O mundo está dividido entre os
indignos e os indignados.
por Redação Revista Fórum
Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida
por Eduardo Galeano ao programa Singulars, da TV3, no dia 23 de maio.
Nela, ele conta as suas impressões ao se deparar com a Espanha dos
“indignados”, fala sobre a crise do sistema econômico e político institucional
e também comenta a respeito de futebol. Sobre as manifestações, ele acredita
que “são os invisíveis se fazendo visíveis, e os que pareciam mudos fazendo-se
escutar. E estão dizendo aquilo que têm que dizer. E neste mundo em que todos
falam sem dizer, eles dizem dizendo”.
Eduardo, você chega e encontra as praças
cheias de gente gritando “outra democracia é possível!”. Que lhe parece?
Eduardo Galeano – Me parece uma
experiência estupenda. A verdade é que foi muito emocionante, para mim, estar
entre essas pessoas quando cheguei a Madri e recuperar esta energia, este
entusiasmo. Esta vitamina “E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste
mundo que nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estupenda,
e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda, de origem grega, que
significa “ter os deuses aqui dentro”. E isso foi o que senti quando
perambulava entre as pessoas na Puerta del Sol.
“Nos tiraram a justiça e nos deixaram a
lei.” Esta é uma das frases que você pôde ler na Puerta del Sol. Que lei nos
deixaram, senhor Galeano?
Galeano – A lei do mais forte. É
esta lei que rege hoje o mundo, dentro de cada país e entre os países também, e
é uma lei insuportável. Parece hoje que os jovens vêm crescendo em matéria de
desobediência contra esta lei que os condena à resignação, à aceitação do mundo
tal qual é. E hoje há na América Latina toda, ou quase toda, um problema
visível e preocupante que é o divórcio, a separação – eu diria que é um
divórcio – entre os jovens, as novas gerações, e o sistema político e o de
partidos vigentes. Eu não reduziria a política às atividades dos partidos,
porque a política vai muito além. Mas, sim, me preocupa que, por exemplo, nas
últimas eleições chilenas dois milhões de jovens não tenham votado. E não
votaram porque não se deram ao trabalho de se registrar e porque, no fundo, não
creem nisto. Suponho que, principalmente, por não acreditarem nisto. E me
parece que isto não é culpa dos jovens, é muito fácil culpá-los, mas a questão
vem de cima, está concentrada no topo, e a estes não importa nada de nada. E
também nesse sentido gostei de estar nas manifestações, pelo menos na da Puerta
del Sol que foi onde pude estar.
Sabe quanta gente não votou ontem na Espanha?
Galeano – Não, não imagino.
Dez milhões de pessoas não foram votar.
Galeano – Bem, é grave, não?
Mas também é um direito não votar, certo?
Galeano – Claro, claro que sim.
E é também, por vezes, um modo silencioso de protesto. E também acho legítimo
que as pessoas se expressem falando ou calando, pois o silêncio às vezes diz
mais que as palavras. E o que eu gostei foi de ver toda esta ebulição de um
protesto pacífico, sem violência, como o que vi circulando entre a gente nas
diferentes horas do dia, e da noite também. Muito solidariamente, unidos em uma
causa comum, e sustentado com convicção a partir da situação tão penosa que
vivem hoje na Espanha e em muitos outros lugares do mundo sobretudo os jovens,
e, sobretudo os jovens que não têm uma posição, digamos, acomodada. Lá na Sol
diziam “com causa, mas sem casa!”, e isso me pareceu revelador, porque uma boa
parte das pessoas que estavam ali ficaram sem casa e sem trabalho. Isto é uma
coisa a ser levada em conta.
O que está acontecendo neste momento, em distintos
países europeus – e eu suponho que no seu mundo, a América Latina, também, mas
conheço mais a situação europeia – é que o povo está dizendo “basta!”, algo tão
claro como nós, pais, dizendo que nossos filhos não terão o mesmo que nós. E
tão claro como nós vemos que isto que nós temos é graças à luta que, em seus
momentos, lutaram nossos pais e avós com sangue, suor e lágrimas, e conseguiram
os direitos que nós, como pais, não podemos dar a nossos filhos.
Galeano – Claro, este é um dos
dramas do mundo em nosso tempo, internacionalmente. Dois séculos de lutas
operárias que conquistaram direitos muito importantes para as classes
trabalhadoras, para os que trabalham, estão sendo descartados, jogados no lixo,
por governos que obedecem a uma tecnocracia que se crê eleita pelos deuses para
comandar o mundo, esta espécie de governo dos governos. Como este senhor que
ultimamente se dedicou a violar camareiras, mas antes violava países e era
aplaudido enquanto o fazia e não foi preso por isso. Ele teria que ter sido
preso pelas duas coisas, não só pelas camareiras. É esta estrutura de poder que
às vezes é invisível e que, no fundo, controla tudo. Então, quando se consegue
aglutinar vozes capazes de dizer “basta!” ou “não, chega!”, a primeira coisa
que se deve fazer é escutar estas vozes, com respeito, sem desqualificá-las de
antemão, e saber esperar para ver o que é que a vida quer viver. Estas pessoas
não parecem esperar ordens de ninguém, atuam espontaneamente, unindo a razão à
emoção. Alguns me perguntam “como vai acabar isso?” e eu digo “Não sei como vai
acabar, talvez nem acabe. E se acabar, aí veremos”. É como o amor que é
infinito enquanto dura.
Sabe… O senhor, Eduardo Galeano, com José
Luis Sampedro e Arcadi Oliveres, são referências internacionais de pessoas que,
em seu momento, já há bastantes anos, disseram “basta!”. E Sampedro, muito
maior, mas muito jovem, este fim de semana fez uma declaração, não me recordo
exatamente, mas era algo assim: “As batalhas, temos que erguê-las e lutá-las.
Se ganhamos, ou se perdemos, mas temos que lutá-las. Por que este ato solitário
de erguê-las, e de lutá-las, é o que as torna tão valiosas.”
Galeano – Ele é um querido amigo
pessoal, e eu o respeito muito. E isto é verdade. Estamos também enfermos de
existir. O mundo está preso em um sistema de valores que coloca o sucesso acima
de tudo, e, por outro lado, condena o fracasso. Perder é o único pecado que no
mundo de hoje não tem redenção. Estamos condenados a ganhar ou ganhar. E, bem,
ao longo da história muitas pessoas melhores perderam, e isto não lhes tira nem
um pouco a razão. Os dois homens mais justos na história da humanidade,
Sócrates e Jesus, morreram condenados pela justiça. Os mais justos foram
condenados pela justiça. E não deixam de ser justos.
E nos deixaram a lei.
Galeano – E nos deixaram coisas
muito importantes. Em primeiro lugar, amor e coragem.
A santíssima trindade, também chamada de
Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, são as agências que qualificam os
riscos. Hoje, elas estão fazendo cair as bolsas e o euro, na Europa, porque
voltaram a baixar a qualificação da dívida grega. Quem são estas agências? E a
quem obedecem?
Galeano – Segundo minha mulher,
Helena Villagra, são “As Meninas Superpoderosas”. Eram personagens de um
desenho que passava há não muito tempo. Então são estas meninas, que se
consideram no direito de classificar e qualificar os países, e dizer se este ou
aquele país está indo por um bom caminho, que é sempre o caminho da obediência
às ordens ditadas por um sistema que é sempre inimigo do povo. E são dirigidas
por tecnocratas que mandam mais que os governos. Ninguém os elegeu, em nenhuma
eleição. Que eu saiba, ninguém votou na Standard & Poor’s – que, se não
estou equivocado, significa Médios e Pobres.
Mas você conhece os crimes que cometeram
estas agências? Eu entendo quando alguém se equivoca porque se equivoca, sem
querer. Mas elas estão destruindo países inteiros, estão jogando contra países
inteiros, e ninguém diz nada!
Galeano – E os banqueiros de
Wall Street, que foram os principais protagonistas desta crise, que
provavelmente é a crise mais grave que o mundo já sofreu em muitos séculos de
história, talvez a maior fraude já cometida. E nenhum destes banqueiros foi
preso. Vão presos os ladrões de galinhas, mas os banqueiros superpoderosos,
como as meninas superpoderosas, estes não vão presos nunca. E cometem crimes de
desumanidade. Eu vi agora que o Tribunal Penal Internacional quer julgar
Gadafi. Sabemos que não é nenhum santo e que seguramente merece ser julgado,
mas muito mais merecem ser julgados estes senhores que arruinaram o planeta.
E que hoje nos cobram mais que ontem.
Galeano – E que foram
recompensados. Eu havia até proposto uma campanha, quando via os pobres
banqueiros chorando suas misérias, este desastre, e junto com outros companheiros
nós articulamos uma campanha que não teve muito êxito: “adote um banqueiro”.
Vê-se que o mundo tem um mau coração, ninguém o fez.
Eduardo Galeano, como acha que se explica
porque nestas reuniões de G20, G8, G1040 – todos dão na mesma –, por que nenhum
mandatário, por que nenhum governante, e há alguns das esquerdas, por que
nenhum deles se levanta e diz “Basta, acabou! Este mundo não é possível! Eu não
vou condenar meus concidadãos à miséria. Não! Basta!” Por que não há nenhum que
se levanta, por quê?
Galeano – Há alguns que se
levantaram.
No G20?!
Galeano – Não, não, fora do G20.
No “G-7 bilhões”, que é esse que abarca a humanidade inteira. Uns tantos se
levantaram e disseram “basta!” e por isso foram condenados ao inferno, claro.
Por exemplo, me recordo quando o presidente do Equador, Correa, anunciou que
não ia pagar a dívida, que não era legítima. Ou seja, que havia nascido de uma
armadilha, de uma fraude, de uma violência. E o mundo se doeu: “Mas como? O
Equador vai acabar, esse país vai naufragar. Como é que alguém se atreve?”. E
não se acabou nada, porque era perfeitamente legítima a decisão de não pagar as
dívidas ilegítimas, que são as que estrangulam a maior parte dos países,
sobretudo os países mais pobres.
Então, você vê, o problema é que não falta quem o
diga, mas sim, digamos, que… Há um sistema que absolve ou condena segundo a boa
ou má conduta dos diferentes governos. Mas às vezes as lições de vida, as
lições de dignidade que o mundo necessita são dadas pelos menores. Por exemplo,
a Islândia. A Islândia é um país minúsculo, perdido aí nos mares do Norte do
mundo, habitado por pouca gente – não sei, cerca de 150 mil pessoas, algo assim
–, e foi o que mais claramente disse “não”, nestas circunstâncias muito
difíceis, ao Fundo Monetário Internacional e à ditadura financeira do mundo, em
dois plebiscitos. Porque o FMI e a União Europeia (UE) já haviam dado a ordem à
Islândia de que a população, ou seja, os islandeses, teriam que pagar a
bancarrota de três bancos de lá, dois bancos muito importantes e outro não
tanto, que tinham recebido depósitos de outros países e não podiam pagá-los, e,
portanto, a população deveria pagar 12 mil euros per capita. Ou seja,
cada cidadão deveria pagar 12 mil euros pela bancarrota dos bancos! Eu não digo
que todos os banqueiros sejam delinquentes, mas há banqueiros que são os
assaltantes de bancos mais perigosos que há. Eles não carregam nenhuma arma,
nem avisam que estão entrando, porque, afinal de contas, estão entrando em suas
“casas”. Mas estes são os mais perigosos. E a população da Islândia foi capaz
de dizer “Não! Não aceitamos”, e então se fez um plebiscito.
Mas, como para o FMI e para a UE não pareceu ser
suficiente, fizeram outro. E ganharam os dois. A Islândia se negou a aceitar
como destino a obediência. E afinal, defenderam dignidade humana. Porque este
movimento é um movimento tão lindo, que me encanta ver. Este se chama Movimento
dos Indignados, e eles não se equivocam com este nome, porque afinal o mundo
está dividido entre os indignos e os indignados.
A Islândia disse “Não!” aos mercados.
Nós, jornalistas, dizemos “os mercados”. Quem são?
Galeano – Sim, os mercados… É um
termo que se usa. Na infância, era uma palavra lindíssima que dava nome ao
local de encontro dos vizinhos do bairro. Com todas as suas cores, das
verduras, das frutas, as vozes dos vendedores que vinham até os bairros para
vender suas coisas. E era uma palavra muito linda. Mas depois se converteu no
nome de um deus invisível e muito cruel, que é este que rege nossos destinos.
Então, sempre se diz: “Não, isso não. Vai irritar o mercado!”, porque ele tem
humor, este deus. E o mercado manda, mas ninguém sabe muito bem quem é ou do
que se trata. É como quando se fala em “comunidade internacional”. “A
comunidade internacional não deveria permitir isto”, a comunidade internacional
é um clube de banqueiros e generais, senhores da guerra e senhores do dinheiro
que decidem quem é democrata e quem não é, e decidem quem merece o sucesso, e
quem merece a desgraça. E, no entanto, ainda há gente que acredita que outro
mundo é possível.
Ontem, ocorreram na Espanha, como se
sabe, eleições locais e regionais e o eleitorado espanhol resolveu, por assim
dizer, castigar muito duramente o Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Que
você acha disso?
Galeano – De fora, não sou
ninguém para ditar à Espanha, ou às espanhas contidas na Espanha, normas de boa
ou má conduta, até porque justamente agora eu estava falando contra os sistemas
autoritários de poder. E também creio que são autoritários alguns intelectuais
que vão dar lições às pessoas nos lugares onde estão visitando. Eu vivi na
Catalunha muitos anos, dez anos, não me considero estrangeiro aqui, mas deve se
ter muito cuidado ao julgar ou emitir opiniões a respeito de acontecimentos tão
complexos como é uma eleição, nada menos.
Em princípio, me pareceu muito crível uma
manchete do Diário Público do dia 23, que vi, que dizia que o PSOE
havia sido castigado por praticar uma política de direita. Provavelmente algo
disso deve ter havido, porque o governo talvez não tivesse mais remédio. Não
sei precisamente. Mas sei que sim, a Espanha concordou em fazer coisas que não
coincidiam muito com o programa de governo do Partido que segue, contudo,
governando a Espanha.
Eu antes fiz uma pergunta dizendo que,
para um governante, pode ser cruel, especialmente se o governante luta para
conseguir mais igualdade. Eu disse que nenhum governante se levantava em
nenhuma reunião internacional para dizer “Basta!”. Então volto a perguntar:
podem fazê-lo? Me refiro ao G20.
Eu repito: se o G20 não é capaz de tolerar,
admitir e promover a diversidade no mundo, ou seja, se não é capaz de praticar
a democracia – porque a democracia é isso, diversidade, escutar todas as vozes,
outras vozes, em pé de igualdade –, bem, então é necessário substituir o G20
pelo “G-7 bilhões”, que é esse de toda a humanidade.
E isto, como se dará?
Não há receita para isso. Eu não conheço, pelo
menos. E desconfiaria muito de alguém que quisesse me vender esta receita. São
processos muito complexos, muito complicados, e, além disso, a História é uma
senhora de ações lentas e andar suave. As coisas não mudam em uma semana ou um
mês. É legítima a necessidade humana de que as coisas mudem enquanto estou
vivo, claro, eu quero ver estas mudanças. Esta é uma paixão humana
completamente compreensível e partilhável. Mas, não condiz com a realidade. A
realidade tem seus tempos e o mundo tampouco caminha em linha reta.
A História é lenta, estou de acordo. Mas
imagine você estas dezenas de milhares de pessoas que saíram às ruas, que estão
ocupando agora mesmo a Plaza Catalunya, aqui em Barcelona, além de outras
cidades da Espanha. Quando isto terminar, pois decidiram terminar daqui a
algumas semanas, o que vai acontecer? Estes governantes e políticos democrática
e legitimamente eleitos vão levar em conta o que foi feito nas praças, o que
foi dito nas praças ou não dará em nada?
Nada dá em nada quando, digamos, se transmite
energia. A energia fica, de alguma maneira. Às vezes se transforma em outra
coisa, se arranja de outras maneiras. Mas é muito importante o que está
ocorrendo nestas concentrações, que são sobretudo juvenis, mas não somente
juvenis. Pois, em última instância, são os invisíveis se fazendo visíveis, e os
que pareciam mudos fazendo-se escutar. E estão dizendo aquilo que têm que
dizer. E neste mundo em que todos falam sem dizer, eles dizem dizendo.
E dizem
coisas que vale a pena escutar. E eu acredito que estas vozes vão seguir
ressoando. Contudo, não quero ser um otimista profissional porque eu sou
otimista de acordo com a hora do dia, às vezes sou muito pessimista. E a
esperança é uma coisa que por vezes me cai do bolso, e tenho que buscá-la,
descobrir onde ela está, recolher alguns pedacinhos, muitas vezes. Não sou um
otimista full time, e, além disto, não acredito em quem é. Em muitos
momentos tenho esperança, mas, quando não tenho, agarro meus cabelos e rezo
para uma nave espacial me levar para outro planeta.
Por que você acha que neste último
domingo, no Uruguai, se disse “Não” à suspensão da lei de anistia?
Sim, este também é um processo complicado de
explicar assim. Mas, sim, se perdeu por um voto, uma coisa lamentável. Deve-se
acabar com uma lei infame, que é uma lei de impunidade. Eu fui membro das duas
comissões que organizaram os dois plebiscitos, e os perdemos. Por muito pouco,
mas perdemos. E seguiríamos perdendo, um milhão de vezes. Porque eu não creio
que valha a pena viver para ganhar, vale a pena viver para fazer o que tua
consciência te diz para fazer. E não o que te convém. E isto vale para tudo,
para a política, para a vida, para o amor, futebol. O futebol parece estar
agora condenado a jogar pelo dever de ganhar, e não pelo prazer de jogar. Por
isto estou muito contente de estar aqui em Barcelona para receber um prêmio de
um clube que recuperou o prazer de jogar com beleza e limpamente.
Claro, você vai receber amanhã o Prêmio
Manuel Vázquez Montalbán de Jornalismo Esportivo.
Sim, e é uma sorte para mim. Sou muito fã de
futebol, muitíssimo fã de futebol. E creio que o futebol é um espelho do mundo,
que a vida se reflete ali. O melhor e o pior da condição humana estão no campo.
Você é muito fã de futebol, como disse,
então suponho que verá este time prodigioso que está fascinando o mundo
inteiro, como o Barça, certo?
Sim, sim. Eu adoro o Barça, e, além disso, gosto
muito de ver o Messi jogando. Vou contar algo que me veio à cabeça agora e que
tem relação com isto… Eu estava no México e, em uma das intervenções públicas
que estive, me permiti sugerir aos meus amigos mexicanos que tivessem cuidado
com seu poderoso vizinho do Norte que tem o péssimo costume de “salvar” os
demais países. E lhes contei que quando vou aos Estados Unidos e faço leituras
de meus livros, ou vou às universidades, coisas assim, sempre começo por
suplicar que, por favor, não me “salvem”. Eu não quero ser salvo, e este
poderoso vizinho do México “salvou” o Iraque, convertendo-o num manicômio, está
“salvando” o Afeganistão, convertendo-o em um vasto cemitério. Então eu dizia
aos mexicanos “Vamos desconfiar dos messianismos, dos messiânicos. O único
messianismo que não é perigoso é o que se chama Lionel Messi.”
O que é Messi?
É a alegria de jogar. Ele joga como se fosse uma
criança na várzea, em um campinho, com essa mesma alegria. Espero que não a
perca nunca. Ele é excepcional. Por jogar como profissional, tem que cuidar das
pernas de outra maneira, mas ele joga esquecendo de que é o número um. Ou seja,
Lionel Messi não acredita ser Lionel Messi, por sorte.
Guardiola?
Merece tudo isto, e repito desde que ele era um
grande jogador. Não podemos esquecer de que ele foi um grande jogador antes de
ser um grande técnico capaz de organizar uma equipe solidária. Um por todos,
todos por um, mas onde todos podem jogar e desfrutar. A verdade é que não digo
estas coisas para ficar bem com o lugar onde estou, são coisas que acredito
profundamente. Não tenho o costume de elogiar quando me convém.
Você sabe que nestas últimas semanas duas
equipes antagônicas, Madri e Barça, se enfrentaram quatro vezes, creio. Você
enxerga um estilo diferente no Galeano Real Madrid, você que é tão fascinado
por futebol?
Sim. Com Mourinho, sim. Mas o Real Madrid pode
muito mais do que tem feito nas mãos deste senhor, que além de tudo é muito
antipático, porque é muito arrogante. O médico me proibiu contato com os arrogantes.
O médico proibiu? E há muitos deles?
Sim, há muitos deles, e eu não sei lidar!
Eduardo Galeano, outra das frases, ou
mensagens, das concentrações nas praças da Catalunha e da Espanha é esta: “Se
não nos deixam sonhar, não vos deixaremos dormir!”. E eu vou pedir agora,
espero que aceite, que nos faça sonhar com a leitura de algum de seus
fragmentos.
Sim. Vou ler algumas palavrinhas que têm a ver
com o direito de sonhar, com o direito ao delírio, a partir de algo que me
ocorreu em Cartagena das Índias, há algum tempo, quando eu estava na
universidade fazendo uma espécie de palestra com um grande amigo, diretor de
cinema argentino, Fernando Birri. E então os meninos, os estudantes, faziam
perguntas – às vezes a mim, às vezes a ele.
E fizeram a ele a mais difícil de
todas. Um estudante se levantou e perguntou “Para que serve a utopia?”. Eu o
olhei com dó, pensando “Uau, o que se diz numa hora dessas?”, e ele respondeu
estupendamente, da melhor maneira. Ele disse que a utopia está no horizonte, e
disse “Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminhar dez passos,
ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei,
porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo”. Boa pergunta, não?
Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar.
Já sei que você não vai gostar do que eu
vou perguntar a seguir, mas devo perguntar. Vamos falar um pouco de você. Você
tocou em quase todas as teclas: narrativas, crônicas, jornalismo, desenhista.
Sim, é verdade. E é verdade também que aquilo que
escrevo é inclassificável e isto me dá muita alegria. Porque um dos vícios
deste mundo, mundo nosso que nos cabe viver, tem um costume perverso, uma
espécie de mania, de colocar uma etiqueta na testa de cada pessoa, talvez para
poder manipular melhor a condição humana que, por si, tende à liberdade.
Classificar-nos seria uma maneira de nos tornar prisioneiros, então o mesmo
acontece com os gêneros literários. E aí é que me encanta não ser classificado,
quando dizem “O que é isso que estou lendo? É ensaio, poesia, crônica, é
ficção, não ficção, de que se trata?”, e eu respondo que não tenho a menor
ideia e não quero saber do que é isto que faço. Porque eu sigo o conselho que
um senhor me deu, estando eu perdido pelas ruas de Cádiz, há um tempo, me perco
sempre porque sou muito disperso e não tenho senso de orientação, ou tenho um
grande senso de desorientação, pois me perco continuamente. E estava perdido em
Cádiz e eu perguntei pelo Mercado Viejo a um senhor que estava contra a parede,
apoiado, e sem desencostar ele me disse: “Nada, faça o que a rua te disser!”. E
eu faço aquilo que a rua me diz. Na literatura e na vida também.
* Transcrição e tradução: Cainã Vidor.
Fonte: Revista
Fórum
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