Política
de clima negligencia o Cerrado.
Plano entregue à ONU não menciona o segundo
maior bioma do país, sob pressão intensa.
Por Mercedes Bustamante*
“Pobre México: tão longe de Deus e tão perto dos
Estados Unidos.” A famosa frase de Porfírio Díaz, presidente do México de 1876
a 1880 e de 1884 a 1911, descreve com ironia a relação entre os dois países.
Guardadas as devidas proporções, a frase se aplicaria também à situação do
Cerrado em comparação com a Amazônia no âmbito das políticas ambientais
brasileiras, em particular das políticas associadas ao combate do desmatamento
e à mitigação das mudanças climáticas.
Originalmente o Cerrado cobria aproximadamente
24% do território brasileiro (cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados). É o
segundo maior bioma brasileiro e da América do Sul. É considerado estratégico
sob diferentes perspectivas que frequentemente colidem na elaboração e condução
de políticas públicas: geração de recursos hídricos – a região abriga as
nascentes de três grandes bacia do continente sul-americano
(Tocantins-Araguaia, Paraná-Prata, São Francisco), produção de alimentos e
bioenergia (maior região produtora de grãos e carne, tem produção expressiva de
biocombustíveis), regulação climática (estoques e fluxos significativos de
carbono no solo e na vegetação), biodiversidade (maior diversidade de plantas
entre as savanas tropicais, com cerca de 12.000 espécies de plantas com
flores).
O Código Florestal brasileiro define que a
Reserva Legal deve ser de 80% em propriedades rurais localizadas em área de
floresta na Amazônia Legal, 35% em propriedades situadas em áreas de cerrado na
Amazônia Legal (sendo no mínimo 20% na propriedade e 15% na forma de compensação
ambiental em outra área, porém na mesma microbacia) e 20% nas propriedades
situadas nas demais áreas do Cerrado.
Hoje o Cerrado apresenta 2,85% de sua área total
protegida em unidades de conservação de proteção integral e 5,36% em unidades
de conservação de uso sustentável. Áreas Protegidas na Amazônia Legal somam
43,9% da região, sendo as que unidades de proteção integral totalizam 37,8% da
área ocupada pelas UCs. Por fim, enquanto o bioma Amazônia ainda mantém cerca
de 80% de sua cobertura original, 50% do Cerrado já foi convertido para outros
usos nos últimos 50 anos.
Enquanto são inegáveis os esforços brasileiros em
conservar a maior extensão de florestas tropicais do mundo, é estarrecedor que
esforços de igual magnitude não estejam em curso para a conservação e gestão da
savana mais biodiversa do planeta, reconhecendo sua relevância para a regulação
do clima.
A Política Nacional de Mudança do Clima,
instituída em 2009 por meio da Lei no 12.187, oficializou o compromisso
voluntário do Brasil junto à Convenção do Clima das Nações Unidas de redução de
emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 36,1% e 38,9% das emissões
projetadas para 2020. O Decreto no 7.390/2010 apresentou a linha de base de
emissões de GEE para 2020 em 3,236 bilhões de toneladas de CO2 equivalente.
Portanto, a redução correspondente deveria ser entre 1,168 e 1,259 bilhões de
toneladas de CO2 equivalente, respectivamente. Esse montante envolveria a
redução de 80% da taxa anual de desmatamento de Amazônia e 40% dos índices
anuais de desmatamento do bioma Cerrado em relação à média verificada entre os
anos de 1999 a 2008.
A taxa média anual de desmatamento do Cerrado foi
estimada em cerca de 18 mil quilômetros quadrados (km2) entre 1994-2002 e 14,1
mil km2 entre 2003-2008. O total das emissões projetadas para o ano de 2020 é
resultado da multiplicação, em etapas sucessivas, da taxa de desmatamento
projetada – 15,7 mil km2, pelo valor médio de emissões de CO2 por unidade de
área. Dessa forma, estabeleceu-se pela PNMC que uma taxa “aceitável” de
desmatamento no Cerrado seria a perda anual de cerca de 9,4 mil km2! Essa taxa
significaria perder cerca de 1% ao ano da área remanescente de Cerrado em 2009.
Entretanto, entre 2009-2010 quando a PNMC foi lançada a taxa de desmatamento no
Cerrado já era de cerca de 6,5 km2 (7,6 mil entre 2008-2009) e assim a PNMC
definiu um compromisso para o Cerrado que já havia sido atingido antes de sua
implementação.
Isso indica que, já em 2009, compromissos mais
ambiciosos e robustos para a conservação e uso sustentável do Cerrado poderiam
ter sido encaminhados pela política brasileira de clima.
Hoje a taxa média anual de desmatamento no
Cerrado está em torno de 6 mil quilômetros quadrados, ou seja, superior à perda
de cobertura nativa na Amazônia em 2014 (4,8 mil quilômetros quadrados). Essa
taxa é um valor médio e regiões que hoje concentram as novas frentes do
desmatamento vem perdendo vegetação nativa a taxas maiores ocasionando um
intenso processo de fragmentação que compromete importantes funções ecológicas.
Adicionalmente, o bioma concentra aproximadamente 5 milhões de hectares de
áreas de vegetação, em especial nas áreas de intenso uso agropecuário, que
devem ser restauradas de acordo com o Código Florestal (sendo 1, 7 milhão de
hectares de áreas de preservação permanente, tão relevantes para a conservação
dos recursos hídricos).
Se já em 2009, era preocupante ver um compromisso
pouco ambicioso por parte do governo brasileiro com relação ao desmatamento do
Cerrado, seis anos depois, o texto da contribuição brasileira para o acordo de
Paris, a INDC, acentua essa preocupação. Ao contrário do texto da PNMC, o texto
da INDC nem ao menos menciona o Cerrado. Dado o avanço do desmatamento, em
breve, realmente se tornará desnecessário mencioná-lo.
A INDC do Brasil indica a intenção de conter o
desmatamento ilegal na Amazônia apenas em 2030. Não indicação de contenção do
desmatamento no Cerrado. Assumiu-se que isso não é um problema? Postergar por
mais 15 anos a contenção do desmatamento ilegal da Amazônia já não é um bom
sinal. Não mencionar o desmatamento ilegal (ou o desmatamento legal,
eufemisticamente denominado supressão de vegetação) em outros biomas é um
péssimo sinal. Cabe aqui lembrar que, ao lado Cerrado, temos uma situação
crítica de desmatamento também na Caatinga.
Brasil comprometeu-se a reduzir as suas emissões
em 37% abaixo dos níveis de 2005 até 2025 (chegando à emissão de 1,3bilhão de
toneladas de CO2 equivalente em 2025) e em 43% abaixo dos níveis de 2005 até
2030 (emitindo 1,2 bilhão de toneladas em 2030). Em 2012, as emissões totais de
GEE do Brasil foram 1,203bilhão de toneladas de CO2 equivalente. Assim, a INDC
do Brasil exige, essencialmente, uma estabilização de suas emissões totais e
deixa uma margem para um pequeno crescimento.
O compromisso de redução da INDC até 2025 está
garantido pela redução das emissões oriundas de mudanças no uso da terra,
sobretudo pelo combate ao desmatamento na Amazônia, e restringe ao período após
2025 a cota adicional de mitigação em relação aos esforços já realizados. Aqui
um compromisso claro acompanhado de um esforço político consistente de reduzir
o desmatamento no Cerrado e nos demais biomas de forma mais ambiciosa ao
planteado em 2009 poderia ser um sinal significativo de que a política
ambiental e de clima do Brasil está sendo planejada considerado toda sua
extensão territorial e riqueza natural.
Adicionalmente, a INDC do Brasil indica a
intenção de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até
2030. Considerando os 15 anos até 2030, tal reflorestamento deverá ser
majoritariamente com o uso de espécies exóticas em sistemas intensivos. Mesmo
considerando essas espécies de crescimento rápido, parece pouco factível
cumprir essa meta sem que já esteja em curso um conjunto objetivo de medidas
para garantir seu cumprimento.
Aqui novamente, percebe-se a pouca relevância
dada à presente situação ambiental do Cerrado. A distribuição das áreas
convertidas no Cerrado não é homogênea. Temos áreas de ocupação mais antiga e
com menores proporções de remanescentes na porção sul do bioma, enquanto a
região norte do Cerrado concentra os últimos grandes remanescentes de vegetação
nativa e também as novas frentes de desmatamento que avançam pela subregião
conhecida como Mapitoba (Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia). Isso significa
que as estratégias de mitigação aliadas à conservação devem incluir a proteção
dos remanescentes de Cerrado ao norte e restauração ecológica na porção sul. Há
hoje uma preocupação global com a conservação de ecossistemas não florestais em
função das proposições de florestamento (afforestation) desses sistemas como
estratégia de mitigação.
Incentivar estratégias de restauração de sistemas
florestais e savânicas no Cerrado como base em espécies representa uma
oportunidade ímpar de associar mitigação, adaptação e conservação da
biodiversidade no Cerrado. Infelizmente, não há sinais de que isso esteja em
curso.
Por fim, a INDC brasileira ignora a prevenção e
controle de incêndios florestais que se intensificam a mudança climática e
mudanças de uso de solo e representam um vetor importante de degradação.
Nos moldes do Plano de Prevenção e Controle do
Desmatamento na Amazônia, o PPCDAm, lançado em 2004, o governo brasileiro
lançou em 2010 o PPCerrado, que tem como objetivo promover a redução contínua
da taxa de desmatamento e da degradação florestal, bem como da incidência de
queimadas e incêndios florestais no Cerrado através da integração e
aperfeiçoamento das ações de monitoramento e controle de órgãos federais. Suas
ações visam a regularização ambiental das propriedades rurais, gestão florestal
sustentável e combate às queimadas, ordenamento territorial, conservação da
biodiversidade, proteção dos recursos hídricos e uso sustentável dos recursos
naturais, incentivo a atividades econômicas sustentáveis, manutenção de áreas
nativas e recuperação de áreas degradadas.
Considerando a maneira como o Cerrado foi tratado
na INDC, cabe perguntar que prioridade tem o PPCerrado neste momento.
* Mercedes Bustamante
é doutora em geobotânica pela Universität Trier, na Alemanha, e professora de
ecologia da Universidade de Brasília. Uma das maiores especialistas do país em
ecologia do cerrado, é membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas) e do PBMC (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas). Foi diretora
de Políticas e Programas Temáticos do Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação, e coordenou o 3o Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa.
Fonte: Observatório
do Clima
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