Células
do “coração” de abelhas podem mascarar efeitos de agrotóxicos nos insetos.
Por Elton Alisson, da Agência Fapesp –
Abelhas do gênero Bombus – conhecidas popularmente
como mamangavas ou mamamgabas – possuem um sistema celular integrado capaz de
“compensar” os efeitos dos toxicantes. Foto: Wikimedia Commons.
Por Elton Alisson, da Agência Fapesp –
O uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras e
o descarte de toxicantes – como metais-traço em baixas concentrações – no solo
e ar, além de rios e lagos, são apontados como alguns dos fatores responsáveis
pela diminuição das populações e o desaparecimento de espécies de abelhas
observado atualmente em diferentes partes do mundo.
Os reais efeitos dessas substâncias químicas nos
insetos, contudo, ainda não estão muito bem esclarecidos, uma vez que estudos
realizados nos últimos anos no Brasil e em outros países para diagnosticar se a
exposição de abelhas a concentrações variáveis de determinados tipos de
agrotóxicos alterava a taxa de mortalidade e sobrevivência, além do
comportamento e órgãos internos do animal – como o cerébro –, não identificaram
mudanças significativas.
“Às vezes, não é porque não se observam alterações
na taxa de mortalidade e no comportamento, além de em órgãos internos
específicos que podem ser impactados por um determinado agrotóxico, que o
produto não está causando efeitos em abelhas”, disse Fábio Camargo Abdalla,
professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), à Agência FAPESP.
O pesquisador e o estudante Caio Eduardo da Costa
Domingues – que realiza mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia
e Monitoramento Ambiental na UFSCar de Sorocaba com Bolsa da FAPESP –
identificaram que abelhas do gênero Bombus – conhecidas popularmente como
mamangavas ou mamamgabas – possuem um sistema celular integrado capaz de
“compensar” os efeitos dos toxicantes e, ao combatê-los, “mascarar” seus reais
impactos até uma determinada concentração e tempo de exposição.
A descoberta – resultado da pesquisa “Ação do cádmio e do Roundup® original
em órgãos internos de Bombus morio e Bombus atratus (Hymenoptera: Bombini)“,
apoiada pela FAPESP – foi relatada em um artigo publicado na revista PloS One.
Os resultados serão apresentados no próximo
congresso latino-americano da Sociedade de Toxicologia Ambiental e Química
(Setec, na sigla em inglês), previsto para ocorrer entre os dias 7 e 10 de
setembro, em Buenos Aires, na Argentina.
“Os efeitos da exposição das abelhas a um
determinado xenobiótico [substâncias químicas sintéticas que não ocorrem
naturalmente no ambiente, como agrotóxicos e metais-traço] podem ser
compensados por esse sistema celular integrado, que chamamos de
hepatonefrocítico”, afirmou Abdalla.
De acordo com o pesquisador, o sistema
hepatonefrocítico que identificaram por microcospia nas abelhas mamangavas é
composto por células que integram o chamado corpo gorduroso do inseto – que têm
função homóloga ao do fígado, em humanos –, além de células pericárdicas e
células dos sistema imune (hemócitos) do animal.
Esse conjunto de células e tecidos está localizado
e disposto, não por acaso, em camadas em uma região contrátil (miogênica) ao
redor do vaso dorsal (o “coração) das abelhas – um tubo de fundo cego que se
estende pelo abdômen e se abre no começo da cabeça do inseto – e funciona, de
forma coordenada, como um filtro para o sangue (hemolinfa) das abelhas.
Quando as abelhas são expostas a xenobióticos, as
células do corpo gorduroso são as primeiras a ser ativadas e representam a
primeira barreira contra a agressão química.
Caso as células do corpo de gordura não consigam
deter o “ataque” da substância química e forem atingidas ou destruídas, são
convocadas as células pericárdicas.
Porém, a resposta celular imune acontece durante
todo o processo de “combate”, revelado por meio da morfologia e da contagem de
células do sangue durante todo o período de exposição ao agrotóxico e
metais-traço.
As substâncias tóxicas neutralizadas pelas células
pericárdicas são liberadas de volta para a hemolinfa e podem ser filtradas pelo
túbulo de Malpighi – o órgão excretor do inseto.
As células imunes das abelhas, por sua vez,
participam durante todo o processo, explicou Abdalla.
“Essa associação de células, juntamente com o
túbulo de Malpighi, funciona em abelhas de forma análoga aos rins e fígado dos
humanos e representam a linha de frente dos insetos para compensar os efeitos
deletérios causados pela exposição a substâncias químicas”, afirmou.
Possível biomarcador
A fim de avaliar qual o limite de compensação dos
efeitos de toxicantes pelo sistema hepatonefrocítico das abelhas, os
pesquisadores realizaram experimentos em que expuseram abelhas mamangavas (Bombus
morio) a doses de cádmio consideradas seguras para águas de classe I e II pelo
Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), além de doses subletais de
tiametoxan – o agrotóxico mais usado no Brasil – e glifosato por períodos
variáveis.
Os resultados das análises de resposta celular dos
insetos – realizada por meio da contagem de células do sistema
hepatonefrocítico na hemolinfa – revelaram que a exposição durante dois dias a
uma parte por bilhão (ppb) de cádmio, diluído em 2 mililitros (ml) de água, provocou
a morte de células do corpo gorduroso e uma intensa atividade das células
pericárdicas, levando o sistema a entrar em colapso e à destruição do vaso
dorsal dos animais.
“Estamos observando que isso também ocorre com
diferentes espécies de abelhas que não somente a Bombus morio, como também
Bombus atratus, Apis mellifera e em Xylocopa suspecta, que divide o mesmo nicho
com a Bombus, com a diferença de que é uma abelha solitária, e não social”,
explicou.
“Por isso, esse sistema hepatonefrocítico pode ser
usado como um biomarcador morfológico para analisar o nível de estresse
ambiental em abelhas”, indicou.
Segundo o pesquisador, a simples ativação das
células que compõem esse sistema pelas abelhas ao serem expostas a um
determinado tipo de xenobiótico já é um indicador do efeito nocivo da
substância química, uma vez que o inseto estaria desviando metabolicamente
energia que poderia ser usada para outras funções, como a atividade de coleta,
para fazer todo esse sistema fisiológico funcionar.
“Isso poderia prejudicar uma colônia se extrapolado
esse efeito de desvio energético para todas as espécies de abelhas campeiras
expostas em campo”, afirmou Abdalla.
O sistema hepatonefrocítico também pode predizer,
com bastante exatidão, quais órgãos do inseto podem ser afetados por um
determinado agente toxicante ao avaliar quais os tipos de células estão sendo
mais danificadas no sistema, uma vez que possuem diversas funções associadas a
outros órgãos, apontou o pesquisador.
Além da desintoxicação e filtração, as células do
sistema hepatonefrocítico estão envolvidas com o desenvolvimento ovariano,
formação e manutenção da cutícula que recobre o corpo das abelhas
(cuticulogênese), com hormônios reguladores de glândulas do cérebro dos
insetos, explicou.
“Esse sistema poderia ser usado como um ponto de
checagem. Ao estudar pelos métodos clássicos o efeito de um determinado
inseticida neonitocinoide – que é extremamente deletério às células do sistema
nervoso de abelhas – no inseto, pode ser que não sejam percebidas mudanças
morfológicas no cérebro ou na taxa de mortalidade e sobrevivência do animal.
Mas pode-se checar se esse sistema de desintoxicação e filtragem está sendo
ativado”, apontou.
Os pesquisadores pretendem futuramente analisar por
meio de técnicas de cromatografia gasosa e de espectrometria de massa as
células do corpo gorduroso e pericárdicas que integram o sistema
hepatonefrocítico de abelhas para estudar a dinâmica de metabolização dos
xenobióticos pelos insetos.
À exemplo do que acontece no fígado humano, os
agroquímicos, por exemplo, são “quebrados” pelo sistema metabólico das abelhas
em moléculas menores, chamadas de segundos metabólitos.
Em determinados casos, esses segundos metabólitos
são muito mais potentes e deletérios ao organismo do inseto do que a molécula
original do agroquímico, disse Adballa.
“Isso acontece com o tiametoxan, que é um
agroquímico intensamente estudado em nosso laboratório e, quando ingerido, seu
potencial toxicante pode aumentar em até 300 vezes mais”, afirmou.
O artigo “Hepato-nephrocitic system: a novel
model of biomarkers for analysis of the ecology of stress in environmental
biomonitoring” (doi:
10.1371/journal.pone.0132349),
de Abdalla e Domingues, pode ser lido na revista PLoS One em www.plosone.org/article/related/info:doi/10.1371/journal.pone.0132349.
Fonte: Agência Fapesp
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