Tarde
demais para o acordo do clima?
Protestos em réplica da Torre Eiffel no parque de
exposições de Le Bourget. Foto: Claudio Angelo/OC.
Cientistas dizem que pacto adotado em Paris é
melhor que nada, mas que falta de ação nos últimos 20 anos fez com que chance de
evitar um mundo 1,5 grau mais quente fosse perdida.
Por Claudio Angelo e Cíntya Feitosa, do OC, em
Paris
Numa das salas de madeira prensada montadas
especialmente para abrigar a conferência do clima de Paris, um britânico alto e
magro faz uma das falas mais acachapantes do evento. Seu nome é Kevin Anderson,
e ele não é político, nem diplomata. É professor da Universidade de Manchester,
e não está ali para achar linguagem de consenso, mas para dar a real.
Lendo num PowerPoint o texto do mandato que
originou novo acordo do clima, Anderson primeiro afirma que o objetivo comum é
“manter o aumento da temperatura global abaixo dos 2oC, e agir para chegar a
esse alvo de forma consistente com a ciência e com base em equidade”. E depois
emenda: “As metas do Acordo de Paris não são consistentes com os 2oC, não são
baseadas em ciência e não têm nada a ver com equidade”.
Ele prossegue: “Faz 25 anos que nós sabemos tudo de
que precisamos saber para combater a mudança climática, mas as emissões hoje
são 60% maiores do que eram nos anos 1990. Estamos continuando a nos travar em
uma trajetória de cem anos de uso de combustíveis fósseis”.
Anderson faz parte de um grupo crescente de
cientistas, economistas e analistas políticos que acham que a humanidade já perdeu
a chance de manter o aumento da temperatura da Terra abaixo de 1,5oC, o tão
celebrado objetivo da COP21. E que mesmo o limite de 2oC é muito mais provável
de ser ultrapassado do que de ser cumprido.
Na primeira semana de COP21, o pesquisador,
vinculado ao Centro Tyndall de Pesquisa sobre Mudança Climática, publicou um
comentário no periódico Nature Geoscience afirmando que cenários que mantêm o
aquecimento global abaixo de 2oC dependem de “emissões negativas especulativas
ou de mudar o passado”, e que os cientistas precisam ser honestos em suas
premissas, “por mais politicamente desconfortáveis que sejam as conclusões”.
O texto ecoa um outro comentário, publicado em maio
na revista Nature pelo cientista político alemão Oliver Geden, que também pede
integridade dos cientistas em relação à factibilidade da meta de 2oC. Geden foi
amplamente criticado quando circulou uma versão preliminar de seu artigo.
Chegou a ser acusado de se alinhar com os chamados “céticos” do clima.
Anderson, segundo o OC apurou, teve dificuldades para conseguir que seu
comentário fosse publicado na Nature Geoscience.
“O problema é que as pessoas têm uma dificuldade
terrível em lidar com a realidade”, disse ao OC em novembro David Victor,
professor de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia em San Diego
e um dos acadêmicos que têm argumentado que a chance de limitar a temperatura
em 2oC sem quebrar a economia nem recorrer à geoengenharia já passou.
Pesquisadores como Victos, Anderson e Geden baseiam
suas avaliações no chamado “orçamento de carbono”. Trata-se de uma conta
apresentada no último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre
Mudança Climática), de 2013, que relaciona diferentes probabilidades de
elevação de temperatura neste século com emissões acumuladas de dióxido de
carbono desde a Revolução Industrial.
Segundo essa conta, se quiser ter 66% ou mais de
chance de manter a elevação da temperatura global abaixo de 2oC, a humanidade
tem apenas 1 trilhão de toneladas de CO2 para emitir entre 2011 e o fim do século.
Como a taxa atual de emissões está em torno de 50 bilhões de toneladas por ano,
os cientistas estimam que teremos esgotado nosso orçamento de carbono em cerca
de duas décadas.
O problema, de acordo com Anderson, é que o nosso
orçamento de carbono está seriamente inflado.
Primeiro, porque já emitimos
cerca de 150 bilhões de toneladas de CO2 equivalente apenas entre 2011 e 2015.
Segundo, porque é preciso incluir no orçamento emissões de outros setores, como
desmatamento e produção de cimento – que nos subtraem mais 250 bilhões de
toneladas de CO2 do total disponível para gastar. E isso tudo sem considerar
outros fatores, como as emissões por derretimento de solos congelados
(permafrost) no Ártico, que, segundo um estudo também apresentado em Paris,
podem reduzir significativamente o saldo bancário de carbono da humanidade.
“O orçamento real é de 600 bilhões de toneladas,
não de 1 trilhão”, disse Anderson. “Para dizer muito secamente, a chance de
termos 66% de probabilidade de 2oC está perdida. Na melhor das hipóteses, temos
33% de chance”, prosseguiu, dizendo que o orçamento de 2015 precisaria ser
ajustado para 1,1 trilhão de toneladas, que daria um terço de chance de
alcançar a meta do Acordo de Paris.
Mandrake
Cenários compatíveis com 2oC usam o que o pesquisador
de Manchester chama de “coelhos na cartola”. O IPCC avaliou, em seu último
relatório, 400 desses cenários. Destes, 344 assumem que a humanidade terá
sucesso em adotar em larga escala as chamadas “emissões negativas”, como o
plantio de dezenas de milhões de hectares de florestas num curto prazo ou a
expansão da bioenergia com captura e sequestro de carbono em destilarias de
cana, por exemplo – o chamado BioCCS. Este é o primeiro coelho.
“Essas tecnologias nunca funcionaram em larga
escala, suas dificuldades técnicas e econômicas são desconhecidas, podem causar
conflito com a produção de alimentos e precisamos cruzar os dedos sobre
potenciais feedbacks que elas possam ter no clima”, diz Anderson.
Mais preocupante ainda, segundo ele, é o fato de
que todos os 56 cenários que não recorrem a emissões negativas assumem que o
pico global de emissões de gases-estufa ocorreu em 2010 – daí a referência a
mudar o passado, o segundo coelho na cartola dos cenários de 2oC.
O pico de emissões globais foi uma das batalhas
políticas de Paris. China e Índia, países emergentes cuja matriz energética é
baseada em carvão e que ainda verão suas emissões crescerem por 15 anos ou
mais, foram contra a menção, no texto do acordo, de uma data para que as
emissões de carbono chegassem ao ápice e começassem a declinar daí. Também se
opuseram à inclusão da expressão “descarbonização” da economia no pacto. Paris
teve de se contentar com um objetivo de longo prazo de atingir o pico de
emissões “o quanto antes”.
Uma notícia animadora nesse sentido foi dada pelo
Global Carbon Project, uma rede de uma centena de cientistas capitaneada pelo
Centro Tyndall da Universidade de East Anglia em Norwich, também no Reino
Unido. Durante a COP21, eles apresentaram resultados do balanço de carbono do
planeta em 2014, que indica uma desaceleração no crescimento das emissões
mundiais nos dois últimos anos.
Segundo dados apresentados pela física canadense
Corinne LeQueré, diretora do Tyndall, no ano passado as emissões de
gases-estufa por queima de combustíveis fósseis cresceram apenas 0,6%, após uma
média de 1% ao ano na década de 1990 e 3% nos anos 2000. A estimativa para 2015
é que a taxa de emissões tenha se estabilizado ou mesmo declinado ligeiramente:
os dados indicam um desempenho que vai de uma queda de 1,6% a um aumento de
0,5%, com uma mediana de 0,6% de declínio. Seria a primeira vez que as emissões
caem na ausência de crise econômica.
Overshoot
Os principais fatores são a queda das emissões da
União Europeia e a redução do uso de carvão para gerar energia na China, o que
está fazendo despencar a relação entre uso de energia e CO2 e PIB no país que é
o motor da economia mundial. Em 2014, a China cresceu 7,3%, enquanto o consumo
de energia cresceu apenas 2,2%. Segundo o chinês Dabo Guan, também da
Universidade de East Anglia, a redução da intensidade de carbono da economia
chinesa se verifica desde 2007.
A representante da UE Carole Dieschbourg encontra o
chinês Xie Zenhua após o fim da COP.
Kevin Anderson adverte que é cedo para comemorar.
“As causas dessa queda dificilmente persistirão, embora no curto prazo o
crescimento das emissões deva permanecer pequeno”, afirmou. Pior ainda,
prosseguiu o britânico, toda a infraestrutura construída no planeta – de
estradas a prédios, aviões, navios e usinas de energia – ainda é de alto
carbono. Como investimentos em infraestrutura são de longo prazo, há um
“travamento” em alto carbono nesse setor que vai de 30 a cem anos.
O esforço de mitigação necessário nos países em
desenvolvimento para que a humanidade tenha pelo menos 50% de chance de evitar
o limiar de 2oC, argumenta, envolveria um pico nas emissões globais em 2025
(contra “o quanto antes” do Acordo de Paris) e uma queda de 10% ao ano a partir
daí. Para os países ricos, a redução teria de ser de 10% ao ano a partir de
hoje.
“Isso significa que não temos chance de ficar em
2oC? Não, nós temos: a chance é de 33%”, diz Anderson, lembrando em seguida a
uma plateia ainda tonta pelos números que tal esforço, mesmo assim, envolveria
mitigação que vai muito além de qualquer coisa discutida em Paris – o que ele
chama de “Plano Marshall” para o setor energético no mundo em desenvolvimento,
com uma taxação das emissões dos 10% mais ricos da população mundial. “E,
sejamos francos, todos nós aqui nesta sala pertencemos a esse grupo.”
Já a meta de estabilização do aquecimento em 1,5oC,
mencionada no acordo e maior vitória política dos países vulneráveis em Paris,
está simplesmente “perdida”, segundo o cientista inglês.
Outros pesquisadores têm uma visão menos fatalista.
Para o alemão Hans-Joachim “John” Schelnnhuber, diretor do Instituto de
Pesquisa de Estudos Climáticos de Potsdam, ter 50% de chance de ficar em 1,5oC
é algo “muito difícil”, mas “ainda compatível com a ciência”.
Porém, isso envolveria, além de um esforço brutal
de mitigação, também o que os climatologistas chamam de “overshoot”: as
temperaturas subiriam para além da meta e voltariam a ela após algumas décadas.
A vantagem disso é que talvez fosse possível, dessa
forma, estabilizar o nível do mar, já que ele sobe mais lentamente (descontado
um colapso eventual repentino do manto de gelo da Antártida, que elevaria os
oceanos quase instantaneamente). Salvar os países-ilhas do Pacífico da extinção
no longo prazo, portanto, talvez ainda esteja ao alcance. “Para o nível do mar,
1,5oC e 2oC são uma grande diferença”, disse Schelnnhuber.
No entanto, mesmo que seja possível fazer a
reengenharia da atmosfera, o cientista acha que não dá mais para evitar outro
impacto do alto CO2: a acidificação dos oceanos, que ameaça os ecossistemas e a
própria capacidade do mar de sequestrar e armazenar gases-estufa.
Só os próximos anos dirão se Paris terá conseguido
cumprir sua promessa.
Fonte: Observatório do Clima
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