Sem
carrancas espírito do São Francisco some, assim como suas águas.
Barco no Rio São Francisco. Fotos: Julio Ottoboni
Por Júlio Ottoboni*
O programa “Caminhos do São Francisco” criado e
executado pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade
(IABS) para a região do baixo Rio São Francisco, em Alagoas, promoveu mais que
uma nova fase na economia baseada no turismo e na sustentabilidade. Mas um
resgate da autoestima e o reforço no processo de resistência
histórico-cultural, já muito presente nas cidades.
A cidade de Penedo, considerada uma joia rara nas
margens do rio por seu acervo arquitetônico com igrejas e casarios dos séculos
17 e 18 muito bem preservados, assim como em Piranhas, onde há a Rota do
Cangaço. A foto histórica feita em 28 de julho de 1938 com as cabeças de
Lampião, Maria Bonita e mais oito integrantes de seu bando foi feita na antiga
escadaria da prefeitura local. O imaginário local é povoado de história do
bando.
Prefeitura de Piranhas
A culinária região e suas particularidades também
são preservadas com rigor, o mesmo que a faz ser transmitida para as gerações
mais novas. Viajar pelas 12 cidades inclusas no ‘Caminhos do São Francisco’,
várias delas tombadas pelo Iphan, é conhecer detalhes de um Brasil pioneiro
e de tradições únicas e dono de um riquíssimo folclore.
O processo de resistência cultural é facilmente
compreendido, apesar de ceder à pressão imensa existente em seu entorno. Basta
analisar as embarcações que hoje ainda trafegam mesmo nas águas rasas do Velho
Chico. Nenhuma delas possui as centenárias carrancas, que já desapareceram
também na porção média do rio. O motivo está longe de se abrir mão das
tradições, mas por motivos que beiram a inquisição protestante.
Neste ano, um grupo de pastores evangélicos de
Pernambuco entraram com uma ação no Ministério Público Federal e apoiados por
deputados federais da ‘ bancada da bíblia’ para a retirada de duas estátuas do
leito do Rio Francisco, a do Nego Dágua, em Juazeiro ( BA), e da Mãe Dágua, em
Petrolina (PE). Houve até políticos ligando as estatuas a baixo volume hídrico
do rio, com um castigo de Deus. Ambas as figuras são parte do folclore do rio e
enraizadas na cultura de toda população ribeirinha.
Carranca
O sumiço das carrancas, que eram fixadas na proa
das embarcações, tem sido proporcional a expansão dos cultos cristãos que
satanizam as imagens como feições e adoração do diabo. Numa tentativa de
desviar o real motivo, alguns integrantes do movimento de resistência tentem
justificar que as carrancas são mais presentes no médio São Francisco.
Mas há quem não só desaprove isso como confirme que
as carrancas sumiram dos últimos quilômetros do trajeto do rio. Hoje dono da
Pousada Mirante do Talhado, o ex-agricultor e funcionário público aposentado e
filho de pescador, José Francisco Silva, um simpático senhor na faixa de seus
75 anos, se recorda que o pai levava a carranca em seu barco. “Minha mãe
dizia para ele ter cuidado que vinha chuva e a resposta era que estava
protegido pela carranca”, relembra.
Uma senhora que escutava a entrevista e que presta
serviço passeios de barco reagiu imediatamente. “Eu vou encomendar uma carranca
e vou colocar no minha embarcação”, disse com firmeza de quem quer recuperar a
tradição. A única carranca vista foi como adorno nos jardins da Pousada Trilhas
do Velho Chico, em Piranhas.
Existem muitas versões históricas sobre o
aparecimento das carrancas, surgidas em meados do século 19.
Estudos antropológicos, segundo a crença e o misticismo dos habitantes da
região, as carrancas serviam de amuletos de proteção e salvaguardavam os
barqueiros, viajantes e moradores contra as tempestades, perigos e maus
presságios. E serviam também para espantar os animais e entidades espirituais
moradores do rio São Francisco que de noite saiam das profundezas das águas
para assombrar barqueiros.
Rio São Francisco
História do São Francisco
O Rio São Francisco foi descoberto pelo navegador
de Florença, Américo Vespúcio, em 04 de outubro 1501, quando esse navegou em
sua foz, em Alagoas. Os índios da região o chamavam de Opara, como denominavam
rio-mar. Seu nome deve-se a uma homenagem a São Francisco de Assis, nascido no
mesmo dia, 319 anos antes de sua descoberta pelos europeus e ingressar na
cartografia mundial. Seu surgimento geológico pode ter corrido entre 130 e 65
milhões de anos.
Da Serra da Canastra a 1,2 mil metros de altitude
até o Oceano Atlântico são 2863 quilômetros. As carrancas centenárias usadas
nas embarcações são figuras zoantropomórficas, meio bicho, meio gente tem o
poder sobre os espíritos e animais do rio.
* Júlio Ottoboni é jornalista
diplomado, pós graduado em jornalismo científico. Tem 30 anos de profissão,
atuou na AE, Estadão, GZM, JB entre outros veículos. Tem diversos cursos na
área de meio ambiente, tema ao qual se dedica atualmente.
Fonte: ENVOLVERDE
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