segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Sem carrancas espírito do São Francisco some, assim como suas águas.
Barco no Rio São Francisco. Fotos: Julio Ottoboni

Por Júlio Ottoboni* 

O programa “Caminhos do São Francisco” criado e executado pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS) para a região do baixo Rio São Francisco, em Alagoas, promoveu mais que uma nova fase na economia baseada no turismo e na sustentabilidade. Mas um resgate da autoestima e o reforço no processo de resistência histórico-cultural, já muito presente nas cidades.

A cidade de Penedo, considerada uma joia rara nas margens do rio por seu acervo arquitetônico com igrejas e casarios dos séculos 17 e 18 muito bem preservados, assim como em Piranhas, onde há a Rota do Cangaço. A foto histórica feita em 28 de julho de 1938 com as cabeças de Lampião, Maria Bonita e mais oito integrantes de seu bando foi feita na antiga escadaria da prefeitura local. O imaginário local é povoado de história do bando.
Prefeitura de Piranhas

A culinária região e suas particularidades também são preservadas com rigor, o mesmo que a faz ser transmitida para as gerações mais novas. Viajar pelas 12 cidades inclusas no ‘Caminhos do São Francisco’, várias delas tombadas pelo Iphan,  é conhecer detalhes de um Brasil pioneiro e de tradições únicas e dono de um riquíssimo folclore.

O processo de resistência cultural é facilmente compreendido, apesar de ceder à pressão imensa existente em seu entorno. Basta analisar as embarcações que hoje ainda trafegam mesmo nas águas rasas do Velho Chico. Nenhuma delas possui as centenárias carrancas, que já desapareceram também na porção média do rio. O motivo está longe de se abrir mão das tradições, mas por motivos que beiram a inquisição protestante.

Neste ano, um grupo de pastores evangélicos de Pernambuco entraram com uma ação no Ministério Público Federal e apoiados por deputados federais da ‘ bancada da bíblia’ para a retirada de duas estátuas do leito do Rio Francisco, a do Nego Dágua, em Juazeiro ( BA), e da Mãe Dágua, em Petrolina (PE). Houve até políticos ligando as estatuas a baixo volume hídrico do rio, com um castigo de Deus. Ambas as figuras são parte do folclore do rio e enraizadas na cultura de toda população ribeirinha.
Carranca

O sumiço das carrancas, que eram fixadas na proa das embarcações, tem sido proporcional a expansão dos cultos cristãos que satanizam as imagens como feições e adoração do diabo. Numa tentativa de desviar o real motivo, alguns integrantes do movimento de resistência tentem justificar que as carrancas são mais presentes no médio São Francisco.

Mas há quem não só desaprove isso como confirme que as carrancas sumiram dos últimos quilômetros do trajeto do rio. Hoje dono da Pousada Mirante do Talhado, o ex-agricultor e funcionário público aposentado e filho de pescador, José Francisco Silva, um simpático senhor na faixa de seus 75 anos, se recorda que o pai levava a carranca em seu barco.  “Minha mãe dizia para ele ter cuidado que vinha chuva e a resposta era que estava protegido pela carranca”, relembra.  

Uma senhora que escutava a entrevista e que presta serviço passeios de barco reagiu imediatamente. “Eu vou encomendar uma carranca e vou colocar no minha embarcação”, disse com firmeza de quem quer recuperar a tradição. A única carranca vista foi como adorno nos jardins da Pousada Trilhas do Velho Chico, em Piranhas.

Existem muitas versões históricas sobre o aparecimento das carrancas, surgidas em meados  do século 19.  Estudos antropológicos, segundo a crença e o misticismo dos habitantes da região, as carrancas serviam de amuletos de proteção e salvaguardavam os barqueiros, viajantes e moradores contra as tempestades, perigos e maus presságios. E serviam também para espantar os animais e entidades espirituais moradores do rio São Francisco que de noite saiam das profundezas das águas para assombrar barqueiros.
Rio São Francisco

História do São Francisco

O Rio São Francisco foi descoberto pelo navegador de Florença, Américo Vespúcio, em 04 de outubro 1501, quando esse navegou em sua foz, em Alagoas. Os índios da região o chamavam de Opara, como denominavam rio-mar. Seu nome deve-se a uma homenagem a São Francisco de Assis, nascido no mesmo dia, 319 anos antes de sua descoberta pelos europeus e ingressar na cartografia mundial. Seu surgimento geológico pode ter corrido entre 130 e 65 milhões de anos.

Da Serra da Canastra a 1,2 mil metros de altitude até o Oceano Atlântico são 2863 quilômetros. As carrancas centenárias usadas nas embarcações são figuras zoantropomórficas, meio bicho, meio gente tem o poder sobre os espíritos e animais do rio.

Júlio Ottoboni é jornalista diplomado, pós graduado em jornalismo científico. Tem 30 anos de profissão, atuou na AE, Estadão, GZM, JB entre outros veículos. Tem diversos cursos na área de meio ambiente, tema ao qual se dedica atualmente. 


Fonte: ENVOLVERDE

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