Ministro
do STF diz que Brasil deve 'legalizar a maconha e ver como isso funciona na
vida real'.
(Mariana
Schreiber Da BBC Brasil em Brasília)
"A minha ideia de não descriminalizar tudo não
é uma posição conservadora. É uma posição de quem quer produzir um avanço
consistente", disse o ministro.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís
Roberto Barroso acredita que a descriminalização do consumo da maconha é
"um primeiro passo" que pode levar "a uma política de
legalização (das drogas) e eliminação do poder do tráfico".
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, ele explicou
por que decidiu neste momento defender apenas a liberação do consumo de
maconha, adotando uma posição divergente da do ministro Gilmar Mendes, relator
do caso que avalia a descriminalização do uso de drogas. Mendes votou por
descriminalizar todos os entorpecentes.
Barroso disse que adotou uma posição "um pouco
menos avançada" porque acredita que assim "teria mais chance de
conquistar a maioria" do tribunal.
"Tem que avançar aos poucos. Legalizar a
maconha e ver como isso funciona na vida real. E em seguida, se der certo,
fazer o mesmo teste com outras drogas", afirmou.
Como hoje ainda há muita resistência contra a
liberação das drogas, o ministro considera que, se o STF decidir por
descriminalizar tudo, "existe o risco de haver uma reação da sociedade
contra a decisão, o que os americanos chamam de backlash".
"A minha ideia de não descriminalizar tudo não
é uma posição conservadora. É uma posição de quem quer produzir um avanço
consistente", afirmou.
A decisão de Barroso de limitar seu voto à maconha
surpreendeu os defensores da liberação das drogas porque ele é considerado um
dos ministros mais progressistas do tribunal.
Por outro lado, ele teve uma posição considerada
mais ousada que Gilmar Mendes ao propor que seja usado como parâmetro objetivo
para distinguir usuários de traficantes o limite de porte de 25 gramas.
Mendes
também considera importante ter um parâmetro, mas diz que é função do Congresso
decidir.
O objetivo de criar esse critério é reduzir a
prisão de usuários, principalmente no caso dos mais pobres, pois hoje a
diferenciação entre os dois tipos de porte (de usuários e traficantes) depende
muito da avaliação subjetiva de policiais.
Até agora, apenas três ministros votaram - Edson
Fachin também defendeu liberar apenas o consumo da maconha. Após o voto de
Barroso, o julgamento foi novamente suspenso na última quinta-feira por um
pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
Decisão de Barroso de limitar seu voto à maconha
surpreendeu os defensores da liberação das drogas porque ele é considerado um
dos ministros mais progressistas.
Os 11 ministros estão analisando um Recurso Extraordinário
que questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Esse artigo
prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal,
assim como cultivar plantas com essa finalidade. O julgamento não analisa a
questão da venda das drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o
resultado.
O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São
Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. A Defensoria
argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão
(direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas si mesmo),
garantidos na Constituição
Federal.
Barroso concordou com esses argumentos, mas como o
caso concreto trata do porte de maconha, considerou que não era o momento de
incluir no seu voto outras drogas.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista
concedida por telefone dos Estados Unidos, onde ele participa de um evento com
ministros de cortes supremas de diversos países na Universidade Yale.
BBC Brasil - Por que o senhor considera que neste
momento só se deve descriminalizar a maconha?
Luís Roberto Barroso - Por três razões principais. A
primeira delas, técnica, é que o caso concreto envolve o consumo de maconha. É
mais típico no Supremo, nos casos em que se quer dar repercussão geral (quando
uma decisão sobre um caso concreto passa a valer para todo mundo), que você se
atenha a formular a tese jurídica em relação à situação concreta que está sendo
discutida. Eu não disse que é constitucional criminalizar as outras drogas.
Apenas disse que, como o caso era maconha, eu não me manifestaria sobre as
outras.
A segunda razão, um pouco decorrente da primeira, é
que a maior parte das informações que os ministros receberam ou pesquisaram
eram referentes à maconha - os memoriais dos amici curiae (instituições que se
inscrevem para opinar no julgamento), as experiências dos outros países que
foram examinadas. Portanto, não tínhamos estudado especificamente a situação do
crack, por exemplo.
A terceira razão, possivelmente uma das mais
importantes, é que eu não sei bem qual é a posição do Tribunal. Nós temos um
estilo de deliberação em que as pessoas não conversam internamente. Eu achei
que uma posição um pouco menos avançada teria mais chance de conquistar a
maioria.
Também tive a preocupação de nós não perdermos a
interlocução com a sociedade, que não apoia majoritariamente a
descriminalização das drogas. Mas eu acho que em relação à maconha é possível
conquistar, nesse momento, com explicações racionais, essa adesão da sociedade.
Ao passo que, em relação às drogas mais pesadas, isso seria mais difícil.
Minha posição é que a descriminalização em relação
a outras drogas deve ser feita mediante um debate consistente, entre pessoas
esclarecidas e informadas, de modo a conquistar a adesão da sociedade, em lugar
de funcionar como uma imposição arbitrária do tribunal. Racionalidade,
seriedade no debate e consistência nos argumentos produzem melhores resultados
que palavras de ordem.
BBC Brasil - Mas apesar de o fato concreto ser
sobre maconha, na prática está se questionando a constitucionalidade de um
artigo que trata de todas as drogas. Não seria uma oportunidade de tratar o
tema de forma mais ampla?
Barroso - Essa não é uma ação direta de
inconstitucionalidade, é um recurso extraordinário (uma ação direta questiona
se uma lei desrespeita a Constituição Federal
em tese, enquanto um recurso extraordinário parte de um caso concreto para
analisar a constitucionalidade de uma lei; apenas poucas instituições
específicas podem mover uma ação direta de inconstitucionalidade).
Para Barroso, legalizar apenas a maconha em um
primeiro momento faz sentido, já que, para ele, é preciso avançar aos poucos na
legalização das drogas.
É certo que, incidentalmente, para resolver o caso
concreto, a gente está declarando a inconstitucionalidade do artigo 28 (da Lei
de Drogas). Mas esta não foi uma ação voltada para discutir a
constitucionalidade do artigo 28. Talvez fosse até menos técnico a gente
avançar na discussão de outras drogas quando o caso concreto era um caso de
maconha.
A maconha é uma droga que está aí há muito tempo,
cujo efeito de médio e longo prazo já é relativamente testado. Ao passo que o
crack, por exemplo, é um fenômeno relativamente novo.
BBC Brasil - No caso do crack, alguns estudos no
exterior, como as pesquisas do neurocientista americano Carl Hart, apontam que
não é uma droga que vicia mais que maconha. O senhor estaria disposto em
pesquisar mais sobre o assunto e talvez ampliar o seu voto na volta do
julgamento?
Barroso - No sistema de deliberação do Supremo, nunca é
descartável você poder reavaliar (seu voto até o final do julgamento). Agora,
eu acho que seria mais próprio isso ser discutido num processo específico. Até
eventualmente com a realização de uma audiência pública, em que viessem
especialistas exporem ao tribunal a lógica do crack e ver até que ponto ela é
comparável à da maconha.
BBC Brasil - Nesse caso, teria que haver um
julgamento para cada tipo de droga ou poderia então haver uma ação direta de
inconstitucionalidade que questionasse o artigo 28 e pudesse ter um resultado
abrangente?
Barroso - Possivelmente se deveria ter, ainda que fosse um
único processo, uma discussão informada sobre as outras drogas - como heroína,
cocaína, crack. Acho que a descriminalização de outras drogas, de uma maneira
responsável, não pode prescindir dessas informações e desse debate.
BBC Brasil - Algumas pessoas que discordaram do seu
voto consideram que descriminalizar só a maconha poderia ser elitista. Como vê
esse argumento?
Barroso - Em grande parte é um argumento de quem não conhece
a realidade da quantidade enorme de pessoas pobres presa por tráfico de
maconha. O fato de uma decisão não alcançar todas as pessoas que são
discriminadas não significa que ela seja irrelevante para aquelas que
efetivamente o são.
Entendo a crítica dos especialistas, mas eles
precisam considerar que uma decisão da Suprema Corte considerando
inconstitucional uma criminalização feita pelo legislador tem que ser uma
decisão com algum grau de sintonia com o sentimento social.
Tomar uma medida dessa importância sem a capacidade
de trazer a sociedade junto pode acarretar um risco que os autores americanos
chamam de backlash, que é uma certa reação generalizada que dificulte o
respeito e o cumprimento da decisão.
BBC Brasil - Por exemplo, se o Congresso criar
novas leis dificultando a implementação da decisão?
Barroso - Exatamente isso. Por exemplo, vem o Congresso e
cria uma lei esvaziando a decisão do Supremo, dentro dos limites razoáveis de
atuação do Congresso. Ou problemas de cumprimento da decisão.
A decisão sobre aborto nos Estados Unidos teve um
backlash enorme. Na Alemanha, uma decisão da corte constitucional federal que
determinou a retirada dos crucifixos das escolas na Baviera também. Quando você
está lidando com sentimento social, tem que acertar a dose, sob pena de não
trazer a sociedade junto.
BBC Brasil - Outro ponto no qual o senhor e o
ministro Gilmar Mendes divergem é na questão da criação de critérios objetivos
pelo Supremo para distinguir porte para consumo e para tráfico. Sem esses
critérios, os efeitos práticos de uma eventual descriminalização ficam
limitados?
Barroso - Considero esta fixação de critérios até mais
importante que a descriminalização.
Como no Brasil hoje o porte e o consumo já não são
punidos com prisão, mas com medidas alternativas mais brandas, na prática o
grande problema é a falta de critério, porque isso cria um impacto extremamente
discriminatório sobre as pessoas pobres.
Aí sim a descriminalização seria elitista, se nós
não fixarmos um critério, porque no mundo real, pelas mesmas quantidades de
maconha, os jovens da Zona Sul (do Rio de Janeiro) são tratados como
consumidores e os jovens das áreas mais modestas são tratados como traficantes.
Portanto, o abismo social brasileiro se manifesta
de uma maneira muito visível e dramática nesta questão da quantidade que
caracteriza o consumo ou tráfico.
O ideal, hipoteticamente, é descriminalizar todas
as drogas e vender elas sobre regulação econômica e administrativa do Estado.
BBC Brasil - Seria a legalização nesse caso?
Barroso - A melhor solução seria a legalização, em tese. O
principal objetivo de uma política de drogas no Brasil deve ser acabar com o
poder do tráfico. O maior problema brasileiro não é o consumidor, é o poder
opressivo que tráfico tem sobre as comunidades pobres, ditando a lei local e
cooptando a juventude.
Portanto, a minha visão de médio e longo prazo em
matéria de drogas é legalizar todas para quebrar o poder do tráfico, que advém
da ilegalidade.
Agora acho que você não pode começar com uma medida
assim radical. Tem que avançar aos poucos. Legalizar a maconha e ver como isso
funciona na vida real. E em seguida, se der certo, fazer o mesmo teste com
outras drogas.
Insisto que a minha ideia de não descriminalizar
tudo não é uma posição conservadora. É uma posição de quem quer produzir um
avanço consistente, sem retrocesso, não um avanço sem base.
Manifestantes promovem ato em defesa da legalização
da maconha.
BBC Brasil -Pessoas contrárias à liberação das
drogas dizem que a descriminalização elevaria o consumo. Argumentam que não há
recursos suficientes para o governo investir mais na prevenção e tratamento.
Por que o senhor discorda?
Barroso - Não há recursos porque eles estão sendo gastos na
política errada. Cada vaga no sistema penitenciário custa R$ 44 mil, e que cada
preso custa R$ 2 mil por mês, se você multiplica isso por cerca de 150 mil
presos por tráfico, veja a quantidade de recursos que produz.
A segunda razão, que é um argumento que deveria
convencer até mesmo quem filosoficamente seja contrário à descriminalização das
drogas, é a seguinte: você prendeu mais de uma centena de milhares de pessoas
por drogas sem que isso produzisse nenhum impacto sobre consumo.
Você prende esses aviões, esse pequeno traficante
que faz a distribuição, e imediatamente ele é reposto por um exército de
reserva que existe nas comunidades carentes. Você está entupindo as prisões,
destruindo a vida desses jovens, sem produzir nenhum impacto relevante na
realidade, porque o nível do tráfico continua igual.
Há um outro argumento que eu usei, que me
impressionou muito quando estudei a matéria, que foi o depoimento do secretário
de Segurança do Rio de Janeiro, (José Mariano) Beltrame, que disse essa "é
uma guerra inútil, uma guerra perdida". Quem fez essa declaração não foi
um juiz em seu gabinete, ou um professor na sala de aula, foi o comandante da
guerra às drogas no Rio de Janeiro.
Quanto ao argumento do aumento do consumo,
reconheço que esse risco existe num primeiro momento. Mas li matérias que
relataram pesquisas dizendo que, em curto espaço de tempo, os índices ficavam
inalterados. E, em Portugal, as pesquisas comprovaram que em relação aos jovens
o consumo caiu (após a descriminalização).
BBC Brasil - Qual a importância desse julgamento?
Que consequências concretas a descriminalização da maconha traria ao país?
Barroso - Pode ser o marco inicial de uma nova política
pública em matéria de drogas. Um primeiro passo que possa levar a uma política
de legalização e eliminação do poder do tráfico. Para usar um lugar comum: Roma
não se fez em um dia. A gente na vida tem que respeitar o ciclo de
amadurecimento da sociedade.
Em segundo lugar, acho que ela pode produzir o
impacto relevante de diminuir o encarceramento de pessoas pobres no país e,
portanto, diminuir a pressão sobre o sistema carcerário, destruindo a vida
desses jovens que, na maioria das vezes, são réus primários.
BBC Brasil - Isso no caso de serem criados
critérios objetivos para diferenciar usuário e traficante?
Barroso - Sim, no caso de serem aprovados os critérios. Em
terceiro lugar, acho que é uma decisão que liberta um grande contingente de
pessoas de bem da ilegalidade, que permite com que as pessoas vivam as suas
próprias vidas sem ingerência estatal direta.
O meu medo em relação ao crack, e por isso eu
preciso estudar mais, é que eu acho que uma pessoa pode fumar maconha e viver
feliz e produtivamente a sua vida, e aparentemente isso é impossível de
acontecer com alguém viciado em crack. Por esta razão, eu acho que uma coisa
não é rigorosamente igual à outra e, portanto, elas precisam ser estudadas
separadamente.
Fonte: BBC
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