesma instituição, professora da
Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultora sobre valorização da
diversidade, igualdade racial e de gênero para organizações públicas e
privadas.
Fonte: Instituto Ethos
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