E se a água deixar de ser
mercadoria?
por Myriam Bahia Lopes, do
Outras Palavras
Como Paris, Berlim, e dezenas de cidades
estão remunicipalizando o abastecimento. Por que as metrópoles brasileiras, em
crise devido à privatização, deveriam fazer o mesmo.
Em um momento no qual a vida na maior capital
brasileira encontra-se ameaçada em razão da falta d´água, seria oportuno
entender prática adotada em 86 cidades no mundo. Elas abandonaram o modelo de
empresa privada de abastecimento de água, no qual a meta é o lucro e seu
cálculo depende da cotação de ações na bolsa de valores. Tomara a decisão
depois de avaliarem os limites desse modelo e os prejuízos ecológicos e sociais
e econômicos dele decorrentes. Em dezembro de 2013, consolidou-se um grande
agrupamento europeu de cidadania pelo direito humano de acesso à água e pela
interrupção e reversão da privatização desse bem. Nessa direção observamos um
movimento de remunicipalização e de retomada e criação de parcerias
público-público para o abastecimento d´água nas cidades.
Breve história
Os sistemas de distribuição de água e de
esgotamento foram aperfeiçoados, ao longo do século XIX, como uma resposta à
eclosão de epidemias nas cidades industriais. Essas cidades, que haviam se
adensado rapidamente, em apenas algumas décadas, concentraram milhares de habitantes
em precárias condições de moradia e de trabalho. Nesse quadro, os sanitaristas
e reformadores sociais dos oitocentos preconizaram que, sem um meio saudável,
com circulação de água, luz e ar e uma alimentação regrada, a vida e a moral
dos habitantes da cidade se esvairia. E mostraram como as epidemias não se
detinham nas fronteiras dos bairros pobres: percorriam cidades, viajavam por
oceanos e se distribuíam entre países. Para eles, seria impossível formar o
cidadão sem um meio saudável, pois era o meio que constituía o indivíduo. O bom
governo seria aquele que conseguisse reduzir a mortalidade e aumentar a
população. A biopolítica impulsionou as reformas urbanas ocorridas nas
principais capitais europeias e também no continente sul-americano, como as reformas
ocorridas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, no início do século XX.
Se cada cultura cria uma forma específica e
diferenciada de lidar com as excreções do corpo, de fixar o que é sujo e o que
é limpo, o reconhecimento de que a água é fonte da vida é um consenso
universal. O direito ao acesso à água é um direito fundamental.
A partir da década de 1960, o continente
sul-americano foi tomado pela intervenção de governos militares. Com o aporte e
a ingerência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, um
amplo processo de privatização de serviços de abastecimento de água teve lugar
no continente. O Chile tornou-se o exemplo mundial máximo, visto que a
totalidade dos recursos hídricos desse país foi privatizada durante o governo
do General Pinochet. A partir de 1990 e em resposta às pressões do capital
financeiro, houve novo impulso e privatização desses serviços em outros países.
Em 2000, a Comissão Mundial de Barragens avaliou que a sua construção desalojou
entre quarenta e oitenta milhões de pessoas no planeta.
Os Movimentos sociais e a água
A apropriação privada da água e da terra e a
cartelização mundial do hidronegócio vêm sendo denunciadas em diversas frentes.
Como a água é indispensável à vida e possui um ciclo que deve ser protegido,
encontramos uma variedade de grupos que direta ou indiretamente se engaja em
sua defesa. No plano internacional, para citar apenas três exemplos, há
profissionais que se associam à Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO) como consultores para investimentos em
agricultura responsável, a organização internacional Fórum Mundial de
Pescadores e Trabalhadores da Pesca (FMPTP), grupos que se batem contra o
fracking – a forma mais predatória de extração de petróleo.
No Brasil, indicamos os grupos que lutam em
defesa da demarcação das terras indígenas, grupos que se engajam na promoção da
agricultura familiar e orgânica, da reforma agrária, cujo maior exemplo é o
Movimento dos Sem Terra (MST), aqueles que lutam em defesa dos atingidos por
grandes barragens (MAB), como Belo Monte e grupos que lutam em defesa dos
atingidos por minerodutos, como o da Anglo-American, recém-inaugurado em
dezembro de 2014.
Em campos opostos, enfrentam-se de um lado,
grupos que exploram o recurso hídrico e promovem a perpetuação da temporalidade
cíclica da água e de outro, multinacionais e empresas produtoras de
commodities, que operam na temporalidade linear da técnica, realizam
gigantescas e irreversíveis intervenções no território, tais como a construção
de grandes usinas hidrelétricas, as explorações minerárias, os minerodutos.
Além da resistência local, esses conflitos produzem uma batalha judicial no
Brasil e na esfera internacional que coloca o país, em alguns casos, na posição
de ser conivente com o desrespeito de direitos humanos fundamentais, a despeito
do país ser signatário dos tratados internacionais.
Remunicipalizar?
Transferir os serviços de água das companhias
privadas – que também podem possuir capital misto – para as autoridades
municipais. A favor dessa reversão encontramos o exemplo de várias capitais,
entre as quais, Paris, Berlim, Buenos Aires e de países como Malásia e
Tanzânia. Essa transformação ou reversão foi possível a partir da tomada de
consciência, por parte dos habitantes,das nefastas consequências do processo
que transforma a água de recurso natural em commodity.
Nos últimos quinze anos, pelo menos 86 cidades no
mundo remunicipalizaram os serviços de água. Paris, capital e sede de duas
poderosas empresas do hidronegócio, a Veolia e a Suez, remunipalizou em 2010;
Berlim, em 2013. A PUPS, ou seja, parceria público-público, público-comunidade
e comunidade-comunidade é forma de parceria que envolve o planejamento e a
participação coletiva do uso dos recursos hídricos e que rejeita a concepção,
segundo a qual, o alvo do empreendimento é o lucro.
Segurança Hídrica
O que fazer quando São Paulo, a maior capital
brasileira e várias outras cidades não tiverem mais água para distribuir entre
os seus habitantes? O modelo adotado pela Sabesp, cujo lucro reverbera a
imprevisível bolsa de valores de Nova York, atende a quem? Ao habitante comum,
visto a qualidade e a escassez da água fornecida pela empresa, não tem sido. É
admissível que o provedor de água crie uma pirâmide de usuários na qual destaca
as maiores empresas consumidoras para hierarquizar e comercializar privilégios
em relação ao acesso à água? E que guarde a sete chaves esses dados, à revelia
da lei da transparência? Na hipótese de haver vultosos investimentos federais
para se tentar evitar o pior, esses recursos atingirão positivamente os
serviços dispensados ao pequeno usuário? Em um momento de ameaça à vida de seus
habitantes, por todos os riscos que a ausência ou escassez de água de boa
qualidade para o consumo humano provoca, devemos insistir na defesa cega desse
modelo de negócio privado que por sua essência visa o lucro?
Ou devemos olhar com muito cuidado e aprender com
o processo de remunicipalização da água em curso em outras capitais? Com
segurança hídrica não se brinca pois a vida de todos não pode ser um jogo e
alvo de especulação.
Referências Bibliográficas:
1 Martin
Pigeon, David A McDonald, Oliver Hoedeman, Satoko Kishimoto Remunicipalization
Putting Water Back into Public Hands.
Transnational
Institute, Amsterdam, March 2012
2 Karen
Piper The price of thirst University of Minesota Press, 2014
4 http://apublica.org/2015/01/sabesp-se-nega-a-publicar-contratos-de-empresas-que-mais-consomem-agua/
Fonte: Outras
Palavras
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