sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Política de clima negligencia o Cerrado.
Plano entregue à ONU não menciona o segundo maior bioma do país, sob pressão intensa.

Por Mercedes Bustamante*

“Pobre México: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.” A famosa frase de Porfírio Díaz, presidente do México de 1876 a 1880 e de 1884 a 1911, descreve com ironia a relação entre os dois países. Guardadas as devidas proporções, a frase se aplicaria também à situação do Cerrado em comparação com a Amazônia no âmbito das políticas ambientais brasileiras, em particular das políticas associadas ao combate do desmatamento e à mitigação das mudanças climáticas.

Originalmente o Cerrado cobria aproximadamente 24% do território brasileiro (cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados). É o segundo maior bioma brasileiro e da América do Sul. É considerado estratégico sob diferentes perspectivas que frequentemente colidem na elaboração e condução de políticas públicas: geração de recursos hídricos – a região abriga as nascentes de três grandes bacia do continente sul-americano (Tocantins-Araguaia, Paraná-Prata, São Francisco), produção de alimentos e bioenergia (maior região produtora de grãos e carne, tem produção expressiva de biocombustíveis), regulação climática (estoques e fluxos significativos de carbono no solo e na vegetação), biodiversidade (maior diversidade de plantas entre as savanas tropicais, com cerca de 12.000 espécies de plantas com flores).

O Código Florestal brasileiro define que a Reserva Legal deve ser de 80% em propriedades rurais localizadas em área de floresta na Amazônia Legal, 35% em propriedades situadas em áreas de cerrado na Amazônia Legal (sendo no mínimo 20% na propriedade e 15% na forma de compensação ambiental em outra área, porém na mesma microbacia) e 20% nas propriedades situadas nas demais áreas do Cerrado.

Hoje o Cerrado apresenta 2,85% de sua área total protegida em unidades de conservação de proteção integral e 5,36% em unidades de conservação de uso sustentável. Áreas Protegidas na Amazônia Legal somam 43,9% da região, sendo as que unidades de proteção integral totalizam 37,8% da área ocupada pelas UCs. Por fim, enquanto o bioma Amazônia ainda mantém cerca de 80% de sua cobertura original, 50% do Cerrado já foi convertido para outros usos nos últimos 50 anos.

Enquanto são inegáveis os esforços brasileiros em conservar a maior extensão de florestas tropicais do mundo, é estarrecedor que esforços de igual magnitude não estejam em curso para a conservação e gestão da savana mais biodiversa do planeta, reconhecendo sua relevância para a regulação do clima.

A Política Nacional de Mudança do Clima, instituída em 2009 por meio da Lei no 12.187, oficializou o compromisso voluntário do Brasil junto à Convenção do Clima das Nações Unidas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 36,1% e 38,9% das emissões projetadas para 2020. O Decreto no 7.390/2010 apresentou a linha de base de emissões de GEE para 2020 em 3,236 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Portanto, a redução correspondente deveria ser entre 1,168 e 1,259 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, respectivamente. Esse montante envolveria a redução de 80% da taxa anual de desmatamento de Amazônia e 40% dos índices anuais de desmatamento do bioma Cerrado em relação à média verificada entre os anos de 1999 a 2008.

A taxa média anual de desmatamento do Cerrado foi estimada em cerca de 18 mil quilômetros quadrados (km2) entre 1994-2002 e 14,1 mil km2 entre 2003-2008. O total das emissões projetadas para o ano de 2020 é resultado da multiplicação, em etapas sucessivas, da taxa de desmatamento projetada – 15,7 mil km2, pelo valor médio de emissões de CO2 por unidade de área. Dessa forma, estabeleceu-se pela PNMC que uma taxa “aceitável” de desmatamento no Cerrado seria a perda anual de cerca de 9,4 mil km2! Essa taxa significaria perder cerca de 1% ao ano da área remanescente de Cerrado em 2009. Entretanto, entre 2009-2010 quando a PNMC foi lançada a taxa de desmatamento no Cerrado já era de cerca de 6,5 km2 (7,6 mil entre 2008-2009) e assim a PNMC definiu um compromisso para o Cerrado que já havia sido atingido antes de sua implementação.

Isso indica que, já em 2009, compromissos mais ambiciosos e robustos para a conservação e uso sustentável do Cerrado poderiam ter sido encaminhados pela política brasileira de clima.

Hoje a taxa média anual de desmatamento no Cerrado está em torno de 6 mil quilômetros quadrados, ou seja, superior à perda de cobertura nativa na Amazônia em 2014 (4,8 mil quilômetros quadrados). Essa taxa é um valor médio e regiões que hoje concentram as novas frentes do desmatamento vem perdendo vegetação nativa a taxas maiores ocasionando um intenso processo de fragmentação que compromete importantes funções ecológicas. Adicionalmente, o bioma concentra aproximadamente 5 milhões de hectares de áreas de vegetação, em especial nas áreas de intenso uso agropecuário, que devem ser restauradas de acordo com o Código Florestal (sendo 1, 7 milhão de hectares de áreas de preservação permanente, tão relevantes para a conservação dos recursos hídricos).

Se já em 2009, era preocupante ver um compromisso pouco ambicioso por parte do governo brasileiro com relação ao desmatamento do Cerrado, seis anos depois, o texto da contribuição brasileira para o acordo de Paris, a INDC, acentua essa preocupação. Ao contrário do texto da PNMC, o texto da INDC nem ao menos menciona o Cerrado. Dado o avanço do desmatamento, em breve, realmente se tornará desnecessário mencioná-lo.

A INDC do Brasil indica a intenção de conter o desmatamento ilegal na Amazônia apenas em 2030. Não indicação de contenção do desmatamento no Cerrado. Assumiu-se que isso não é um problema? Postergar por mais 15 anos a contenção do desmatamento ilegal da Amazônia já não é um bom sinal. Não mencionar o desmatamento ilegal (ou o desmatamento legal, eufemisticamente denominado supressão de vegetação) em outros biomas é um péssimo sinal. Cabe aqui lembrar que, ao lado Cerrado, temos uma situação crítica de desmatamento também na Caatinga.

Brasil comprometeu-se a reduzir as suas emissões em 37% abaixo dos níveis de 2005 até 2025 (chegando à emissão de 1,3bilhão de toneladas de CO2 equivalente em 2025) e em 43% abaixo dos níveis de 2005 até 2030 (emitindo 1,2 bilhão de toneladas em 2030). Em 2012, as emissões totais de GEE do Brasil foram 1,203bilhão de toneladas de CO2 equivalente. Assim, a INDC do Brasil exige, essencialmente, uma estabilização de suas emissões totais e deixa uma margem para um pequeno crescimento.

O compromisso de redução da INDC até 2025 está garantido pela redução das emissões oriundas de mudanças no uso da terra, sobretudo pelo combate ao desmatamento na Amazônia, e restringe ao período após 2025 a cota adicional de mitigação em relação aos esforços já realizados. Aqui um compromisso claro acompanhado de um esforço político consistente de reduzir o desmatamento no Cerrado e nos demais biomas de forma mais ambiciosa ao planteado em 2009 poderia ser um sinal significativo de que a política ambiental e de clima do Brasil está sendo planejada considerado toda sua extensão territorial e riqueza natural.

Adicionalmente, a INDC do Brasil indica a intenção de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030. Considerando os 15 anos até 2030, tal reflorestamento deverá ser majoritariamente com o uso de espécies exóticas em sistemas intensivos. Mesmo considerando essas espécies de crescimento rápido, parece pouco factível cumprir essa meta sem que já esteja em curso um conjunto objetivo de medidas para garantir seu cumprimento.

Aqui novamente, percebe-se a pouca relevância dada à presente situação ambiental do Cerrado. A distribuição das áreas convertidas no Cerrado não é homogênea. Temos áreas de ocupação mais antiga e com menores proporções de remanescentes na porção sul do bioma, enquanto a região norte do Cerrado concentra os últimos grandes remanescentes de vegetação nativa e também as novas frentes de desmatamento que avançam pela subregião conhecida como Mapitoba (Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia). Isso significa que as estratégias de mitigação aliadas à conservação devem incluir a proteção dos remanescentes de Cerrado ao norte e restauração ecológica na porção sul. Há hoje uma preocupação global com a conservação de ecossistemas não florestais em função das proposições de florestamento (afforestation) desses sistemas como estratégia de mitigação.

Incentivar estratégias de restauração de sistemas florestais e savânicas no Cerrado como base em espécies representa uma oportunidade ímpar de associar mitigação, adaptação e conservação da biodiversidade no Cerrado. Infelizmente, não há sinais de que isso esteja em curso.

Por fim, a INDC brasileira ignora a prevenção e controle de incêndios florestais que se intensificam a mudança climática e mudanças de uso de solo e representam um vetor importante de degradação.

Nos moldes do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, o PPCDAm, lançado em 2004, o governo brasileiro lançou em 2010 o PPCerrado, que tem como objetivo promover a redução contínua da taxa de desmatamento e da degradação florestal, bem como da incidência de queimadas e incêndios florestais no Cerrado através da integração e aperfeiçoamento das ações de monitoramento e controle de órgãos federais. Suas ações visam a regularização ambiental das propriedades rurais, gestão florestal sustentável e combate às queimadas, ordenamento territorial, conservação da biodiversidade, proteção dos recursos hídricos e uso sustentável dos recursos naturais, incentivo a atividades econômicas sustentáveis, manutenção de áreas nativas e recuperação de áreas degradadas.

Considerando a maneira como o Cerrado foi tratado na INDC, cabe perguntar que prioridade tem o PPCerrado neste momento. 

* Mercedes Bustamante é doutora em geobotânica pela Universität Trier, na Alemanha, e professora de ecologia da Universidade de Brasília. Uma das maiores especialistas do país em ecologia do cerrado, é membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e do PBMC (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas). Foi diretora de Políticas e Programas Temáticos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e coordenou o 3o Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa.


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