Galeano: “Para viver sem medo”.
Em video, escritor morto hoje celebra “o mistério
da persistência humana, às vezes inexplicável, de lutar por um mundo que seja a
casa de todos e não a casa de poucos – e o inferno da maioria”
Eduardo Galeano*
O medo ameaça: se você ama, terá Aids; se fuma,
terá câncer; se respira, terá poluição; se bebe, sofrerá acidentes; se come,
terá colesterol; se fala, terá desemprego; se caminha, terá violência; se
pensa, terá angustia; se duvida, terá loucura; se sente, terá solidão.
Para ter fôlego, é preciso ter desalento. Para
levantar tem que saber cair. Para ganhar tem que saber perder. Temos que saber
que assim é a vida e que você cai e levanta muitas vezes. Alguns caem e não
levantam nunca mais, geralmente os mais sensíveis, os mais fáceis de se
machucar, as pessoas que mais dor sentem ao viver. As pessoas mais sensíveis
são as mais vulneráveis.
Em contrapartida, esse filhos da puta que se
dedicam a atormentar a humanidade, vivem vidas longuíssimas, não morrem nunca,
porque não têm uma glândula, que é bem rara e que na verdade se chama
consciência. É a que nos atormenta pelas noites.
Acho que o exercício da solidariedade, quando se
pratica de verdade, no dia-a-dia, é também um exercício de humildade, que
ensina a se reconhecer nos outros a grandeza escondida nas coisas
pequenininhas. O que implica denunciar a falsa grandeza nas coisas grandinhas,
em um mundo que confunde grandeza com grandinho.
O que é ser um escritor
Faz pouco tempo, em uma entrevista que me fizeram
em Madri, um jornalista me falou: “lendo seus livros, eu sinto que você tem um
olho microscópio e outro olho no telescópio”. Achei boa a definição das minhas
intenções, de pelo menos o que eu gostaria de fazer escrevendo. Ser capaz de
olhar o que não se olha, mas que merece ser olhado: as pequenas, as minúsculas
coisas de gente anônima, de gente que os intelectuais costumam desprezar. Esse
micro-mundo onde eu acredito que se alimenta de verdade a grandeza do universo.
Ao mesmo tempo que sejamos capazes de contemplar o universo, através do buraco
da fechadura — ou seja, a partir das pequenas coisas é possível olhar os
grandes mistérios da vida. O mistério da dor humana, mas também o mistério da
persistência humana, às vezes inexplicável, de lutar por um mundo que seja a
casa de todos e não a casa de poucos – e o inferno da maioria. A capacidade de
beleza, a capacidade de formosura das pessoas mais simples, às vezes mais
singelas, tem uma insólita capacidade de formosura, que às vezes se manifesta
em uma canção, em um grafite, numa conversa qualquer — esta que praticam as
crianças. Acontece que depois nós, os adultos, nos ocupamos em transformá-las
em nós mesmos, e aí destruímos a vida delas. Mas, temos que ver oque é uma
criança, não? São todos pagãs.
Faz pouco tempo, sofri uma tragédia, morreu meu
companheiro Morgan, meu cachorro companheiro de passeio, que me acompanhava
também escrevendo, porque quando eu perdia a mão e já levava 18 horas
escrevendo, sua pata me dizia: “vamos, a vida não termina aqui, nos livros,
vem, vamos passear juntos”. Aí íamos os dois. Porém, ele morreu. Com isso eu
andava com uma música muito ruim na alma. Falando em perdas, realmente, a perda
do Morgan foi muito forte para mim. Me arrancou um pedaço do peito. Bem, estava
assim, muito triste e saí a caminhar pelo bairro. Era cedo, manhãzinha, não
consegui dormir, me vesti e fui caminhar. Cruzei com uma menina muito nova,
devia ter uns dois anos, que vinha brincando no sentido contrário. Ela vinha
cumprimentando a grama, as plantinhas, “boa dia graminha”, dizia ela. Ou seja,
nessa idade, somos todos pagãos, e nessa idade somos todos poetas. Depois o
mundo se ocupa de apequenar nossa alma.
O que é utopia?
Fazíamos a pergunta todos os dias: “para que
servia a utopia? Se é que a utopia servia para alguma coisa…” Então disse:
“veja bem, a utopia está no horizonte e se está no horizonte, nunca vamos
alcançá-la. Porque se caminho dez passos, a utopia vai se distanciar dez passos
e se caminho vinte passos, a utopia vai se colocar vinte passos mais além. Ou
seja, sei que jamais vou alcançá-la. Então para que serve? Para isso, para
caminhar.
O século XX, que nasceu anunciando a paz e
justiça, morreu banhado em sangue e deixou um mundo muito mais injusto do que o
que tinha encontrado. O século XXI, que também nasceu anunciando paz e justiça,
está seguindo os passos do século anterior.
Na minha infância, eu estava convencido de que
tudo o que na Terra se perdia, ia parar na Lua. Sonhos perigosos, promessas
traídas, esperanças estilhaçadas, Se não estão na Lua, onde estão? Será que na
Terra não se perderam? Será que na Terra se esconderam e estão esperando por
nós?
Dizem que o mundo é feito de átomos. Está bem. “O
mundo não é feito de átomos, o mundo é feito de histórias”, disse uma amiga. Eu
acredito que sim, o mundo deve ser feito de histórias, porque são as histórias
que a gente conta e escuta, recria e multiplica. São as histórias que permitem
transformar o passado em presente, e também permitem transformar o distante em
próximo. O que está distante em algo próximo, possível e visível.
O mundo é isso, revelou: um monte de gente, um
mar de foguinhos. Não existem dois fogos iguais. Cada pessoa brilha com luz
própria, entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, fogos
de todas as cores. Existem pessoas de fogo sereno, que nem ficam sabendo do
vento, e há pessoas de fogo louco, que enche e arde faíscas. Alguns fogos,
fogos bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros… outros ardem a vida com
tanta vontade, que não pode olhá-los sem pestanejar. Quem se aproxima, se
incendeia.
Fonte: Outras
Palavras
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