sábado, 11 de abril de 2015

Projeto de Lei sobre biodiversidade fere tratado internacional, diz seu maior dirigente.
por Oswaldo Braga de Souza, do ISA
De acordo com o brasileiro Bráulio Dias, secretário executivo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), aprovação de projeto em tramitação no Congresso pode trazer consequências negativas para o Brasil e restringir direitos de povos indígenas e tradicionais
Bráulio Dias

O Congresso deverá decidir, em breve, parte do destino daquela que pode ser a riqueza mais estratégica do País: tramita no Senado o Projeto de Lei (PLC) nº 2/2015 (antigo PL 7.735/2014 da Câmara), sobre os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e agrobiodiversidade (saiba mais no box no final do texto). O projeto pretende substituir a Medida Provisória 2.186-16/2001, que regula o tema no Brasil hoje. Se for alterado, o PLC retorna à Câmara. Caso contrário, segue para sanção presidencial.

O projeto é alvo de polêmica e vem sendo criticado duramente por povos indígenas e tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos, por restringir seus direitos. O governo excluiu-os da discussão e elaborou uma proposta em conjunto com ruralistas e o lobby da indústria de cosméticos, remédios e higiene.

Na entrevista a seguir, o secretário executivo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), o brasileiro Bráulio Dias, afirma que dispositivos do projeto, segundo o texto aprovado na Câmara, ferem a CDB e o Protocolo de Nagoya. Segundo Dias, a aprovação do PL pode dificultar a ratificação do protocolo pelo Brasil, com implicações negativas para o país.

Assinada em 1992, na Rio 92, a CDB é um dos mais importantes tratados internacionais sobre meio ambiente. Vigente desde outubro de 2014, o protocolo foi assinado no âmbito da convenção e pretende viabilizar seu terceiro objetivo: proteger os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Confira a entrevista

ISA – O Art. 47 do PLC nº 2/2015, como veio da Câmara, afirma que “a utilização de patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado de espécie introduzida no País pela ação humana até a data de entrada em vigor desta Lei e encontrada no território nacional, na plataforma continental ou zona econômica exclusiva não estará sujeita a repartição de benefícios prevista em acordos internacionais sobre acesso e repartição de benefícios dos quais o Brasil seja parte, ressalvada aquela prevista no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, promulgado pelo Decreto nº 6.476, de 5 de junho de 2008”. Este artigo fere a CDB?

Bráulio Dias - Eu entendo que sim. Não temos um parecer jurídico formal sobre isso. Se necessário, poderemos fazê-lo. Aparentemente, o artigo, como está redigido, contradiz o que está previsto na convenção e o ato feito pelo próprio Congresso, de 1994, ao ratificar a CDB. O Brasil só pode ratificar ou não uma convenção internacional. Ele não pode alterar unilateralmente o entendimento de um acordo internacional.

ISA – Podemos dizer que o projeto contraria também o Protocolo de Nagoya?

BD - Ele fere também o Protocolo de Nagoya. Mas poderá se argumentar que o Brasil ainda não ratificou o protocolo. Mas se o Brasil intenciona ratificar, e eu espero que isso venha a ser feito, essa lei, se mantida dessa forma, estará confrontando o previsto no protocolo.

ISA – A aprovação do projeto é um obstáculo à ratificação do protocolo? Quais as consequências de uma não ratificação?

BD - Poderá ser [um obstáculo]. Agora, é importante chamar a atenção dos que forem ler esta entrevista que esse artigo fere direitos internacionais, portanto poderá prejudicar os direitos de outros países, de povos e comunidades indígenas e tradicionais de outros países que sejam os originários de recursos genéticos que venham a ser usados pelo Brasil. O que esse artigo diz é que o que já foi introduzido no Brasil, anteriormente à entrada em vigência dessa lei, estará isento de repartição de benefícios [saiba mais no box no final do texto]. E, portanto, isso estará ferindo esse direito que já foi estabelecido pela CDB.

Outro aspecto a ser destacado é que isso também vai prejudicar os interesses nacionais do Brasil quando o país quiser solicitar acesso aos recursos genéticos de outros países para atender suas necessidades. Por exemplo, no setor agrícola, se ocorrer uma nova doença, uma nova praga, ou uma mudança climática, se o Brasil, para desenvolver novas variedades de cultivares ou novas raças de animais para enfrentar essas dificuldades, vier a necessitar de recursos genéticos de outro país, muito possivelmente esse outro país não vai dar acesso ao Brasil em vista dessa disposição do artigo 47.

Como o Brasil já tem uma legislação nacional, os outros países que quiserem acessar os recursos e conhecimentos nacionais terão de cumprir a lei brasileira. Evidente que apenas ter uma lei nacional não é suficiente para evitar a biopirataria. Se alguém retira um recurso genético ou conhecimento tradicional do Brasil sem autorização, a lei nacional não abarca mais esse material porque ele estaria fora do país. Por isso é importante a adesão do Brasil ao marco legal internacional para assegurar os seus direitos. O protocolo tem regras de cumprimento. Se empresas ou pesquisadores vierem a extrair algum material do Brasil sem a devida autorização e sem pagar a repartição de benefícios, o Brasil poderá recorrer a esses mecanismos previstos no protocolo para sustar esses usos e obter uma indenização.

ISA – O projeto estabelece uma série de isenções para a repartição de benefícios. Essas isenções ferem o protocolo e a CDB?

BD - Quando se tratar de recursos genéticos ou conhecimentos associados de origem externa ao Brasil, sim, estará ferindo os direitos internacionais.

O Brasil, como qualquer outro país, tem condição de definir regras próprias internas. Pode estabelecer algum regime facilitado para os casos de acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais dentro do país, originários do próprio país. Ao mesmo tempo, a CDB e o protocolo são muito claros sobre a necessidade de se respeitar os direitos dos povos indígenas e comunidades locais detentores de conhecimentos tradicionais relevantes ao uso e conservação da biodiversidade. Isso também está na Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho]. Esse é outro aspecto que o Congresso tem de atentar bastante para ver se o texto final aprovado respeita esses princípios que estão no marco legal internacional. Se forem isenções previstas para recursos genéticos e conhecimentos tradicionais internos, isso exige uma análise mais detalhada. No caso dos recursos genéticos, depende da natureza jurídica da titularidade dos recursos. No caso de conhecimentos tradicionais, é muito claro no direito internacional e no direito nacional que os detentores desses conhecimentos são os povos indígenas e comunidades locais. O Estado não detém o direito sobre esses conhecimentos. Se alguém pode falar em isenção de repartição de benefícios, são os detentores desses direitos.

ISA – O próprio governo brasileiro admite que de povos indígenas e tradicionais não foram consultados adequadamente na formulação do projeto. Além disso, o texto em tramitação relativiza o conceito de “consentimento livre, prévio e informado” (saiba mais no box no final do texto). Isso também contraria a CDB e o protocolo?

BD - Sem dúvida. Esse é um dos pilares das regras estabelecidas pela CDB e o protocolo.

ISA – Podemos dizer, então, que tanto o processo para formulação do projeto quanto os termos colocados em seu texto para definir o consentimento prévio contradizem a CDB?

BD - Não vou comentar com relação aos procedimentos adotados pelo Brasil porque não tenho informação suficiente sobre todas as consultas que foram feitas ou não. É uma questão interna do país. A CDB diz que os países que ratificaram a convenção assumiram o compromisso de respeitar os direitos dos povos indígenas e comunidades locais referentes à sua biodiversidade, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Essa é uma regra básica da convenção e do protocolo. Se detalhes do que está previsto na lei ferem esses direitos, isso exige uma análise bastante cuidadosa. Uma análise preliminar de minha parte é que, aparentemente, certas isenções previstas podem estar, sim, ferindo direitos de povos indígenas e comunidades locais no Brasil.

Saiba mais

O que são os recursos genéticos da biodiversidade e da agrobiodiversidade?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos.

Tanto os recursos genéticos quanto esses conhecimentos servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e de higiene. Por isso, podem valer bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.

O que é a “repartição de benefícios” prevista na CDB?

A CDB prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.

O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?

“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e agrobiodiversidade – os povos indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo-se-lhe tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.


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