Crise hídrica de São Paulo passa
pelo agronegócio, desperdício e privatização da água.
Por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, da redação
do Correio da Cidadania
Para muitos, o racionamento de água em São Paulo
já é uma realidade líquida e certa. Resta saber até quando políticos ganharão
tempo para escondê-la ou se a população agirá, a ponto de, quem sabe, se
repetirem as chamadas ‘guerras da água’, já vistas em locais onde os serviços
hídricos e sanitários foram privatizados. De toda forma, o assunto não é
passageiro e exige toda uma reflexão a respeito dos atuais modelos de vida e
economia.
“Em primeiro lugar, é preciso reeducar a
população a reduzir o consumo. As empresas também, pois quando se fala em
redução de consumo parece que só a população consome. Mas, no Brasil, 70% da
água é consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências.
E quando se fala em redução de consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%”,
afirmou Marzeni Pereira, tecnólogo em saneamento da Sabesp, em entrevista ao
Correio da Cidadania.
Na conversa, Marzeni elenca uma série de razões
históricas, desde as locais até as mais abrangentes, que levaram São Paulo à
atual crise hídrica, cujas consequências ainda não foram quantificadas.
Trata-se de mais um fracasso do modelo de gestão privatista, de mãos dadas com
um projeto desenvolvimentista que tem gerado mudanças ambientais em todos os
grandes biomas do país.
“A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil
para gerir o sistema de saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor
estrutura etc. O problema principal é justamente a administração voltada ao
mercado e ao lucro. Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo
sucateamento. Em 2004, tinha 18 mil trabalhadores e sua base de atuação era menor.
Hoje, a empresa tem menos de 14 mil. A terceirização é um dos principais
problemas, por exemplo, na perda de água”, explicou, em relação ao contexto
paulista.
Por outro lado, Marzeni não deixou de fora toda a
relação com um modelo já há décadas hegemônico. “No ano passado, em torno
somente de soja, carne, milho e café, o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de
m³ de água. Significa abastecer São Paulo por quase 100 anos. A umidade
atmosférica, mantida através dos chamados ‘rios voadores’, que vêm do Norte do
Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. A atuação do
agronegócio, quem mais desmata, teve influência em SP. E teve também o
desmatamento de todo o centro-oeste do estado”, resumiu.
A entrevista completa com Marzeni Pereira, realizada
nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual o resumo que
você faz, num breve histórico, das origens e razões da crise da água no estado
de São Paulo?
Marzeni Pereira: Podemos dizer
que o histórico da crise de água em São Paulo tem bastante tempo. Em 2003, por
exemplo, o sistema Cantareira chegou próximo de zero, com menos de 5% de sua
capacidade de armazenamento e todo o sistema de saneamento quase entrou em
colapso. Houve um princípio de racionamento, com a Operação Pajé (na qual se
bombardeavam nuvens e se pulverizava sua água).
Nesse período, foi elaborado um plano para que o
saneamento de São Paulo dependesse menos do Cantareira, ao ser assinada uma
outorga com vistas a reduzir a dependência do reservatório – o que mais
abastece a capital e a região metropolitana. De lá pra cá, a ideia era reduzir
perdas, aumentar o reuso e encontrar novas formas de abastecimento, por outros
mananciais. Isso não aconteceu.
Em 2004 e 2005, houve uma recuperação da
reservação de água; em 2009, houve um pico, com quase 100% das represas cheias.
Em 2009, houve um período de enchentes, como a do Jardim Pantanal (zona leste);
e em 2011, teve a enchente de Franco da Rocha, por conta da abertura da represa
Paiva Castro. Mas, de toda forma, não houve redução da participação do sistema
Cantareira. As perdas caíram, mas não o suficiente para suprir a demanda, que
cresceu. Não houve, portanto, contrapartida suficiente na disponibilidade de
água. Esse é o principal problema.
Outro ponto é que tivemos, recentemente, em 2013
e 2014, uma estiagem bastante forte, apesar de curta, comparando com outras
regiões do Brasil, com 5 ou 10 anos de estiagem. Aqui são menos de dois anos,
de modo que não era pra estarmos na atual situação.
Neste ano, também teve outro problema: com
eleições e Copa do Mundo, havia a necessidade de o governo manter sua imagem em
alta. Por isso, não se tomaram medidas para reduzir o consumo de água a partir
de janeiro e fevereiro de 2014.
Correio da Cidadania: Qual o papel da
Sabesp, com seu modelo de gestão, nesse processo?
Marzeni Pereira: A Sabesp é a
empresa mais preparada do Brasil para gerir o sistema de saneamento. Tem o
melhor corpo técnico, a melhor estrutura etc. O problema principal é justamente
a administração voltada ao mercado e ao lucro. Outra coisa é a dependência das
influências diretas do governador e dos acionistas privados.
Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo
sucateamento e redução da sua capacidade de trabalho. Em 2004, a Sabesp tinha
18 mil trabalhadores e sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos
de 14 mil, uma redução de cerca de 20% do quadro. Isso influencia, certamente.
Outra coisa é que, a partir do momento em que se
reduz o número de trabalhadores diretos, há a necessidade de terceirizar
serviços. A terceirização é um dos principais problemas, por exemplo, na perda
de água. Porque o serviço é mal feito, o cara faz num dia e no outro dia já
vaza de novo… Significa que o serviço tem de ser feito várias vezes, e aí temos
mais perdas.
É uma lógica adotada nos últimos 20 anos: a
empresa depender de outras empresas privadas. Hoje, as empresas privadas têm
muita influência no dia a dia da Sabesp. Portanto, é claro que o modelo de
gestão tem tudo a ver com a crise.
Correio da Cidadania: Como dimensiona a
crise da água no país como um todo, em si e relativamente a São Paulo? Em que
medida a destruição dos biomas do Cerrado e amazônico explicam a grave situação
que vivemos?
Marzeni Pereira: A estiagem em
São Paulo, com certeza, tem relação com o desmatamento da Amazônia e do
Cerrado. Obviamente, sempre que há desmatamento se reduz a evaporação de água
pela evapotranspiração das árvores. O Cerrado brasileiro sofreu muito com a
devastação promovida pelo agronegócio.
Para se ter ideia, no ano passado, em torno
somente de quatro produtos (soja, carne, milho e café), o Brasil exportou cerca
de 200 bilhões de metros cúbicos de água. Não produziu, apenas exportou, ‘água
virtual’, como se diz. Tal número significa abastecer São Paulo por quase 100
anos, apenas com a quantidade de água gasta por esses quatro produtos.
Outro problema é que houve redução da quantidade
de água superficial. À medida que há uma degradação, tanto pela remoção da
vegetação como pela irrigação intensiva de larga escala, reduzem-se os
afluentes dos grandes rios, como os amazônicos e o São Francisco, que já está
sofrendo muito com a redução da água.
A umidade atmosférica, mantida através dos
chamados “rios voadores”, que vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade
da vegetação, foi reduzida. A atuação do agronegócio, quem mais desmata no
Brasil, teve influência em São Paulo.
Mas não é só isso. Teve também o desmatamento de
todo o centro-oeste do estado de São Paulo.
Praticamente toda a vegetação de
tal região foi removida, para plantios de cana, eucalipto, laranja etc. A
redução dessa vegetação também tem influência. A redução das matas ciliares dos
rios que abastecem as represas é outro fator, pois provoca o assoreamento e um
secamento mais rápido.
Correio da Cidadania: O que pensa dos
primeiros protestos que começam a ser organizados, ou que ocorrem até
espontaneamente, em torno à água, a exemplo do que tem ocorrido em cidades como
Itu? Acredita que possam crescer a ponto de se tornarem massivos, e até mesmo
reproduzirem as chamadas “guerras da água” que ocorreram em vários países?
Marzeni Pereira: Itu é um caso
bastante emblemático. Lá, a gestão da água é de uma empresa privada, que vendeu
água até acabar. E há o risco de a empresa abandonar a cidade quando a água
acabar de vez e começar o prejuízo. Afinal, ela está lá atrás de lucro, não
para fazer serviço filantrópico. Esse é o grande risco de o setor privado atuar
no saneamento. Temos de combatê-lo.
Quanto aos protestos, são iniciativas
interessantes da população. Ela tem de fazer parte da vida política do país,
não pode ficar omissa em casa. É importante ter pauta de reivindicações, um
programa a ser apresentado no momento. As manifestações ainda estão tímidas,
mas acredito que a tendência é de ganharem força.
Mesmo porque a previsão para 2015 é de faltar
mais água. Se não chover muito nesse verão, a coisa será pior. Portanto, há
tendência de aumento de protestos no ano que vem. Como cidadão, já estou
participando, como nos dias 1 e 5. São manifestações importantes e precisam
continuar.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, como
acredita que será o ano de 2015 em São Paulo, especialmente no que toca a vida
do cidadão médio? O racionamento, que de fato já ocorre, vai ser intensificado?
Marzeni Pereira: Na realidade,
ainda não existe racionamento. O que é racionamento? É a definição de quanto
cada pessoa, ou família, pode usar. Seria, por exemplo, definir uma cota de 150
litros por dia. Isso é racionamento. Existe outro modelo, o rodízio, que é
quando se joga água de uma região para outra. Num dia, um local fica sem água e
outro a recebe. Portanto, há diferença entre um e outro tipo de política.
Inclusive, penso que o racionamento tem de ser
adotado, especialmente quando a situação se acirrar. Se não, alguns terão água
e outros não, como acontece no rodízio. Quem tem caixa d’água ou um
reservatório grande em casa não fica sem água. Quem não tem, fica sem. Imagine
uma pessoa que sai de casa às 8 da manhã e volta às 10 da noite. Se não tiver
caixa d’água, não toma banho. O rodízio é injusto pra quem não tem condição de
comprar caixa d´água grande.
Em relação ao ano que vem, observamos que a
recuperação do reservatório do Cantareira, nos últimos 10 anos, tem sido, em
média, de 23%. Se, por exemplo, está em 10% em outubro, quando chegar a março
deverá estar com 30% ou 40%. E essa marca não tem sido ultrapassada, com
exceção de 2004 e 2008.
O problema é que neste ano estamos com 17%
negativos. O volume operacional acabou em 15 maio; de lá pra cá, está sendo
usado o volume morto. Se o reservatório recuperar 20% do volume, no final do
período de chuvas não teremos mais de 5% de volume operacional. Se não tiver
chuva em abril, quando normalmente ela é escassa, esses 5% durariam uns 30
dias, o que nos faria voltar a usar o volume morto em maio. Há um risco de
usarmos o volume morto do Cantareira bem antes do período em que começamos a
usar em 2014.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que
pensa que poderiam ser soluções tanto a curto, dada a gravidade da situação,
como a médio e longo prazos?
Marzeni Pereira: A principal
solução é chover. Se chover, tudo se resolve. Torcemos pra isso; de fato, caso
contrário, a população vai sofrer. Se não chover, temos de tomar algumas
medidas (na verdade, mesmo que chova, teremos que tomá-las).
Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população
a reduzir o consumo. As empresas também, pois quando se fala em redução de
consumo parece que só a população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é
consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E
quando se fala em redução de consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%.
A região metropolitana de São Paulo não tem muito
peso da agricultura, mas tem da indústria. Precisa reduzir o consumo
residencial e industrial. Precisa também de uma forte redução de perdas.
Precisa de uma orientação sem meio termo para a população. Não pode ser como
hoje, o governo e a Sabesp têm de falar mais claramente à população de como a
situação é grave, além de esclarecer se precisamos fazer rodízio, racionamento
ou as duas coisas juntas.
Há a necessidade de definir as atividades humanas
básicas que terão suprimento de água garantido, como hospitais, escolas,
creches. Quanto à população de baixa renda, com menos condição de comprar caixa
d’água, seria necessário o governo distribuir tais caixas, distribuir filtros
de hipoclorito, porque muita gente vai usar água de mina se precisar, o que
traz risco de contaminação. Em caso de falta de água generalizada e uso de
carros-pipa, tem que se saber como aqueles que não têm caixa poderão
armazená-la.
Outro ponto é em relação ao emprego. Se de fato
se concretizar a previsão, ou seja, se ocorrer falta de água generalizada em
2015, muitas empresas vão fechar, ao menos temporariamente, ou se mudar. Se não
tiver política de estabilidade no emprego, pode ser uma catástrofe.
Também se deve incentivar uso de água de chuva e
reuso. Pouco se fala em coletar água de chuva. Se a população fizesse isso, e
reduzisse ao menos 10% do consumo, teríamos cerca de 5 metros cúbicos por
segundo de economia de água. Isso equivale ao novo sistema que a Sabesp
constrói agora, o São Lourenço, que custará 2 bilhões de reais.
Finalmente, é necessário estatizar o saneamento –
não a Sabesp, mas o próprio saneamento. Não tem sentido um serviço tão
importante quanto esse na mão de quem quer lucro. Mas a estatização não pode
ficar na mão do governo, com empresários controlando por dentro. É preciso
controle dos trabalhadores. Além de uma comissão e investigação populares, que
apurem responsabilidades. É preciso coletar e tratar mais esgoto, usando tal
água em atividades, principalmente, industriais, pois há uma série de usos
possíveis com a água de esgoto.
Recuperar mananciais é outro ponto importante. Se
isso não for feito, as consequências futuras podem ser mais graves. O Rodoanel
passou pelos mananciais, o que mostra como não se deu importância a eles.
Pessoas que moram em áreas de mananciais precisam sair de lá, através de
negociações sérias, com plano habitacional. Com casa garantida, claro, ao invés
de serem retiradas como lixo.
Há uma série de ações possíveis no médio e curto
prazo. Mas têm de ser feitas em diálogos com a população, se não os interesses
pelo lucro vão falar mais alto.
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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são
jornalistas.
Fonte: EcoDebate
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