Sair dos
tigres de papel para salvar as águas?
Fundo do Açude Carnaubal que abastecia a cidade de
Crateús, no Ceará. Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil (05/03/2015).
Por Washington Novaes *
É muito inquietante a leitura do relatório
Governança dos Recursos Hídricos no Brasil, com 300 páginas, divulgado pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), integrada por
34 países. Ao mesmo tempo que demonstra o potencial extraordinário desses
recursos no País, o documento analisa a precariedade da aplicação das normas de
regulação, conflitos entre várias instâncias reguladoras (federais, estaduais,
municipais, 200 comitês de bacias) – às vezes até em trechos diferentes de rios
–, a disputa dos recursos advindos da cobrança pelo uso, a baixa capacidade de
execução desses meios e a limitada eficácia na implementação de normas e planos
dos comitês de bacias hidrográficas. Tudo tão preocupante que o relatório chega
a dizer que os planos não passam de “tigres de papel” ou de “promessas a serem
cumpridas por outros”.
Então, é preciso mudar quase tudo, para que o País
possa desfrutar de modo eficiente sua condição de detentor de quase 12% da água
superficial do planeta, que até parece posta em dúvida pelo noticiário nos
meios de comunicação, tantas são as crises de abastecimento, escassez,
poluição, conflitos, etc.
Se os textos descentralizados são resposta adequada à
diversidade física e legal e às condições locais, por outro lado desafiam a
necessidade de coordenação entre demandas diferenciadas, escassez ou
abundância, poluição ou tratamento – além das diferenças entre setores
econômicos (geração de energia elétrica, irrigação, indústria, abastecimento
domiciliar).
As tentativas mais recentes e solução partiram, em
1997, da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, a que se seguiu a
criação da Agência Nacional de Águas (ANA), em 2000. E já ficava clara a
questão de saber qual a escala funcional adequada em cada questão concreta. Ao
contrário da gestão centralizada e tecnocrática do regime militar, partia-se
para uma “governança multinível, integrada e localizada dos recursos hídricos”.
Mas com muitos problemas, segundo o relatório.
O primeiro deles está em que os planos de recursos
hídricos em níveis nacional, estadual, local e de bacia “são mal coordenados e
não chegam a ser colocados em prática, por falta de financiamento ou limitada
capacidade de acompanhamento e execução”; não estabelecem prioridades ou critérios
claros para “definir os recursos disponíveis e orientar as decisões de alocação
para o desenvolvimento de energia hidrelétrica, extensão da irrigação e uso
doméstico, entre outros”.
Outra questão central é “a incompatibilidade entre
as fronteiras administrativas municipais, estadual e federais”, que levanta o
problema da escala adequada. Por exemplo: quem define as normas de qualidade da
água e regras de captação onde dois ou mais órgãos de gestão dos recursos
hídricos são responsáveis por trechos diferentes de um mesmo rio?
Terceira: cobranças pelo uso da água (onde existem)
são baixas e raramente se baseiam em estudos de acessibilidade ou em avaliação
do impacto. Além disso, os comitês de bacias têm “fortes poderes
deliberativos”, mas “limitada capacidade de implementação”.
Apesar da linguagem cautelosa, o diagnóstico aponta
para um quadro estarrecedor, acentuado pela crise mais recente no setor, que
“lançou um holofote político sobre desafios mais estruturais”, em hora de
previsões sobre crescimento populacional e econômico, além de mudanças
climáticas. Será indispensável que o Plano Nacional de Segurança Hídrica e o
Plano Plurianual, previstos para 2016, mudem o quadro, com encontro entre as
várias políticas e instâncias. E para isso o relatório faz recomendações e
propõe um plano de ação.
Entre as propostas e recomendações estão: pôr os
recursos hídricos como prioridade estratégica, “com benefícios econômicos,
sociais e ambientais mais amplos”; fortalecer o poder e efetividade dos
conselhos nacional e estaduais de recursos hídricos, “para orientar as decisões
de mais alto nível”; fortalecer “a efetividade das instituições em nível de
bacia” a adoção de mecanismos de preços, incluindo – o que é de extrema
importância – cobranças pelo uso da água.
Há muitos outros ângulos decisivos na análise,
entre eles o de que “o Conselho Nacional de Recursos Hídricos não tem
desempenhado plenamente o seu papel de coordenação intersetorial”, assim como o
de que “o nível de representação dos ministérios não é suficiente, o que
enfraquece sua influência no processo de tomada decisões e nas orientações
estratégicas”. Como avançar, então?
A imagem de “abundância de água no Brasil gera uma
lacuna de conscientização que dificulta enfrentar as questões prementes”. De
fato, a vazão média nacional de água chega a 180 mil metros cúbicos por
segundo, de acordo com a ANA. E a retirada total de água a apenas 0,9% do
volume total disponível, ou 2.373 m3/segundo em 2010, mas que cresceu 30% nos
últimos cinco anos. Cerca de 50% da água captada não volta para os rios. A
agricultura capta 54% do total, o abastecimento humano 25% e a indústria 17%.
As perdas na distribuição urbana da água chegaram a 36,9% em 2012. E o consumo
doméstico médio de água per capita era de 167,5 litros/dia, variando conforme
as regiões. Só 48% dos esgotos domésticos eram coletados e 39%, tratados.
A água, conclui o relatório, “tornou-se um fator
limitante para o desenvolvimento econômico, políticas de saúde pública e
bem-estar no Brasil”. Se não sairmos desse emaranhado que o relatório mostra,
continuaremos navegando nesse mar de “tigres de papel”.
Duas correções – No artigo de 21/8, onde escrevi
que a emissão da agropecuária no Brasil era de 1,56 bilhão de toneladas, esse
total era da emissão total do País. No artigo de 4/9, onde está a menção de um
PIB de R$ 5,68 bilhões em 2030, o correto é R$ 5,52 trilhões. Agradeço aos
leitores Mark Zulauf e Antônio Paulo B. Coutinho. (O Estado de S. Paulo).
* Washington Novaes é jornalista (e-mail:
wlrnovaes@uol.com.br).
Fonte: O Estado de S. Paulo
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