Terramérica
– Papa se une à luta contra os transgênicos.
Não há privilégios para os cultivos transgênicos na
Laudato si, a primeira e ecológica encíclica do papa Francisco, sobre o cuidado
da casa comum, o planeta. Foto: Norberto Miguel/IPS.
Emilio Godoy*
Cidade do México, México, 10 de agosto de 2015
(Terramérica).- Há alguns séculos, a indústria da biotecnologia poderia comprar
uma bula papal para expiar seus pecados e obter a redenção. Mas, em sua
ecológica encíclica Laudato si, o papa Francisco condenou os organismos
geneticamente modificados (OGM) sem perdão possível. Em sua primeira encíclica
aos católicos desde que iniciou seu pontificado, em 24 de maio de 2015, o
argentino Jorge Mario Bergoglio critica os OGM por seus impactos agrários,
sociais e econômicos e pede um debate amplo e científico sobre eles.
Laudato si, Louvado sejas, em italiano antigo, toma o título
de um cântico de Francisco de Assis que diz: “Louvado sejas, meu Senhor, pela
nossa mãe terra, a qual nos sustenta, e governa e produz diversos frutos com
coloridas flores e erva”. É a primeira encíclica na história dedicada à
situação ambiental e a refletir sobre a “casa comum” da humanidade, o planeta.
O documento reconhece a falta de “comprovação contundente” sobre o dano que os
OGM poderiam causar aos seres humanos, mas destaca que “existem dificuldades
importantes que não devem ser relativizadas”.
A encíclica diz que, “em muitos lugares, depois da
introdução desses cultivos, se constata uma concentração de terras produtivas
nas mãos de poucos, devido ao progressivo desaparecimento de pequenos produtores
que, em consequência da perda de suas terras, foram obrigados a se retirar da
produção direta”. Por causa disso, o primeiro papa latino-americano denuncia a
precarização do emprego, a migração rural para barracos urbanos, a devastação
dos ecossistemas e o surgimento de oligopólios de sementes e insumos.
Diante desse contexto, Francisco propõe “uma
discussão científica e social que seja responsável e ampla, capaz de considerar
toda a informação disponível e de chamar as coisas por seu nome”, porque “às
vezes não são colocadas sobre a mesa todas as informações, que são selecionadas
segundo os próprios interesses, sejam políticos, econômicos ou ideológicos”. É
o tipo de debate que falta sobre os OGM e no qual a indústria biotecnológica se
nega a abrir suas bases de dados para se comprovar se são inócuos ou não.
Esse debate necessita, segundo a encíclica, de
“espaços de discussão onde todos os que de algum modo puderam se viram direta
ou indiretamente afetados (agricultores, consumidores, autoridades, cientistas,
produtores, vendedores de sementes, populações vizinhas aos campos fumigados e
outros) possam expor suas problemáticas ou ter acesso a informação ampla e
fidedigna para tomar decisões tendentes ao bem comum presente e futuro”.
“O México já é uma referência na luta para que se
faça justiça no que se refere ao direito a um ambiente sadio, pela constância
decidida das organizações sociais. Nossa demanda coletiva se fortalece com a
encíclica”, apontou ao Terramérica o padre Miguel Concha, diretor do não
governamental Centro de Direitos Humanos Frei Francisco de Vitoria. Ele faz
suas as palavras da encíclica de que os transgênicos têm implicações sociais,
econômicas, legais e éticas.
A encíclica é de especial importância para nações
como o México, cenário de intenso debate sobre os transgênicos, principalmente
no caso do milho, grão de simbolismo cultural para este país latino-americano,
além de base de sua alimentação. E igualmente para Guatemala, El Salvador,
Honduras, Nicarágua e Costa Rica, que com o sul do México formam a Mesoamérica,
assento da civilização maia.
O papa conhece de perto o impacto dos cultivos
transgênicos, porque a Argentina, seu país, é, segundo os especialistas, onde
as sementes modificadas mais alteraram a agricultura tradicional dentro da
América Latina. Um exemplo é o cultivo da soja: dos 31 milhões de hectares
cultivados no país, 20,2 milhões são de sementes modificadas. A monocultura da
soja desloca os produtores locais, gera alta concentração no setor e cria “um
círculo vicioso altamente perigoso para a sustentabilidade de nossos sistemas
produtivos”, pontuou ao Terramérica o acadêmico e engenheiro agrônomo
argentino, Carlos Toledo.
Quase toda a produção de OGM se concentra em dez
países: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá, Índia, China, Paraguai,
África do Sul, Paquistão e Uruguai, nessa ordem. A maioria desses cultivos é
destinada à forragem para pecuária industrial, mas o México pretende que o
milho entre na cadeia alimentar humana.
María Solís, produtora de milho nativo do México,
debulha suas espigas de variadas cores em um mercado comunitário. A plantação
tradicional do cereal se vê ameaçada pelas tentativas de se impor o cultivo
transgênico no país. Foto: Emilio Godoy/IPS.
No México vigora, desde 2013, uma suspensão
judicial de autorizações para plantar comercialmente milho transgênico, ao ser
aceita uma demanda de ação coletiva promovida em julho daquele ano por 53
particulares e 23 organizações da sociedade civil. Além disso, desde março de
2014, organizações de apicultores e comunidades indígenas obtiveram outros amparos
provisórios contra a plantação comercial de soja modificada nos Estados de
Campeche e Yucatán.
No dia 30 de abril do ano passado, oito cientistas
de seis países enviaram uma carta aberta ao papa Francisco, chamando sua
atenção para a situação dos OGM, especialmente a cruzada em território
mexicano. Na carta denunciam as sequelas ambientais, econômicas, agrícolas,
culturais e sociais dos OGM e questionam seus resultados.
Os cientistas se referiram à “enorme
transcendência” de Francisco “se expressar criticamente sobre os transgênicos e
em apoio à agricultura camponesa, o que seria uma importante ajuda para salvar
os povos e o planeta da ameaça que significa o controle da vida por parte de
empresas que monopolizam as sementes, chave de toda a rede alimentar”. Na Laudato
si, o pontífice deixa evidente que ouviu o pedido.
“A encíclica é muito esperançosa, porque expressa
uma postura ecológica. Toca fibras muito sensíveis, a situação é terrível e
merece a intervenção papal. Nos dá força moral para seguir na luta”, afirmou ao
Terramérica a acadêmica Argelia Arraiga, do Centro Universitário para a
Prevenção de Desastres, da Universidade Autônoma de Puebla.
Mas as ações legais não frearam os desejos do setor
biotecnológico no México. Em 2014, o Serviço Nacional de Saúde, Sanidade e
Qualidade Agroalimentar (Senasica), recebeu da indústria biotecnológica e de
centros de pesquisa públicos quatro pedidos para plantar experimentalmente
milho transgênico, em quase dez hectares. Além disso, foram apresentados 30
requerimentos para o plantio-piloto de algodão, experimental e comercial, para
um total de 1,18 milhão de hectares. Houve também uma solicitação para feijão,
cinco para trigo, três para limão e uma para soja, todas experimentais.
A Senasica também examina cinco pedidos da
indústria para plantar algodão e alfafa transgênicos em níveis comercial e
experimental em mais de 200 mil hectares. “Trata-se de um modelo econômico e de
desenvolvimento que ignora a produção de alimentos”, destacou o padre Concha.
Depois de conseguir que os tribunais federais descartassem 22 amparos
interpostos pelo governo e pelas empresas contra a decisão judicial de
suspender temporariamente as autorizações, os participantes da demanda se
preparam para o julgamento, que decidirá o futuro dos OGM no país.
Arriaga aprecia na encíclica um enfoque que vai
além do milho e dos transgênicos, pois envolve outras lutas ambientais. “Para
as pessoas das comunidades, é importante a mensagem papal, porque lhes diz que
precisam cuidar dos recursos. Desenvolve mais consciência”, ressaltou.
* O autor é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de
comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para
o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e
distribuído pela Agência Envolverde.
Fonte: ENVOLVERDE
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