Homo ignorans.
por
Ladislau Dowbor*
Foto: http://www.shutterstock.com/
Pessoas inteligentes e informadas conseguem ignorar
o gigantesco desvio de recursos através dos bancos, e culpam o eterno bode
expiatório que é o governo.
O homo sapiens todos conhecemos. Inclusive a maior
parte da teoria econômica e das teorias das transformações sociais se baseia
numa compreensão otimista de que o homem absorve conhecimentos, confronta-os
com os seus objetivos racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando
erra, analisa os erros e corrige a sua visão para não repeti-los.
Naturalmente, é agradável pensarmos que somos,
conforme aprendi na escola, animais racionais, racionalidade que nos separaria
confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam proporcionalmente à
minha idade, o que significa que são elevadas. Pensar que somos mais do que
somos é uma atitude muito difundida. A bíblia já abre com o tom adequado: Deus
nos criou à sua imagem e semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que
somos semelhantes nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e
o fato de passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa
racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não necessariamente ao
que é verdadeiro.
Pensar na dimensão irracional da nossa
inteligência, ou nas raízes interessadas e ideologicamente deformadas do que
nos parece racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Fazemos uma
construção racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão
de paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o
preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura antes do
entendimento – maior parece ser a busca do sentimento de superioridade moral.
Devemos lembrar como foram denunciados e massacrados
ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da escravidão, pelo fim da
discriminação racial, pelos direitos de organização dos trabalhadores, pelo
voto universal, pelos direitos das mulheres? A imensa batalha que foi chegar ao
intelecto dos dominantes que um povo colonizar outro não dá certo? Hoje é a
mesma luta pela redução das desigualdades, pelo fim da destruição do planeta,
pela democratização de uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui
precisamos de muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações
sim, mas apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o
interesse maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos
privilégios.
Aqui realmente é preciso de muita ignorância, ou
seja, desconhecimento (voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios
reais. O aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar,
como se o termômetro e os gazes de efeito de estufa fossem de esquerda. O
desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas de solo fértil em
grande escala, quando iremos precisar de mais área de plantio. A vida nos mares
está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40 anos, segundo o WWF, perdemos 52%
da vida vertebrada no planeta. É um desastre planetário espantoso, mas não aparece
na mídia comercial. Os dados sobre a inviabilização ambiental do planeta são
hoje amplamente comprovados. Há controvérsias, nos dizem. Mas é questão de
opinião ou de conhecimento dos dados?
No plano social é mais impressionante ainda: até o
Fórum Econômico em Davos escuta e divulga as pesquisas da Oxfam, do Banco
Mundial e das Nações Unidas, dos inúmeros institutos de pesquisa estatística em
todos os países sobre a desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os
dados da desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são
donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da
pirâmide social – gerando tensões insustentáveis. Mas em
Wall Street enchem a boca e declaram “greed is good”. Sobre esta desigualdade de
patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas razões
para entender tudo de fortunas familiares. Nem os dados da própria direita
parecem convencer a direita, se não confirmam os seus preconceitos.
Vamos tampar os olhos e fazer de conta que
acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta onde 1,3
bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso a fontes
decentes de água, e 850 milhões passam fome? Tem sentido acreditar no bom
pobre¸ que se resigna e aceita, quando hoje até no último degrau da pobreza há
uma consciência do direito a ter uma escola decente para o filho, saúde básica
para a família? Aqui já não são apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados,
e sim a própria inteligência. O homo ignorans raciocina com o fígado.
E porque toda esta riqueza acumulada no topo não
serve para as reconversões tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e
para financiar as políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as
desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais, aplicada em
sistemas de especulação financeira, sequer orientada para investimentos
produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80% das atividades
corporativas do planeta são essencialmente grupos financeiros. Fonte? O
Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica. São recursos que não só se
aplicam em especulação financeira em vez de financiar investimentos produtivos,
como migram para paraísos fiscais onde não pagam impostos. O Economist estima
que sejam 20 trilhões de dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.
O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em
paraísos fiscais, da ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a
grande vitória é a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre
movimentações financeiras. No Brasil pessoas inteligentes e informadas
conseguem ignorar o gigantesco desvio de recursos através dos grandes
intermediários financeiros, e culpam o eterno bode expiatório que é o governo.
Em particular quando comete o pecado de melhorar a condição dos pobres. Ainda
bem que temos a corrupção para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo
dos recursos não seria mais inteligente?
Não há nenhuma confusão sobre as dimensões
propositivas: se estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria que
pouco produz e muito especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para
financiar as políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos
equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos básicos
no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não são ideias que
faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira dos seus interesses se
dar conta dos desafios reais que enfrentamos. Aliás, o norte é bem simples:
toda política que reduz as desigualdades, protege o meio ambiente, e tributa
capitais improdutivos contribui não para salvar um governo, mas para nos salvar
a todos. E um país do tamanho do Brasil tem como trunfo fundamental, nesta
época de turbulências planetárias, a possibilidade de ampliar a base econômica
interna através da inclusão produtiva.
Confesso que ando preocupado. Parece que quanto
maior a bobagem declarada, maior o sentimento de superioridade moral. E o ódio,
esta eterna ferramenta dos preconceituosos, é um sentimento agradável quando se
consegue encobrir o interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra
permanente entre o frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans,
a olhar pelo mundo afora, e pelos gritos histéricos de extremistas por toda
parte – sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas
justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os outros.
Pobre Deus, nosso semelhante. (Carta Maior/ #Envolverde).
* Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências
Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia,
professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas
agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução
Social”, “O Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o
Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no
Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e
social estão disponíveis no site http://dowbor.org’.
Fonte: Carta Maior
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