Água: tragédia anunciada.
por Malu
Ribeiro*
Sistema Cantareira.
Foto: Sabesp/Divulgação.
Os rios brasileiros refletem nitidamente o descaso
com que a gestão da água é tratada no país. Por conta da maior crise hídrica da
nossa história, o Brasil, detentor da maior reserva de água doce do Planeta, se
vê agora obrigado a sair da zona de conforto para assumir, a duras penas, que
esse recurso natural, essencial à vida e a todas as atividades econômicas, é
escasso. Mesmo assim, continuamos a tratar os mananciais como a extensão das
nossas descargas, com o despejo diário de toneladas de esgotos, e a considerar
as grandes bacias hidrográficas como a ponta das tomadas de energia elétrica.
Essa realidade, agravada pela falta de planejamento
integrado e estratégico, nos coloca mais uma vez diante da tragédia anunciada
do desabastecimento de água e do apagão elétrico. Vivemos isso no passado
recente, em 2001, com o apagão que levou os brasileiros a economizarem energia
e a mudarem de comportamento. No entanto, não houve a devida atenção para a
causa, que também fora uma grave seca. Desde então, técnicos dos setores de
recursos hídricos, saneamento e energia, organizações civis, instituições
públicas e privadas têm alertado os governantes e promovido fóruns nacionais e
internacionais sobre a escassez da água.
O acesso à água em qualidade e quantidade é
considerado um dos maiores desafios da humanidade diante do crescimento das
cidades e das atividades econômicas. Há mais de 20 anos, a Organização das
Nações Unidades (ONU) adotou a data de 22 de março como o Dia Internacional da
Água, para unir governos e sociedade no esforço de promover o uso racional
desse bem e aliar a demanda à necessidade ecossistêmica, com o objetivo de
garantir a nossa sustentabilidade. Muitos avanços ocorreram e o acesso à água
foi reconhecido como Direito Humano, mas a nossa “pegada hídrica” não diminuiu.
Continuamos com índices altíssimos de consumo e
desperdício. Cerca de 70% da água bruta captada diretamente nos rios para a
agricultura irrigada escoa no solo carregando defensivos. O setor industrial,
responsável por 20% do consumo, embora mais eficiente no uso por ser
sobretaxado com instrumentos como a cobrança pelo uso da água, ainda trata
efluentes com baixa eficiência em muitas regiões. O tratamento de esgoto
industrial com baixa eficiência ocorre por conta da legislação que versa sobre
o enquadramento dos corpos d’água e permite que rios qualificados como de
classe 4 sejam utilizados para diluir efluentes.
Na ponta vem o setor de abastecimento público,
responsável por 10% do consumo da água e por um enorme desperdício na rede
física, que varia de 25% a 40%. Esse setor também é responsável por 70% da
carga de poluição dos rios. O motivo: falta de tratamento de esgotos. Dados
divulgados por representantes do Fórum Mundial da Água revelam que mais de 100
milhões de brasileiros não têm acesso a esgoto tratado. Essa perversa realidade
leva ao agravamento da escassez por indisponibilidade decorrente da precária
qualidade da água e resulta em patamares ainda mais alarmantes de doenças de veiculação
hídrica.
A falta de informação e transparência fazem com que
o uso da água de reúso ainda seja limitado no país. São Paulo é pioneiro nesse
setor e recentemente anunciou que utilizará água de reúso para reabastecer um
manancial, a Guarapiranga. A notícia de que o esgoto tratado será utilizado
para abastecimento humano, após novo tratamento, assustou cidadãos que ainda
não perceberam que, na prática, já estamos tratando água que recebe esgotos na
maioria dos rios e mananciais. Diversos países utilizam a água de reúso
diretamente na rede de abastecimento público e investem de forma maciça em
eficiência e tecnologia para despoluir e garantir água de qualidade as suas
populações.
A escassez nos levará, certamente, a promover a
despoluição de mananciais como a Billings, na região metropolitana de São
Paulo, além de grandes rios, como Tietê, o Guandu, na Baixada Fluminense, a
bacia do Rio das Velhas, na região metropolitana de Belo Horizonte, ou o
Iguaçu, no Paraná, dentre tantos outros que cortam áreas urbanas e estão
poluídos e com águas indisponíveis para usos múltiplos.
O problema é que a distância entre a nossa
realidade e os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais
dos quais o país é signatário e das normas conquistadas pela sociedade desde a
Constituição de 1988 continua imensa. Além disso, a legislação ambiental
brasileira vem sendo cada vez mais afrouxada para regularizar atividades
econômicas e usos do solo em áreas de preservação permanente, destinadas
justamente à proteção da água, de nascentes e rios.
Autoridades insistem ainda em desconsiderar a
relação entre o desmatamento da Mata Atlântica e a diminuição da
disponibilidade de água na região Sudeste. Como se não bastasse, ainda
predomina o discurso daqueles que querem justificar a ineficiência dos setores
elétrico e de saneamento básico atribuindo ao licenciamento ambiental a culpa
pela demora na execução de megaobras, que sequer têm projetos e estudos
estratégicos de viabilidade.
Ao continuar tratando a água de forma compartimentada
– dividindo a gestão dos recursos hídricos entre os setores de energia,
abastecimento e produção de alimentos em diversos ministérios e secretarias
nacionais, estaduais e municipais, que não se conversam – e sem agências
reguladoras independentes que garantam a participação efetiva dos cidadãos,
transparência e governança, ficará cada vez mais difícil buscar soluções para
essa grave realidade.
É preciso dar um basta na politização da crise e no
desgoverno. A hora é de unir a sociedade para cobrar responsabilidades dos
governantes e somar esforços para o enfrentamento do problema.
Somos capazes.
Temos conhecimento técnico, científico, um enorme acúmulo de dados, pesquisas,
estudos, experiências positivas e políticas públicas que precisam ser reconhecidas
e postas em prática. Somos também solidários e criativos para fazer da crise
uma oportunidade para nos mobilizarmos em defesa da água.
* Malu Ribeiro é coordenadora da Rede das
Águas da Fundação SOS Mata Atlântica.
Fonte: SOS Mata Atlântica
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