O sangue ainda corre na floresta.
por
Redação do Greenpeace Brasil
Dez anos após o assassinato de Dorothy Stang, os
mandantes do crime continuam em liberdade e o círculo vicioso de exploração,
violência e impunidade segue imperando na Amazônia
Em reação a morte de Dorothy Stang, o Greenpeace
foi à Brasília em 2005 para pedir Paz nas florestas e ações para acabar com os
conflitos agrários na Amazônia. Foto: © Greenpeace/ Olivier Boëls.
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão fartos. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos
de Deus”. Estas foram as últimas palavras ditas por Dorothy Stang antes de ser
alvejada por seis tiros, em uma estrada deserta de terra batida no interior do
Pará. A missionária norte-americana tinha 73 anos de idade. Segundo seu
executor, Rayfran das Neves, quando percebeu a aproximação da moto que levava
seus assassinos, a freira abriu a Bíblia que carregava debaixo do braço e
começou a rezar. O livro, inseparável, foi seu único consolo naqueles
solitários segundos finais.
Neste 12 de fevereiro, o assassinato de Dorothy
Stang completa dez anos, sem que os mandantes pelo crime tenham sido, de fato,
presos. Depois de sucessivos julgamentos e do polêmico cancelamento do
veredicto que condenou Vitalmiro Bastos de Moura a 30 anos de prisão, tanto ele
como o outro mandante, Regivaldo Pereira Galvão, continuam livres. O caso, ao
invés de exceção, infelizmente é a regra e retrato fiel da violência e
impunidade que assolam comunidades rurais de todo o Brasil e especialmente da
Amazônia.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), de 2005 a 2014, 325 pessoas foram vítimas de assassinatos motivados por
conflitos agrários. Mais da metade destes casos (67,3%) aconteceram na Amazônia
Legal. O que mostra que, passados dez anos da morte de Dorothy, o sangue
continua a correr na floresta.
Não
bastasse o horror da violência, as famílias que sobrevivem às ameaças e os
parentes das vítimas assassinadas ainda têm que conviver com seus algozes às
soltas. De 1985 a 2013, a justiça recebeu 768 inquéritos de assassinatos no
campo na região amazônica. Apenas 5% deste total chegou a julgamento, segundo a
CPT. Pior: somente 19 mandantes receberam algum tipo de punição, sendo que a
maioria responde às acusações em liberdade.
Este círculo vicioso de mortes, impunidade e mais
violência alimenta uma indústria que vem financiando há anos o desmatamento da
Amazônia. As populações tradicionais da região vêm sendo exterminadas por
motivos econômicos muito claros, seja para a posterior ocupação com atividades
ligadas ao agronegócio, para a grilagem de terra ou para a exploração
madeireira ilegal, considerada o principal vetor de violência na Amazônia.
Foi o que aconteceu com Dorothy Stang. A
missionária atuou por mais de 30 anos no município de Anapu, sudoeste do Pará,
prestando apoio a pequenos produtores agroextrativistas. Na época de seu
assassinato, ela lutava pela implantação do Projeto de Desenvolvimento
Sustentável (PDS) Esperança, há cerca de 40 quilômetros da sede do município. O
local, no entanto, era disputado por fazendeiros e madeireiros da região. De
acordo com a investigação da Polícia Civil, Vitalmiro e Regivaldo pagaram R$ 50
mil pela morte de Dorothy.
Irmã Dorothy vinha denunciando a violência e as
ameaças de morte há pelo menos um ano. Em 2004 a religiosa esteve em Brasília,
por mais de uma vez, onde ofereceu denúncias ao Ministério da Justiça, à
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, e
participou da CPI Mista da Terra, na Câmara Federal. Nada disso adiantou para
evitar seu assassinato.
“Infelizmente, o que vemos acontecer ano após ano é
que as pessoas entram na lista de ameaçados de morte e só saem dela para entrar
em outra lista, a de assassinados”, afirma Danicley Saraiva, da campanha
Amazônia do Greenpeace. “Isso tem que acabar”.
Caixões de madeira amazônica
O embate com grileiros e madeireiros ilegais também
foi o estopim para o assassinato de outras vítimas simbólicas na luta pela
floresta em pé: Zé Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal de
líderes extrativistas era conhecido pela defesa do manejo sustentável da mata e
pela oposição a sua exploração irrestrita. Eles denunciavam constantemente a
atuação dos criminosos no Assentamento Agroextrativista Praia Alta Piranheira,
a 50 quilômetros de Nova Ipixuna, no Pará. Foram mortos a tiros, em 2011.
José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo
foram assassinados, em 2011, por denunciarem a ação de madeireiros, carvoeiros
e grileiros no Assentamento Agroextrativista Praia Alta Piranheira, no Pará.
Foto: © Greenpeace / Felipe Milanez.
“Nosso lote era lindo, a gente levava uma vida
muito tranquila e pacata. Mas a partir de 2005, com a intensificação da
exploração de madeira dentro do assentamento, o Zé começou a ser ameaçado e
ficou ruim de viver. Até que aconteceu o que aconteceu”, relata Claudelice
Santos, irmã caçula de Zé Claudio.
A exploração ilegal de madeira também foi o
personagem principal da trama que levou à morte do sindicalista Josias de
Castro e sua esposa, Ereni Silva, em agosto do ano passado, em Guariba, no Mato
Grosso; e também ao assassinato de José Dutra da Costa, o Dezinho, ocorrido em
novembro de 2000, em Rondon do Pará.
A violência no campo tem relação direta com
desmatamento ilegal na Amazônia. Nos últimos dez anos, por exemplo, o Pará foi
o estado que mais desmatou o bioma. Neste período, foram perdidos 39.666 quilômetros
quadrados de florestas na região, segundo dados do PRODES (Projeto de
Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite), do Governo Federal. No mesmo
intervalo, foram registrados 116 assassinatos no estado, o maior índice dentre
todas as unidades da federação. Nos últimos dez anos 639 pessoas entraram para
a lista de ameaçados de morte do Pará.
Em 2013, segundo a CPT, 8.836 famílias que viviam
no Pará foram afetadas pela violência no campo. Destas, 477 tiveram suas casas
destruídas, 264 tiveram suas roças arruinadas e 2.904 foram vítimas de alguma
ação de pistolagem.
Entre 2007 e 2012, cerca de 80% de toda a área com
exploração madeireira no Pará, maior produtor e exportador de madeira nativa
serrada, não contou com nenhuma autorização, ou seja, a madeira foi extraída
ilegalmente. No entanto, segundo apurou o Greenpeace em recente investigação,
este produto de origem ilegal ganha facilmente papéis oficiais, por meio de um
esquema de “lavagem” dessa madeira, que então ganha o mercado nacional e
internacional, com a conivência do poder público.
Impunidade e abandono
A origem da violência no campo na Amazônia pode ser
combatida através de ações do governo que melhorem a governança na região e
incentivo ao uso sustentável da floresta. A devida apuração e julgamento dos
casos também deve ser uma prioridade absoluta para o poder judiciário, pois a
impunidade funciona na prática como uma espécie de “salvo-conduto” para aqueles
que alimentam a violência na região.
Para isso, o governo federal deve promover o
aumento da capacidade de ação dos órgãos ambientais estaduais e federais, com
mais recursos para ações de monitoramento e fiscalização, a fim de permitir que
o crime seja combatido. Os planos de manejo aprovados na Amazônia desde 2006,
por sua vez, devem ser revistos, assim como os sistemas de controle de madeira,
com processos públicos, transparentes e integrados.
“Precisamos nos perguntar até quando a sociedade e
o Estado brasileiro vão tolerar o extermínio daqueles que lutam pelo simples
exercício de seus direitos e garantias constitucionais, e que enfrentam as
forças responsáveis pela destruição da Amazônia e pelo desrespeito ao Estado de
Direito na região”, alerta Danicley Saraiva.
Fonte: Greenpeace Brasil
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