terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Escassez de água tem rosto de mulher.
Moradora do município de Havana do Leste organiza em sua casa o armazenamento dos vasilhames com água potável que acaba de trazer da rua, após dias sem fornecimento, em sua casa na capital de Cuba. A coleta de água para consumo doméstico se soma às tarefas cotidianas das mulheres em Havana. Foto: Jorge Luis Baños/IPS.

Por Patricia Grogg, da IPS – 

Havana, Cuba, 25/11/2015 – Denia Arrascaeta sofre quase diariamente falta de água em seu bairro na capital cubana. “Às vezes não tenho nem para beber”, conta à IPS. Na casa de sua avó, o fornecimento é um pouco melhor, e, quando a crise se agrava, enche vários garrafões e caminha com eles até oito quarteirões até sua residência. Essa contadora de 39 anos vive em um bairro da zona oeste de Havana, onde o fornecimento de água é muito irregular.

“Em certas ocasiões, minha avó também não recebe água e temos que esperar pelo caminhão-pipa”, acrescentou Arrascaeta, se referindo ao veículo que auxilia os setores com total carência do recurso. Para ela, o pior é o estresse permanente provocado por esse problema, que nesse país tem causas estruturais, vinculadas à falta de modernização do sistema de distribuição e fornecimento, que este ano se agravaram em razão de uma seca de níveis históricos.

Em Havana Velha, no coração da capital cubana, a situação não é melhor, segundo Yaritsa Oliveros, moradora em Jesús María, um dos bairros do centro histórico. Aos 25 anos, ela sustenta sua mãe e sua filha de quatro anos trabalhando como faxineira em um escritório municipal. “Ficamos muitos dias sem água e de repente ela chega de madrugada no prédio. Juntamos todas as vasilhas que podemos, porque não sabemos quanto teremos água novamente”, contou à IPS.

Há três anos, seu bairro foi objeto de um estudo acadêmico que incluiu 166 famílias, compostas por um total de 528 pessoas, das quais 56,1% eram mulheres e 43,9% homens. E, segundo a amostragem, 57% das famílias eram chefiadas por uma mulher, com diferentes níveis educacionais.

A maioria dos entrevistados afirmou que quase diariamente, ou a cada dois ou três dias, precisavam carregar água até suas casas e as piores dificuldades de acesso à água e ao saneamento são vividas em famílias encabeçadas por mulheres. “Minha mãe se queixa de dor na coluna de tanto carregar esse peso”, afirmou Oliveros, que não sabe se sua família participou da pesquisa.

A socióloga Reina Fleitas, pesquisadora e professora da Faculdade de Sociologia da Universidade de Havana, declarou à IPS que esse estudo, único de seu tipo já realizado em Cuba, permitiu constatar inclusive situações de violência familiar e entre vizinhos, geradas pelas tensões provenientes do deficiente abastecimento de água.
A pesquisa também permitiu comprovar que a maior responsabilidade sobre a gestão e o uso do recurso recai sobre as mulheres, que organizam e reorganizam sua vida cotidiana dependendo da disponibilidade de água. “As jornadas domésticas se estendem e elas chegam tarde ao trabalho, gerando incompreensões. É uma cadeia de fatos que afetam sua vida pessoal, com forte impacto na saúde física e mental”, destacou Fleitas.

Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Recursos Hidráulicos (UNRH) de Cuba publicados na imprensa oficial datam de 2014 e indicam que, apesar de 73,5% da população cubana ter acesso à água potável por meio da rede, ainda há um número importante de pessoas que a recebem por outras vias. Porém, mais de 50% do recurso é perdido em seu caminho pela velha rede que distribui a água até os pontos de consumo.

O INRH dirige, executa e controla a aplicação da política do Estado em matéria de recursos hídricos do país, e atualmente realiza um programa que tenta solucionar gradualmente os problemas no abastecimento e tratamento da água.

“No meu bairro, a falta de água se agravou pelos consertos que estão sendo realizados, mas ao menos é uma esperança de que algum dia melhoremos, apesar de também dizerem que por causa da seca haverá mais escassez”, observou Oliveros. Por sua vez, Arrascaeta afirmou que uma de suas vizinhas telefona para o INRH cada vez que a situação fica crítica e recebe diferentes desculpas. “Já não acreditamos em ninguém”, afirmou.

A Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, aprovada em setembro na cúpula mundial da Organização das Nações Unidas (ONU), em sua sede, em Nova York, estabelece, no sexto dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), “garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todos”.

A subdiretora-executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Geeta Rao Gupta, afirmou em outubro que “nossos dados sobre 45 países em desenvolvimento mostram que, para sete em cada dez famílias, o peso de ir buscar água recai sobre as mulheres e as meninas, por isso melhorar o acesso ao recurso contribuirá para a igualdade de gênero”.
Mulher mostra um poço improvisado para coleta de água potável, que colocou em funcionamento no município de Santiago de las Vegas, em Havana, para atenuar o problema do desabastecimento na capital de Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS.

Para a socióloga Fleitas, um enfoque diferencial do problema deve levar em conta que são as mulheres pobres, de grupos étnicos minoritários e outros setores vulneráveis e discriminados de alguns países que sofrem os piores impactos da escassez da água, um problema que aumenta em nível global.

Para Fleitas, “a perspectiva social da diferença que busca igualdade de oportunidades deveria estar no diagnóstico que se faz sobre o desenvolvimento territorial, no planejamento da distribuição dos recursos e na avaliação de seus impactos. Muitos problemas de enfoque de política seguem uma visão reduzida do social, ou muito técnica do planejamento territorial”.

Quanto ao recurso hídrico, a professora insistiu no quanto é essencial seu abastecimento, principalmente na vida das mulheres. “Define a organização de seu tempo, elas lavam, limpam, cozinham, são responsáveis na formação de uma cultura da higiene na infância. Lamentamos que sejam as mulheres a carregarem o peso dessa responsabilidade, e não se deve ignorar isso quando se toma decisões políticas”, ressaltou Fleitas.

A pesquisadora cubana também recordou que a escassez de água não se agrava apenas pela mudança climática, porque se deve acrescentar os conflitos bélicos no mundo, que arrasam as infraestruturas e deixam águas contaminadas. “Se dá prioridade a uma corrida armamentista em lugar de se voltar ao desenvolvimento de países com enormes desvantagens de serviços de água”, lamentou.

Como país insular, Cuba depende majoritariamente das chuvas para se abastecer de água e este ano sofreu uma das secas históricas. Ao fim da estação úmida de maio a outubro, suas 242 represas continham 4,555 bilhões de metros cúbicos de água, apenas metade de sua capacidade, o que antecipa a continuidade das penúrias hídricas. Entre novembro de 2014 e outubro de 2015, a seca atingiu 68% desse território caribenho, mas foi mais acentuada na parte ocidental, que é polo da produção de alimentos do país.


Fonte: ENVOLVERDE

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